sexta-feira, 31 de maio de 2013

Desembarcando na Turquia: da muvuca às ruínas de Éfeso



A Turquia se tornou um dos destinos favoritos dos brasileiros. Na verdade, os ocidentais em geral finalmente "descobriram" Istambul, a Capadócia e o restante da Turquia. Vide não só a novela da Globo, mas também a quantidade crescente de filmes americanos com cenas no país, a exemplo do último James Bond.

A Turquia é uma versão light da Índia. Se você vier da Grécia (como eu fiz), mesmo a Grécia já sendo um país, digamos, bem animado e descolado, na Turquia você percebe que a coisa sobe um grau, e a muvuca aumenta. Há muito mais gente (75 milhões de turcos comparados a 10 milhões de gregos), a malandragem é maior, e há muito mais pobreza.

Quando eu cheguei já era de tardinha, vendo o sol se pôr do barco que me trouxe da ilha grega de Samos até o porto turco de Kusadasi, na costa do mar Egeu.
Deixando pra trás a Grécia...
E chegando a Kusadasi, na Turquia. Olha o arzão de subdesenvolvimento.

Chegamos eu e a minha mochila ao ponto de fronteira no porto, e passamos sem dificuldade. Eu havia feito uma reserva num hotel simples, mas não parecia lá muito fácil de achar. Tudo o que eu tinha era o nome da rua, número, e uma ideia geral da localização. Comecei a andar e fui vendo os vários bazares, primeiro aqueles bem arrumadinhos pra turista, logo na saída do porto, e depois os bazares mais povão mesmo, parecendo o comércio do centro de qualquer metrópole brasileira. De qualquer forma, aqui em Kusadasi quase tudo alveja os turistas, já que muitos cruzeiros europeus param aqui. São muitos os bares pra alemão rico, as boates "de música típica" que na verdade tocam a macarena ou qualquer esculhambação que faça turista bêbado rebolar, e becos e ruelas escuras cheias de gatos revirando latas de lixo.

Enquanto isso, hotel que é bom, nada. Já era noite, e eu fui pedindo informação a qualquer um, basicamente falando o nome do hotel, da rua, e fazendo aquela cara de indagação. Depois de muito rodar, numa ruela escura -- por onde eu dificilmente andaria se fosse no Brasil  achei o hotel. Lá dentro estava Sezgins, o dono, um baixinho astuto, daqueles coroas morenos de 45 anos que usam camisa polo apertada, cabelinho arrumado, e que se acham o Paolo Maldini.
A bela localização do meu hotel.

Não deu 5 minutos e Sezgins começou a tentar me empurrar pacote pra ir a Éfeso, as antigas ruínas gregas, que ficam bem perto daqui. É claro que eu queria ir, mas a "sabidoria" dele com aquela história de "Tem poucos lugares, se você quiser ir tem que me dizer logo", querendo me vender o peixe dele, era irritante. Apesar disso, aceitei. O pacote de 1 dia incluiria uma ida à casa de Maria (sim, ela mesma, a Maria mãe de Jesus, que se acredita ter morado nesta região depois do calvário), e eu sabia que ir lá por conta própria era difícil, já que fica numa área afastada, e um táxi seria caro demais. Fiz a vontade do Sezgins, deixei minha mochila no hotel (bem furreca, diga-se de passagem), e saí pra comer alguma coisa e dar uma volta. Afinal, eu queria passar não mais que uma noite aqui, e depois de visitar Éfeso e a casa de Maria já seguir viagem pelo interior do país.

(Se alguém estiver estranhando a existência de ruínas gregas na atual Turquia, lembrem-se de que tudo isto aqui era território dos gregos antigos. Depois foi do Império Bizantino  nada mais que uma continuação daquela cultura grega romanizada e convertida ao cristianismo , e foi só lá pelo século XI depois de Cristo que os turcos aparecem por aqui, migrando da Ásia central, daí deflagrando as Cruzadas cristãs para retomada do território, etc.).

As ruas do centro de Kusadasi. O "kebab" ali, pra quem não conhece, é um misturão com caldo de infinitos tipos.
Calçadão em Kusadasi com lojas orientadas principalmente para os turistas.
Cantor vestido de Elvis fazendo cena para turistas num bar.
As inúmeras propagandas de cabaré nas ruas de Kusadasi. Cada um menos autêntico que o outro.

