sexta-feira, 3 de abril de 2015

Nápoles, onde a pizza surgiu

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Nápoles (ou Napoli, se você preferir a grafia italiana), terra onde surgiu a pizza. Uma cidade de quilate histórico e a maior metrópole do sul da Itália, onde as tradições estão ainda mais arraigadas  inclusive as da famiglia e da máfia. Se por um lado Nápoles é talvez a cidade mais suja e perigosa da Itália (quiçá de toda a Europa), por outro lado aqui se come e bebe muito bem, as pessoas são mais calorosas que no norte da Itália, e há lindas vistas, seja para os prédios antigos, seja para a bela costa do Mar Tirreno com o vulcão Vesúvio à vista e o Golfo de Nápoles. De quebra, faço algumas observações sobre os italianos.

Cheguei aqui após as minhas andanças por Malta. E a chegada não poderia ter sido mais contrastante com o sossego a que estou habituado na Holanda, onde more, e que vejo na maior parte da Europa, sobretudo no norte. Já aqui pareceu que eu de repente desembarquei na rua da Uruguaiana, no Rio de Janeiro, ou em alguma outra metrópole latino-americana. Imigrantes africanos suspeitos atravessavam na minha frente na rua para vender iPads sem caixa nenhuma; outros ofereciam relógios; o povo andava em massas pra lá e pra cá; e policiais não menos suspeitos supervisionavam a situação toda. Na rua, ruído, sujeira e tráfego louco. Bem vindo ao Brasil? Não, bem vindo à Itália!
Onde desembarquei do ônibus que me trouxe do aeroporto ao centro da cidade.
Ruas do centro de Nápoles. Encaixariam facinho no Brasil.

Quase todo brasileiro passa por italiano, sobretudo se for moreno  o que aqui é muito útil, pois você não chama a atenção. O mochilão, no entanto, me denunciava como turista. Seus instintos logo lhe dizem que o lugar não é muito seguro, embora não chegue ao nível da África do Sul ou do Brasil. De qualquer modo, para os padrões europeus é bem menos tranquila do que o habitual. Portanto, olho na câmera e nos demais pertences que possam ser afanados. 


Eu fui direto ao albergue onde havia reservado, a algumas paradas de metrô dali. O casario é velho, você sente o peso da História sobre ele. Embora muito peque pela pouca conservação, muito tem ainda charme e beleza. Mas é preciso deixar de lado um pouco o glamour e a pompa das vistas de Roma e Florença e pensar, em vez disso, naquelas imagens típicas das vizinhanças tradicionais italianas, com a nonna gritando à vizinha da sacada da janela e a pizzeria na esquina da rua.
Bairro onde eu fiquei.
Visual típico das casas em Nápoles, com as roupas estendidas. A entrada pro meu albergue é aquele portãozinho ali à direita.
... mas do lado de dentro era bonito.
Na recepção, fui recebido por uma romena chamada Mugurela. Ela não disse de primeira que era romena, mas eu percebi. Embora muito parecidos fisicamente com os italianos, os romenos são mais taciturnos e com um breve cisma no olhar, ainda que sejam despojados e tenham aquele toque latino de malandragem. Mugurela tinha uns cabelos pretos compridos e aqueles olhos negros que te investigam. Mas era simpática. 

Sua companheira, cujo nome não perguntei, era uma filha perdida de Kurt Cobain. Ele deve ter andado pela Ucrânia, de onde ela vem. Era uma adolescente loira simpática e com aquela cara mal-dormida de quem toma todas; mas divertida. Eu falei que, pra acordar, era preciso um belo espresso italiano. "Você quer?", me perguntou ela de repente. Eu fiz aquela cara de quem não estava vendo nenhuma máquina por perto. "Vou pedir pra nós dois". De repente ela pega o telefone e pede dois espressos de uma cafeteria perto, a delivery. Olha que beleza. Em cinco minutos chegava-nos o rapaz com a bandejinha.  

Na recepção do albergue tomando café espresso a delivery com a filha ucraniana de Kurt Cobain.
Espresso na veia, era hora de circular pelo centro de Nápoles. Há uma densidade enorme de pontos a ver no centro histórico, sobretudo museus e igrejas  como costuma ser quase sempre o caso na Itália (mais aqui). 

Nápoles foi fundada pelos gregos antigos no século VI antes de Cristo (como Nea Polis, vulgo Cidade Nova). Tornou-se um dos importantes centros urbanos da antiga chamada Magna Grécia, as colônias gregas na península italiana. Quando você estuda História Antiga às vezes não lhe dizem, mas nem tudo aquilo ocorreu onde é a Grécia hoje. Muitos dos filósofos famosos, por exemplo, sequer viviam lá; muitas vezes eles eram das colônias gregas no norte da África ou na Magna Grécia. A antiga escola de Pitágoras, por exemplo, não era lá na Grécia de hoje; era aqui no sul da Itália. Essas colônias contribuiriam fatalmente para a dispersão da cultura grega dentre os romanos depois. 


