sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mairon vai ao Ganges - Parte 1: Visita à cremação à beira do rio

O Rio Ganges. Um dos mais importantes do mundo. Provavelmente o mais festejado - a ponto de ser considerado um deus pelos hindus. Ou melhor, uma deusa, "Mãe Ganga", e reverenciado como tal. Ao mesmo tempo, um dos afamados rios mais sujos de todo o mundo - dentre aqueles em que as pessoas ainda entram para nadar, é claro.

Varanasi, cidade habitada há 8.000 anos. Competidora com outras no Oriente Médio pelo título de mais antiga habitação humana. Cidade sagrada para os hindus, a ponto de considerarem que morrer aqui é auspicioso - você vai direto para os planos mais altos e sua alma escapa da roda das encarnações. Quem não morre aqui, vem ser cremado aqui, e as cinzas jogadas ao rio. Sempre, dia e noite, as fogueiras queimando os mortos à beira do rio, e os vivos se banhando para se purificar. É como dizem por aqui, Varanasi é a "cidade da vida e da morte".

É pra lá que eu fui. Do deserto até Varanasi nada menos que 30 horas de trem. Aff maria. Pra quem está acompanhando pelo mapinha no blog, fui para o estado de Uttar Pradesh, à direita do Rajastão. Varanasi fica mais ou menos na altura do "e" de "Uttar Pradesh". Eu sei que a curiosidade sobre o Ganges está grande, mas não posso deixar de comentar o trem. Uma sujeira de dar arrepios. Rato dentro dos vagões. O banheiro lembrava umas instalações da guerra fria que eu visitei alguns meses atrás na ex-Alemanha Oriental e na Polônia. Isso porque eu fui de 2a classe (na Índia são 5 classes, agora imagine a suruba que deve ser nas de baixo). E o pior é o povo: na minha frente, o pai botou o menino pra urinar ali mesmo, no ato, e eu só vejo o córrego amarelo na minha direção e da minha mochila (que fica no chão abaixo do assento). Are baba.

De dia todos ficam sentados aí. De noite quem é da cama de cima sobe e o dono do assento de baixo se espicha. Há essas cortinas (da foto de cima) pra separar os compartimentos. A farofada rola. Como é ar condicionado, não tem janela. E nem vidro transparente. É esse vidro fumê sujo e pequeno que mal deixa ver o lado de fora. Mal entra luz também, então as lâmpadas vão acesas dentro. Com esse aspecto, você se sente tipo num submarino militar russo ou algo assim.
Mas de certa forma foi boa preparação para a chegada a Varanasi. Varanasi é a cidade mais imunda que eu já vi na minha vida. Esqueça os padrões do que você acha que é sujo. Aqui esses padrões são rapidamente redefinidos. Você mal sai da estação de trem e já sobe aquele cheiro de fezes (humanas mesmo), vulgo fedor de bosta. Lixo você sai driblando pelas ruas, no meio das cabras, porcos e vacas. E pra piorar, tinha chovido. Aaaaaaare baba.

Meu hotel estava do outro lado da cidade, então tive logo um "city tour" de tuk-tuk. O preço até não foi mal. Hotel decente também. Como já era começo de tarde (daquelas meio nubladas, úmidas, em que o chão está molhado e você não vê o céu direito), fui explorar a cidade a pé e no dia seguinte (aniversário) pegaria o afamado passeio de barco pelo Ganges ao amanhecer. A pé fui pelos ghats, de que Maya falava bastante na novela. Nada mais são que as escadarias que descem até a água do rio. Cada ghat tem um nome e, às vezes, um uso diferente. Entre eles os ghats crematórios, que é onde eu queria ir. Percorri então a "orla" inteira do rio até chegar lá.
A margem do Ganges em Varanasi (a outra margen não tem cidade)
Às vezes não dá pra ir de um ghat a outro, porque o rio bate direto no paredão de uma casa, ou porque o lamaçal é demais e não deixa passar. Aí é preciso entrar pelas várias ruelas e becos ali da cidade e contornar. É nessa que você se perde. E eu me perdi.

Nessa a tarde ia caindo, e eu no entra e sai de becos, rodando por ali. Na verdade, é parte da experiência de Varanasi. E, como nos ghats, você vê figuras de todo o tipo: de homens-santos mendicantes (sadhus) vestidos de cor-de-abóbora e com cinzas passadas no corpo, até jovens europeus hippies em viagem. Em alguns lugares você sente em Varanasi a Meca do movimento de contra-cultura dos anos 60 e 70. Não faltam lojas com livros, CDs, pôsteres e qualquer coisa que faça referência a espiritualidade, tratamentos alternativos, yoga, etc. Às vezes a coisa parece séria, outras vezes descamba pra a maconha. Fui oferecido haxixe pelo menos umas 5 vezes na rua.

Mas nessa a fumaça que eu estava vendo era já a das piras funerárias subir. Estava procurando o caminho, aí vem um senhor e diz que vai me mostrar o caminho. "Venha, por aqui". Você já fica meio cismado, mas vai. Lá fui. Entra em beco, sai em beco, chegamos no ghat funerário principal. Lá várias fogueiras queimavam, à beira do rio. Uma construção de pedra escura de seus três andares me separava das fogueiras. Dava pra contornar, mas aí o homem me leva até a entrada desse 'edifício' e fala com mais alguém.