Dei uma volta mas não estava a fim de entrar sozinho em cabaré. Eu bem tinha vontade de ver algo com música e dança típicas da Turquia, mas não se iluda. Esses cabarés daqui não tem nada de típico, são um bando de bares pega-turista bem genéricos com dançarinas enfeitadas e algumas músicas pop pra fazer europeu achar que está conhecendo a Turquia. É mais fácil ouvi-los tocar kuduro que qualquer música tradicional turca.

Circulei aproveitando-me do meu disfarce de turco. Afinal, com a minha cara, ninguém aqui diz que eu sou estrangeiro  o que é uma vantagem ótima pra evitar a chateação dos lojistas chamando você a toda hora pra ver isso ou aquilo, como acontece com os pobres alourados que vem aqui. Toda a minha solidariedade a vocês que são mais branquinhos. Comprei umas roupas de algodão excelentes e baratas depois de barganhar (aqui, como na Índia, quase nada tem preço fixo, depende de quanto o vendedor quer te cobrar), e caminhei pra conhecer a área. Vi desde os calçadões repletos de lojas até as ruas de trás, bem quietas, cheias de gatos revirando lixo. Os muçulmanos têm certas restrições aos cachorros  na Indonésia eu aprendi que eles consideram a saliva do cachorro algo "impuro", e que muitos creem que onde tem cachorro os anjos do senhor não vêm (agora durma com um barulho desse e diga que passou a noite bem).

Sentei em algum lugar pra comer, no que foi o equivalente turco aos trailers que vendem sanduíche nas cidades brasileiras. Aqui são os doners (um tipo de pão chato aberto no meio com algo dentro) e os kebabs, que tradicionalmente são carnes ou outros preparos em molhos condimentados, mas que na versão fast-food foi resumido a pedaços de carne de terceira prensada suando gordura. Daí a mágica do doner kebab, que é a tal carne dentro do tal pão -- pra quem não sabe, o fast-food mais comum na Europa hoje em dia.

Obviamente eu pedi outra coisa. Fiquei com a versão de falafel, que são aqueles bolinhos de grão-de-bico fritos com tempero e que você acha em qualquer restaurante turco ou árabe. De quebra, vieram vagens cruas, que eles aqui pelo visto comem como tira-gosto.
Minha mesa de fast-food, com os apetrechos característicos e as vagens de tira-gosto.

No dia seguinte, eu mal havia desfeito a minha mochila. Eu estava preparado para ir a Éfeso, à casa de Maria, e para zarpar para outra cidade ao retornar. Na internet eu havia visto indícios de que o último ônibus pra onde eu queria ir saía às 4 da tarde, e o Sezgins havia me jurado que o passeio acabava e retornava a Kusadasi às 3. "Fique tranquilo que quando você chegar eu olho os ônibus pra você. Se não der, você fica aqui mais uma noite, e viaja na manhã seguinte", complementou ele. Você também ficou com aquela ponta de suspeita de que o baixinho queria me passar a perna? Por via das dúvidas, saí com mochila e tudo, e a dexaria na van que havia chegado pra nos levar ao passeio.

A seguir, a ida a Éfeso, à casa de Maria, e a tentativa de escapar do Sezgins.


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Sayonara, Nihon!


Aeroporto de Narita, em Tóquio.

Foram 20 dias cá em "Cipango", como se referiu Marco Polo ao Japão. Cipan era como os chineses antigos se referiam àquela terra  literalmente "origem do sol". Guó era "reino", daí Cipan-guó. Os portugueses, primeiros europeus a navegar à Ásia, adotaram o nome e esse ganhou variações pelas línguas ocidentais. Já os próprios japoneses, desde as suas antigas correspondências com a Dinastia Sui (581-618 DC) da China, passaram a identificar a sua terra como Nihon ou Nippon (variações do Cipan, com o mesmo significado), nomes mantidos até hoje.

Mas ao contrário de Marco Polo (que retornou da China), eu cheguei ao Japão. Foi o lugar mais longe onde já estive, e  de acordo com o Google Earth  para superá-lo eu agora precisarei ir às Filipinas ou a Guam, território dos Estados Unidos no Pacífico. (Isto é, se eu não embarcar em alguma viagem à lua nesses próximos anos). Veremos.