Na Idade Média se fundou uma monarquia, o Reino de Nápoles, que por séculos governou todo o sul da Itália, de 1282 a 1816, quando as guerras napoleônicas desmancharam tudo. Aa unificação italiana só viria ocorrer nos anos 1850-1860, então não é à toa que há regionalismos tão grandes e que os italianos do norte e do sul às vezes se estranhem. Esse reino foi às vezes independente, outras vezes esteve sob comando da coroa espanhola  aragonesa, para ser preciso, pois a Espanha eram reinos diversos até sua unificação em 1492, e mesmo depois os reinos partícipes ainda continuariam por muito tempo administrativamente divididos, inclusive com leis diferentes em Castela, Aragão, Navarra e os outros. Nápoles estava com Aragão. Aragão é hoje é onde fica a região da Catalunha, que tem Barcelona como capital, e onde falam catalão, que é diferente do espanhol castelhano habitual. (Hoje eles querem ser de novo independentes do resto da Espanha  e, se vocês querem saber a minha opinião, acho que dentro de algumas décadas eles conseguirão). Há aqui em Nápoles, portanto, um sem fim de referências aos espanhóis e aos seus muitos reis Fernandos.  

Praça em Nápoles com homenagem ali a Dom Francisco de Paula, irmão do rei espanhol Fernando VII, em 1816. 
Esse prédio acima é neoclássico, mas Nápoles tem uma história longa, e por isso muitos estilos podem ser vistos. Os pontos mais bonitos do centro histórico são, talvez, a gótica Catedral de San Gennaro, o famoso santo a quem os italianos tanto apelam, a Cappella de SanSevero, onde está a magnífica escultura em mármore do Cristo Velato, e o Museu Nacional de Arqueologia, onde estão guardadas peças do tempo antigo clássico e os mosaicos restantes de Pompeia, a cidade romana destruída por uma erupção do Vesúvio, e que fica aqui perto. Lá estão ainda as ruínas, mas os artefatos principais foram trazidos para cá pra Nápoles. De quebra, as ruelas em si e o casario antigo do centro já dão um cenário excelente onde comer pizza, doces, e bebericar café e digestivos artesanais (hmmm!!).
Praça no centro histórico de Nápoles.
Miolo do centro histórico, com suas ruas bem movimentadas.
Mas basta você sair das vias principais que já se depara com uns becos assim.
Mas também se depara com coisas assim: a Catedral de San Gennaro.
Interior da catedral.

Já a Cappella Sansevero é bem menor (quente feito o cacete), e não é permitido tirar fotos dentro, mas há algumas no site dela própria. O mais magnífico de tudo é, sem dúvida, o nível de detalhamento e a perfeição das esculturas de mármore no interior.

Escultura do Cristo Velato, no interior da capela. Clique para ver em maior detalhe. 
Não me pergunte como é que se consegue fazer uma fineza dessas em mármore.

Depois de uma andada assim e de nutrir a alma com os olhos, era preciso nutrir o corpo com a boca. Fui buscar uma buona pizza, numa pizzeria que me haviam recomendado, Il figlio del presidente. (Aqui na Itália é essencial ter recomendações, ou você pode acabar comendo abacaxi e saindo com uma má impressão, algo que comentei mais aqui). 

Uma pizza margherita, a original! 
Olha que gozo.
Os napolitanos costumam dizer que aquilo que se faz em outras partes da Itália ou do mundo pode até ser saboroso, mas não é pizza. Pizza real só a daqui. A receita é simples: queijo mozzarella, molho de tomate, azeite de oliva e manjericão. Não há muita variedade de sabores como no Brasil (às vezes há somente esse sabor tradicional), mas percebe-se que tudo é da maior qualidade. O molho de tomate é encorpado; o manjericão chega a cheirar de longe; o azeite de oliva saboroso lhe escorre pela boca; e o queijo, em grande quantidade, estica que você se lambuza todo. E tudo barato: por 5 euros você come uma maravilha dessas.

O nome da margherita, caso você esteja curioso, vem de uma visita que a então rainha italiana Margherita de Savóia fez a Nápoles em 1899. A dinastia dos Savóia era quem governava a Itália recém-unificada. O pizzaiolo, segundo conta a história, lhe preparou três tipos, e o que ela gostou mais foi exatamente esse que têm as cores da bandeira da Itália: o queijo mozzarella branco, o molho vermelho, e o manjericão verde. (Se você aí na sua cabeça estiver dizendo "Mas mozzarella é amarelo", isto é porque você está pensando no mozzarella brasileiro, que não passa de um arremedo que italiano nenhum reconheceria. O original é branco). 