"Ele vai lhe mostrar lá de cima. Depois na volta você dá uma passada na minha loja, tem sedas ótimas". Não respondi nada e subi com o cara. Ele falava um inglês meio decorado, às vezes repetia o que já tinha dito, e tinha dificuldade em responder se você perguntasse. Mas subimos. Lugar escuro, com gente sentada e deitada pelo chão, e a fumaça dos mortos por toda parte. Subimos as escadas e fomos lá pra cima, onde de um parapeito dava pra asssitir a toda a cremação lá embaixo. "Esse cara vai me pedir dinheiro", já pensando eu. Mas, bom, era até justo. Ele foi dando uma explicação de como procede toda a cremação, de que queima por 3h e joga o defunto meio-queimado no rio, que grávidas, crianças e sadhus (os homens-santos de abóbora que eu falei) não são cremados, que quem morreu picado de cobra também não, que só depois de tomar uma bênção do sacerdote, etc e tal. Detalhes alguns até que eu já esqueci, de tantos que são. Lá em cima onde estávamos havia também pessoas no chão, parecendo sem-teto. Uma velha acocorada junto à saída pra a escada e um homem espichado num pano sujo perto de nós. Vi lá embaixo os familiares jogarem muitas oferendas juntos com o defunto (que vai meio que mumificado pra a fogueira, numas ataduras brancas). Vão flores, objetos, e muito pó de madeira de sândalo, usado em incensos (senão ia subir o cheirão de churrasco).

A fumaça já estava me doendo os olhos, e eu já tinha ouvido a explicação toda, então hora de ir embora, a hora dolorosa do pagamento, que é sempre aquela novela porque você dá a mão e eles insistem em querer o seu braço, a perna... Chegamos à saída para a escada, onde estava a velha. E o cara: "Abaixe que ela vai lhe dar uma bênção". Abaixei, a velha pegou minha cabeça, tomei lá a bênção, aíííí sim veio: "Agora você faz a doação pra ela, que toma conta disso aqui e compra madeira pra queimar os sem-teto que morrem". Sei, sei. Levantei, tirei uma nota de 100 rúpias e estendi a ela. Ela já ia pegando, mas aí viu o valor da nota e puxou a mão pra trás, fazendo uma cara de quem tinha cheirado peido. (Ela não falava). Foi aí que o cara me veio dizendo que eu devia dar 50 kg de madeira. "E quanto é isso?", perguntei eu. "7000 rúpias" (~260 reais). Ah, tá bom, já tô dando isso tudo mesmo. Aproveitei que a fumaça já estava nos olhos e fiz o drama. Disse que ele não podia exigir isso de um estudante vindo de outro país em desenvolvimento. Aí ele, que só dava o preço em kgs de madeira, veio: "Se tem emprego, dá X kg de madeira; no job, Y kilos". Vai dar o golpe da madeira em outro, meu tio. No fim das contas ele falou pra a velha aceitar as minhas 100 rúpias, mas insistiu que queria outras 100 rúpias pra ele próprio pela explicação. Heh, sabia. Mas essas eu já tinha preparado, e dei o fora antes que inventassem mais alguma coisa.

Mas saindo, como que cronometrado, estava lá chegando já o cara que me achou nos becos. "Ah! Bem na hora! Venha ver a minha loja!". Putz. Acabei indo com o cara. Aí é sempre aquela história: "Sente, toma um chai?", e vai lhe empurrando a loja inteira. Não é tão mal, o problema é que nessa onda você acaba comprando. O legal foi que, quando eu disse que era do Brasil, ele me mostrou um caderno de visitas assinado pelo Zé de Abreu (que fez o papel do Pândit) e com uma foto nessa mesma loja, do ano passado, quando fizeram as filmagens de Caminho das Índias.

Como a noite já tinha caído, aproveitei pra assistir o ritual que fazem à beira do rio no ghat principal, onde dizem que Brahma, o deus criador, certa vez veio pessoalmente. Fotos abaixo, e no próximo post o dia seguinte, do aniversário, no Ganges propriamente dito.
Ghat de cremação à beira do Rio Ganges. Naquele prédio, meio a esquerda com os vãos escuros é que eu estava.
Ghat de cremação à beira do Rio Ganges. Restos mortais e oferendas.

Cerimônia à beira do Ganges, com música, mantra e incenso.
Cerimônia à beira do Ganges. Após o incenso, mantra e movimentos com grandes lampiões e fogo.



3 comentários:

  1. Interessante os rituais. Mas venha cá, o povo daí, não importa se é norte/sul/leste ou oeste do país, tem a mania de escopetar turista, né? 7000 mil rupias por uma benção? Manda esse povo botar Jesus no coração! Tenha dó, é praticamente um assalto :) Beijão, amigo!

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  2. Ae Mairon, cuidado com o churrasquinho de gato por aí, hein? XD

    Ô povinho pidão, vei!!
    Se fizerem um intercâmbio Pelourinho-Varanasi o bicho vai pegar pros dois lados.

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  3. Ai migo seu bom humor me fascina! Porque pra aguentar estas maluquices deste povo, depois da camelada das "arábia", só com bom humor mesmo!
    Beijos!

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