Apesar de não ter exaurido tudo o que o Japão é e tem a oferecer, fiz questão de conhecer o que pude e de mostrar altos e baixos, dentre as várias facetas dessa complexa nação. Eu não quis ficar naquela adoração superficial que os guias de viagem fazem sobre qualquer lugar que escrevem a respeito. Fiz questão de mostrar vários lados, inclusive, para que nós do Brasil  acostumadíssimos a achar que mazelas sociais só existem aqui  vejamos que em algumas coisas nós estamos à frente, como na igualdade de gênero. Por outro lado, é preciso reconhecer as grandes qualidades do Japão e a superação desse povo que foi capaz de construir um país desenvolvido depois dos arrasos da guerra..

A experiência é fabulosa e eu recomendo a todos, não só pelo exotismo cultural e pelas peculiaridades, mas também para conhecer como é possível ser desenvolvimento sem adotar completamente os padrões europeus\norte-americanos de sociedade. Da mesma forma que o Japão pôde se desenvolver mantendo muito da sua cultura e segue lidando com problemas sociais arraigados (como o machismo), nós no Brasil temos nossos problemas sociais a enfrentar mas podemos, sim, também construir um desenvolvimento sui generis a partir da nossa cultura.

Sayonara, Nihon! Obrigado por todas as lições, e até a próxima.

(Em breve, a viagem pelo Mediterrâno continua, com a chegada à Turquia.)

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Japão, um país de homens?

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Anúncio de um maid café, tipo de lanchonete onde as garçonetes se vestem e se comportam
como serviçais, por 80 reais.

O Japão é um país machista  não diferentemente do restante da Ásia, com algumas particularidades aqui e ali. Não é mera opinião; são o que os dados mostram. Dentre os países ricos, o Japão é de longe o mais desigual em questão de gênero. Em 2012 o relatório anual do Fórum Econômico Mundial o classificou na centésima posição em termos de paridade de oportunidades entre homens e mulheres, ao lado de países como Gâmbia e Tajiquistão.

Alguns questionam, dizendo que culturas são diferentes, e que muitas mulheres japonesas estão contentes em deixar os homens à frente dos trabalhos e ser donas de casa. Talvez haja muita dona de casa feliz no Japão, mas o buraco é mais embaixo: se refere a oportunidades de emprego e na política, por exemplo, universos amplamente masculinos. Diz-se também que no Japão se espera que todos trabalhem até as 10 da noite, e que portanto não há condições para ambos trabalharem fora. Mas isso não explica a galinhagem quase que institucionalizada dos homens japoneses, que saem rotineiramente com "amantes", a esposa sabe e fica tudo por isso mesmo porque "as coisas são assim mesmo e não há o que se fazer".

Qualquer mulher ocidental que vá ao Japão pode achar tudo muito bonito e dizer "quero morar aqui!", mas não se deve idealizar e esquecer este lado que às vezes só se nota quando se passa um tempo maior no país. Mas as visitantes  mais observadoras vão perceber, e os homens de olhar crítico também. Tóquio  e outras cidades japonesas  são cheias de apologias à cultura machista, algumas mais evidentes e outras menos.

Dentre as mais evidentes para o turista estão os maid cafés, da foto acima. Esses cafés estão por toda parte, especialmente nas áreas jovens das grandes cidades. A ideia é as garçonetes estarem vestidas de empregadas domésticas francesas do século XIX (daquelas de uniforme e tiara na cabeça), e te tratarem como tratariam um aristocrata, então vão chamá-lo de master enquanto te atendem. Basicamente, a ideia é fazer você sentir que elas são suas servas, mas com um toque meio pervertido em que elas se comportam como menininhas ingênuas, como as propagandas nas fotos sugerem. Portanto elas fazem coisas tipo se ajoelhar diante de você e desenhar um coração ou um ursinho com ketchup no seu omelete. Parte dos turistas vai e acha curioso e divertido, mas eu pessoalmente acho uma bizarrice sem tamanho, e ainda com ares de pedofilia.
Mais um anúncio de maid café, com as garçonetes pagando de menininhas inocentes
para atender às fantasias dos clientes

Mas além dos maid cafés, há várias outras coisas mais veladas que só um nativo ou alguém familizariado com o local vai saber te mostrar. Por sorte, eu ainda tinha uma amiga em Tóquio a encontrar, e um distrito da cidade a explorar: Ginza, famoso distrito das lojas chiques de departamentos, das marcas famosas e dos hotéis e cafés de luxo. Minha amiga Reiko acontece de ser um pouco high society, então me convidou para visitar esta área de Tóquio. Eu havia acabado de chegar de Hiroshima numa longa mas razoavelmente confortável viagem de 12 horas de ônibus. Meu avião à Europa saía no dia seguinte, então era minha despedida desta estadia no Japão.
Prédios reluzentes de Ginza num fim de tarde nublado.