Depois da pizza, que tal um doce típico de sobremesa? Sfogliatelle é um quitute típico de Nápoles, uma massa folhada com recheio de creme de amêndoas. Qualquer bodega vende.


 "Crocante ou mórbida?", me perguntou o vendedor atrás do balcão.

 "Mórbida", respondi eu de propósito, divertido com a palavra. Significa macia.

E a seguir, nada como um licor digestivo tradicional daqui, o limoncello, feito com cascas de limão e açúcar. É uma delícia, bem doce mas azedinho. Há variações outras também, como o crema di limone, que  como sugere o nome  é cremoso. 

Sfogliatelle. É pequena mas dá pra comer mais de uma.
Casa de fabrico artesanal de limoncello (o amarelo esverdeado) e de crema de limone. Esse compartimento de metal é onde misturam as cascas ressecadas de limão ao álcool. Um cheiro bom inebriante. (Mais sobre o limoncello em Sorrento e a Costa Amalfitana)

Mas calma que ainda não acabou. As refeições na Itália são compridas, e só terminam após o café. Então vamos buscar um café espresso na rua. Como eu comentei aqui, o café na Itália é encorpado mas é pequeno, então não se sinta mal se tiver vontade de pedir um segundo. Peça. (Às vezes é tão pequeno que, só do contato com a xícara, ele já esfria, e em 1 minuto você tem que terminar, ou tomará café frio). 


Depois de muito andar, voltei ao albergue. Lembro-me de estar sentado à recepção (adoro isso) quando chegou um rapaz inglês. Enquanto ele fazia o check-in, perguntou à funcionária do albergue se Nápoles era mesmo perigosa, dizendo que ele ouviu dizer que aqui o povo toma facada na rua. "É verdade?", perguntou ele atento. Do outro lado da recepção, Ana, uma simpática polonesa que morou dois anos no Rio de Janeiro e fala português com sotaque carioca. "É verdade, eu hoje mesmo tomei uma", respondeu ela sarcástica. O inglês abriu aquele sorriso amarelo. "E você, Mairon?", me perguntou ela. "Eu também. Hoje tomei duas, mas já estou me recuperando e amanhã estou pronto pra mais outra".


Como eu disse, os europeus e norte-americanos vêm todos assustados pra cá. O nível de perigo é maior que a média europeia, mas não é nada a que não estejamos acostumados  só se lembre de ligar seu radar no "Modo Brasil". Já a sujeira da cidade compete tranquilamente com as imundas metrópoles brasileiras.

Ruas do centrão.
Aqui temos a senhora loira apontando para a bosta cremosa deixada pelo cachorro da bonitona. Cuidado onde pisa.

Os italianos em geral são simpáticos, mas muitas vezes se acham demais. Sobretudo as gerações mais jovens, que parecem muito mimadas e de ego inflado. Os latino-americanos, em comparação, são muito mais "dados". Nós reclamamos esculhambando, fazendo zoeira e muitas vezes rindo da própria miséria; já os italianos fazem mais aquela reclamação exaltada, indignada, de ego ferido e ultrajado. Claro que pela América Latina há quem se ache assim, mas aqui parece ser quase todo mundo. 

Você vai se impressionar também em ver o quanto os ditames da moda são fortes aqui  acho que mais do que em qualquer outro país do mundo. Os rapazes todos se vestem do mesmo jeito e têm o mesmo corte de cabelo: atualmente é cabelo baixo dos lados e mais alto em cima, às vezes com um pimpão na frente, tipo crista de frango; bermuda, camisa polo ou de manga curta, e sapatos baixos sem meia ou com aquela meia soquete curtinha. Quase sempre o toque final é uma tatuagem no braço ou na batata da perna. É impressionante a mono-tonia. As garotas, por sua vez, diversificam no vestir mas muito frequentemente fazem o tipo patricinha de shopping que está sempre na moda. Sério, às vezes cansa estar rodeado de gente que se crê o avatar do estilo e da sofisticação.


Aquela amabilidade humilde e despretensiosa, do tradicional estereótipo do italiano simples e ainda encontrada na América Latina, aqui você quase que só vai encontrar entre os coroas e idosos. Noutro dia me bastou chegarem umas gêmeas mexicanas na recepção, quando eu estava lá sentado de prosa, pra o contraste com os italianos ficar evidente.
Rapaziada em Nápoles. Podem ser bem apessoados, mas como me disse certa vez uma amiga brasileira que viveu aqui uns anos: às vezes essa achação demais cansa. Além disso, fica uma cultura de superficialidade  que no Brasil também existe, mas creio que em menor medida.
Estátua antiga da deusa grega Athena, no Museu Nacional de Antropologia em Nápoles. (Vai ver os italianos jovens de hoje estão buscando aquele ideal do Apollo da antiguidade, mas com a ética atual de Berlusconi em vez da formação ética do homem grego antigo). 
Interior do museu.
Escultura em mármore branco e negro.
Afrescos da Antiguidade preservados em Pompeia, hoje cá no Museu Nacional de Antropologia. Quase todos retratam as histórias da mitologia greco-romana clássica.