O ambiente é mais moderno, a là América do Norte, do que as correspondentes europeias desse tipo de área, que lá tendem a ser mais "clássicas", com prédios do século XIX e calçadões. Aqui o estilo é mais de prédios altos e metálicos. Passamos batidos pelas Pradas e Louis Vuittons da vida, já que não havia interesse da minha parte, e fomos nos distrair na loja de cinco andares showroom da Sony. Um espetáculo para qualquer um que gosta de eletrônicos  e até mesmo pra quem não gosta tanto assim. Nessa foto abaixo estamos nós experimentando uma TV 3D na loja.
Experimentando televisão 3D na loja da Sony no distrito de Ginza, em Tóquio.

Saindo dali fomos tomar um café  mas não num daqueles das fotos. Aqui em Ginza a coisa não é coloridinha e bonitinha pra jovem daquele jeito, o ambiente é muito mais chique: cafés finos, com interiores de madeira e relógio do vovô na parede, frequentados por executivos e outros consumidores bons de bolso.  O-oh... perigo à vista. Quando abri o cardápio (e, como já disse, eu sou do tipo de olha o cardápio pela coluna do lado direito), tomei aquele susto com os preços e tive que disfarçar, mantendo a normalidade e um ar natural diante da xícara de café a 25 reais.

Reiko era só alegria. Pediu café com creme, bolo... Eu, como me recusei a pagar por um café tão caro, resolvi pegar só um pedaço de bolo  que não estava mau mas que não era nenhuma oitava maravilha do mundo que justificasse o preço. Ao sermos atendidos, descobri que as garçonetes aqui também usam uniforme e tiarinha, mas sem a abestalhação de desenhar ursinho com ketchup.
Ao lado de uma garçonete uniformizada num café no distrito de Ginza, Tóquio.

Entre um papo e outro, Reiko me falou que aqui no Japão os negócios raramente são fechados dentro das empresas. Os executivos preferem ficar, digamos, mais à vontade, e se reúnem em barzinhos chiques de distritos como Ginza depois do expediente. Esses bares normalmente ficam dentro de prédios altos, e são bem reservados. Demos uma de gaiatos depois desse café e fomos dar uma espiada em alguns, sempre com aquele ar de barzinho de máfia.

Nesses locais, as personagens que não podem faltar são as hostesses (literalmente, "anfitriãs"), mulheres que trabalham fazendo companhia aos executivos nessas ocasiões, servindo bebida, acendendo cigarro, e oferecendo a coxa para o executivo passar a mão. Às vezes rola um "algo mais" depois, embora em princípio isso não faça parte do trabalho dela.

Enquanto isso, em plena semana, a esposa está em casa tomando conta dos filhos. Que maravilha de igualdade de gêneros, hein?
Prédio repleto de hostess clubs em Ginza, Tóquio.
Hostess caminha arrumada pelas ruas de Ginza, ao trabalho.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Na ilha de Miyajima

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Saindo do Memorial da Paz, fui jantar num restaurantezinho pequeno com ar de boteco no centro de Hiroshima. Um dos donos estava por trás do balcão e o outro sentava numa das mesas, com uma toalha branca jogada sobre o ombro, limpando a mão e assistindo televisão (visualizou?). Como em quaisquer desses lugares no Japão, ninguém fala inglês. O jeito é ir pelas figuras do cardápio ou arriscar-se a uma das inúmeras sopas de macarrão em que você não sabe exatamente o que vem dentro. Os riscos não são tão altos, mas pode ser que venha algo tipo ovo cru, cabeça de peixe, ou uma bela posta de lombo  o que eu como vegetariano não ia curtir, mas que eles aqui adoram, apesar de todo o nosso estereótipo de que japonês só come peixe. Mas nesse dia consegui evitar todos: acabei recebendo algo com legumes e bastante pimenta.

Depois fui ao albergue, que não tinha nada de extraordinário (nem Hiroshima, diga-se de passagem, afora o Memorial da Paz), mas era confortável, assim como Hiroshima também é arrumadinha. A recepcionista, com seus 1,75m, deve ser tratada como uma gigante no Japão, onde as pessoas tendem a ser baixinhas. O melhor de tudo foi um mapa múndi onde ela me pediu que eu marcasse o lugar de onde eu era. Descobri como se escreve "Feira de Santana" em japonês. Confiram abaixo.
Óbvio que eu era o primeiro feirense a pisar lá. Está logo ali, a noroeste do pino amarelo mais alto (Salvador).

Ela leu pra mim Feira de Santana com sotaque japonês, e disse "É isso mesmo", com aquele sorriso e aquela cara feliz que só asiáticos conseguem fazer.

O dia seguinte prometia ser mais alegre que a minha visita ao Memorial da Paz. Quem vem a Hiroshima deve, por força moral e cívica, ir à ilha de Miyajima, um pequenino paraíso aqui no sul do Japão. Não há pontes até a ilha, e olha que os japoneses adoram construir coisas. Lá só se chega de ferry. A ilha é basicamente turística, com um monte a ser escalado e um templo à beira da praia.

Saí logo de manhã, para que as hordas de turistas (japoneses mesmo; raridade era ver um ocidental) não chegassem antes de mim. Comprei um chá quente de gengibre na máquina na rua e segui para a estação de trem, pra pegar um que me levasse à costa. De Hiroshima à saída do ferry não são mais que 30 minutos. Dali você já tem uma bela visão do litoral, com suas ilhas e morros ainda cobertos de vegetação.
Foto tirada do ferry, pelo litoral sul da ilha principal do Japão (Honshu).

Descendo em Miyajima, você respira um ar muito gostoso. O clima é agradabilíssimo.







Um dos grandes "tchans" da ilha é o templo à beira da praia, nessa foto acima. Quando a maré está alta ele fica todo sobre a água. Mas como nem só de ar e de belas paisagens vive o homem, eu fui  tomar café num lugar onde o sabão do banheiro era uma goma roxa onde você esfrega a mão e onde o japonês me enrolou com um "suco" que metade do copo era tomada por gelo.

Me lembrem de voltar aqui no outono. Dizem que a ilha fica coberta do laranja e vermelho das árvores de maple (aquela mesma da bandeira canadense). A folha de maple é símbolo da ilha, então aqui se fazem biscoitos, bolinhos de peixe e tudo o mais que você imaginar no formato da folha. Além da sua parte natural e quieta, a ilha tem umas ruazinhas repletas de barracas vendendo petiscos e souvenirs.
Algumas barraquinhas simples...
... outras mais arrumadas (esta vendendo pãezinhos)... 
... e este vendendo algo no formato da folha de maple e que eu acabei comprando...
... e que se revelou ser bolinho de peixe (que, se ninguém te disser, você nunca descobrirá que foi de peixe)...
... e o maravilhoso sorvete de batata-doce com pedaço de batata-doce. Delicioso.

Só evite juntar lixo aqui, pois como em muitas partes do Japão, é capaz de você andar horas sem achar uma lixeira. Mesmo assim está tudo limpo (salve a educação!). Esse copinho do sorvete e o pauzinho do bolinho de peixe eu acho que carreguei comigo por uma hora ou mais, até achar uma lixeira num banheiro público.

Me livrando deles, fui caminhar pelos templos e ver o torii (portal xintoísta) na água, uma das vistas mais fotografadas do Japão. Aqui, como em Nara, há também gazelas caminhando por toda parte e interagindo com os visitantes.
Portal xintoísta na água, uma das marcas de Miyajima.
Feito com troncos de cânfora, que é resistente ao apodrecimento.
Templo xintoísta de Itsukushima, à beira da praia.


Monja dando algo de comer à gazela.

A ilha como um todo é tida como um santuário, mantido por esse templo xintoísta local. Diz-se que eles fizeram uma grande limpeza espiritual na ilha após a Batalha de Miyajima, em 1555. Como quase todas as guerras internas no Japão, essa foi uma disputa entre clãs familiares pelo controle da região, e o resultado foram quase 5 mil mortos nesta ilha. Não sei exatamente como a limpeza espiritual aconteceu, mas hoje há a interessante regra de que ninguém pode nascer e nem morrer na ilha. Não acredito que consigam impedir ninguém de morrer subitamente aí, mas certamente não há aqui nem hospitais nem maternidades.
Pintura feita no séc XIX da Batalha de Miyajima em 1555. Percebam o templo, no mesmo lugar onde é hoje.