Eu depois escreverei sobre a minha ida a Pompeia, mas permitam-me primeiro mostrar o responsável pela sua destruição, o belo vulcão Vesúvio. Ele está logo aqui ao lado. Você pode vê-lo da costa ou de algum ponto alto da cidade, como o Castelo Sant'Elmo ou do bairro Quartieri Spagnoli  de onde eu recomendo que você vá embora antes de anoitecer. Não é favela, mas é um bairro simples de ruelas onde, digamos, as pessoas saberão que você não é dali e há registros de assaltos.
Vista de Nápoles lá do alto ao entardecer.
Da costa a vista é também muito bonita, com o mar azul. Você caminha do centro histórico e o ambiente vai ficando mais turístico e ganhando certo glamour nas ruas e calçadões principais, com garçons uniformizados e gente tomando algo nas mesas do lado de fora. É agradável. Tomando o devido cuidado, eu não vejo razão pra não se aproveitar a cidade.

Eu circulei e tomei ainda um belo sorvete antes de ser abordado pelo senegalês.
Olha que coisa bonita.
A beira-mar de Nápoles não tem praia, mas tem portos, praças com bancos, calçadões, e é bem turística. Você pode inclusive avistar o Castel dell'Ovo (sim, o nome é este mesmo), numa ilha próxima. E o que não faltam vendedores, quase sempre imigrantes de países pobres da África ou do sul da Ásia (Bangladesh, Índia, Paquistão...). 

O vendedor senegalês me viu tirar fotos e veio puxar conversa como quem não quer nada, "Você é da Califórnia? Texas?", aquele sorrisão. Senti-me o Chuck Norris, mas tive que negar. Veio-me então com umas latinidades de "A gente vê que você tem uma alma boa". Não sabia ele que estava lidando com um latino-americano bom nisso. Respondi à altura: "Se você pôde ver, é porque a sua também é muito boa". Ele ficou lisonjeado. Me jogou uma coisa geral ou outra sobre o Brasil, e mostrou-me as bugigangas que vendia, aquelas pulseiras de latão etc  aquele pseudo-artesanato de camelô. Disse-lhe que nada queria, ele insistiu, eu disse sorrindo "Não, obrigado", e ele fez uma cara de quem cheirou peido, não conversou mais, e ficou pra trás.

Esses vendedores africanos, árabes, e indianos cheios de lábia se dão mal com brasileiros. A gente ri, retribui a simpatia, mas não quer dizer que compraremos nada. E eles sempre acham que iremos. Estão acostumados a passar a perna em europeus e norte-americanos.
Área na beira-mar de Nápoles.
Vista para a marina com o vulcão Vesúvio ao fundo.

Assim é Nápoles, como esse jeito de Itália mais barra-pesada, mas não por isso menos bonita e acolhedora. É cheia de delícias, como em outras partes do país, mas requer um certo cuidado  e disposição pra andar numa cidade cujas ruas vão te lembrar mais a América Latina que a Europa.

Pra terminar, deixem-me dizer que eu fui à pizzeria mais famosa da Itália, L'Antica Pizzeria da Michele, em atividade desde 1870 e com fama renovada desde que Elizabeth Gilbert  a autora de Comer, Rezar, Amar — veio aqui. Há uma fila imensa à porta. Mas, é claro, eu encarei. Não achei a pizza assim tããão superior a outras que comi na cidade, mas é sem dúvidas excelente. No interior, o pizzaiolo mais velho — certamente alguém da família que é dona — supervisionava com olhar satisfeito, enquanto a turma jovem preparava as massas e a turistada comia como se tivesse vindo da seca do sertão. 

Caso você esteja imaginando um lugar sofisticado, está enganado: o Da Michele é tão simples quanto uma padaria da esquina, mas à moda antiga, com foto do finado dono, Seu Fulaninho sentado atrás da caixa registradora, etc. 

Eu, pra acelerar, pedi a pizza pra viagem, pra não ter que esperar por mesa. Sentei-me ali mesmo no batente da porta ao lado, na calçada da pizzeria. O molho bem líquido já vazava pelo papelão da caixa onde veio a pizza e pingava no chão. Um pingo d'água, daqueles de exterior de ar condicionado, caiu no meio da minha pizza, mas quem liga? Me lambuzei.
L'Antica Pizzeria da Michele.