Literalmente, o ponto alto de Miyajima é o Monte Misen. Você pode subir o caminho inteiro a pé ou fazer como eu e pegar o bondinho, que te leva quase ao tipo e te deixa só com os 40 minutos finais de caminhada, no alto. Como eu tinha um ônibus pra pegar à noite lá em Hiroshima, não dava pra passar o dia na ilha fazendo trilha, então fui direto ao ponto. No alto há belas vistas, boas caminhadas e mais templos, como o Santuário dos Namorados.
Subida para o bondinho que leva ao alto do Monte Misen, em Miyajima.
Vista de dentro do bondinho.
Vista do alto do monte.


Santuário dos Namorados (ver abaixo).
Ali a chama queima initerruptamente há 1.200 anos, fervendo um caldeirão de água benta. Dali os casais tiram com uma concha e bebem nuns copinhos, para serem abençoados. 
  
A foto está enevoada por causa da fumaça do incenso dentro do Santuário. Lá dentro é um tanto asfixiante, mas dá pra suportar, e o cheiro é bom. Mas não, eu não cheguei a beber da água benta fervida. Você tira com uma concha e coloca nos copos pra ambos beberem. Como é algo pra casais, não achei que faria sentido beber sozinho (nem eu queria correr o risco de, de alguma forma, consolidar minha solteirice bebendo a tal água sozinho).

Dali até o pico ainda há uma caminhada breve por trilhas, com escadarias que vão fazendo você suar apesar do frio de inverno que estava.
Trilha já no alto do Monte Misen, Miyajima.

A vista do cume é, mais uma vez, recompensadora. Você fica lá sentado na pedra só olhando... e dá vontade de passar horas lá quieto, só apreciando a tranquilidade.
Vista do alto do Monte Misen, em Miyajima.
No alto do Monte Misen, em Miyajima.

Mas acabei olhando foi pro relógio, e em dado momento vi que já era hora de partir. Meu ônibus para Tóquio saía de Hiroshima hoje à noite, e eu ainda precisava fazer todo o percurso de volta.

A tarde já estava caindo quando eu retornei à parte baixa da ilha. A maré havia baixado, e olha só como eu encontrei o santuário:
Templo de Itsukushima com a maré baixa. O mesmo portal que estava na água pela manhã.

Como a caminhada havia aberto a minha fome e eu não tinha tempo para parar e fazer uma refeição, me supri de batatas doces. Eles aqui no Japão têm esse costume de vender batatas-doces cozidas ainda quentinhas, e são mesmo macias e deliciosas. Além disso, passei por uma loja lotada e não resisti  precisava ver do que se tratava. Acabou sendo uma loja de biscoitos de vários sabores, no formato da folha de maple. Além dos sabores costumeiros, como chá verde ou feijão, havia o mais exótico  que eu comprei  que foi o biscoito de carvão de bambu. O sabor é de queimado mesmo. Eu não sei como é que um negócio desse vende. Acho que só pros curiosos como eu.
O biscoito de carvão de bambu.

Terminada a minha degustação um tanto exótica, fui novamente ao ferry e fiz meu caminho de volta até Hiroshima. Meu ônibus noturno para Tóquio já estava reservado (acabou o dinheiro pra ficar passeando de trem-bala). Daqui até lá seriam 12h. Era a viagem final antes de me despedir do Japão.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A triste sina de Hiroshima

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A triste sina de Hiroshima


8:15 da manhã, 6 de agosto de 1945.



As pessoas aguardavam a abertura dos bancos e das lojas. Não se pode dizer que era uma manhã "normal", pois já há oito anos o Japão estava em "guerra total". O risco de invasão era real, e a derrota já era certa. Mas se por um lado os líderes do Japão já tinham noção da circunstância e as lideranças ocidentais já até repartiam os espólios de guerra, as pessoas comuns  sempre as que arcam com os maiores custos  dificilmente imaginavam o que estava por vir.

Hiroshima entrou para a História como a primeira vítima de uma bomba atômica. Um Memorial à Paz foi construído em 1955, e até hoje o prefeito da cidade escreve uma carta de repúdio ao líder de cada país que realize um teste nuclear, seja ele a Coreia do Norte ou os Estados Unidos. O memorial segue aberto à visitação, e embora não seja a visita mais alegre que você irá fazer, é uma parada importante para quem visita o Japão (é como ir a Auschwitz). Foi pra lá que eu fui.
Fotografia de Hiroshima em 1945 após a bomba.

Hoje a cidade é verde e tranquila. Se você não soubesse do ocorrido, dificilmente suspeitaria. Descendo na estação de trens, o que você vê é uma estrutura moderna  e em alguns locais até já dando sinais de precisar de uma renovação novamente  fruto do "milagre econômico" japonês entre os anos 60 e 80, era de vacas gordas. Um bonde elétrico te leva da estação pela avenida principal da cidade (que hoje tem mais de 1 milhão de habitantes), cruzando o Rio Ota e os vários canais para o mar, e só o que lhe chamará a atenção como destoante na paisagem será um velho domo, arruinado, estranhamente não reformado. Os japoneses preferiram deixá-lo do jeito que estava na foto acima, como uma eterna lembrança do ocorrido.
Hiroshima hoje. Parque do Memorial.

Nem passei pelo albergue que havia reservado: da estação fui direto ao memorial, com mochila e tudo. Pelo módico preço equivalente a 1 real você adentra o museu, nessa área verde da foto, o Parque do Memorial. A visita deve ser feita com muito estômago, pois é tão informativa quanto desalentadora. Começa com um vídeo épico, de trilha sonora tocante e filmagens da época de antes da bomba e do evento. E daí o museu te leva através da História, de fotos das vítimas, e de objetos que resistiram, como aquele relógio de bolso parado na hora da explosão.

Eu fiquei contente de ver que o Memorial é honesto quanto às responsabilidades japonesas naquele período. O Japão tem fama de omitir no ensino de História as atrocidades cometidas em seu expansionismo asiático, contra populações na Indonésia, no Vietnã, na Coreia, e sobretudo na China. Os líderes japoneses até hoje celebram como "herois" alguns criminosos de guerra da época. No entanto, o museu é honesto em retratar como os japoneses massacraram aqueles outros povos asiáticos, seguindo a política de expulsar os impérios europeus mas substituí-los  uma filosofia de "a Ásia para os asiáticos", uma adaptação da Doutrina Monroe, em que os Estados Unidos diziam "a América para os americanos". Uma pena que tivessem gostado também da ideologia do "grande porrete" (big stick) do Presidente Theodore Roosevelt, tio-avô de Franklin D. Roosevelt (presidente dos EUA na segunda guerra), e que consistia em intervir na política dos outros países do continente, na prática para satisfazer aos interesses nacionais daquele país.

Pra quem não sabe, a Segunda Guerra Mundial começou mais cedo na Ásia  em 1937 (e não em 1939) com a explosão dos conflitos imperiais japoneses na China. Daí foram milhões de mortos e uma história de massacres até 1945. Não cabe aqui recontar toda a trama da Segunda Guerra, mas o Memorial explica, por exemplo, o porquê do bombardeio atômico ao Japão e o porquê de Hiroshima ter sido escolhida.

Correspondências entre Albert Einstein e o Presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt mostram o cientista informando das possibilidades de se extrair energia de urânio e de se fazer bombas a partir dele antes que os alemães o fizessem, e entre Roosevelt e Churchill (o premiê britânico) considerando lançar a bomba sobre o Japão até sua rendição completa. Albert Einstein depois escreveria, meses antes de morrer, que essa carta a Roosevelt foi o grande erro da sua vida.

As razões para o bombardeio, segundo o Memorial, foram três: (1) os EUA queriam mostrar seu poderio para a União Soviética (URSS); (2) queriam também forçá-la a declarar guerra ao Japão e tomar parte nos esforços de guerra (o que a URSS veio a fazer dois dias após a bomba, rompendo o pacto de neutralidade que havia assinado com o Japão, mas basicamente só para ganhar nos espólios da guerra). E, finalmente, (3) o Japão se recusou a se render e a aceitar os termos da Declaração de Potsdam, escrita pelos poderes aliados em julho de 1945, já após a rendição alemã. O povo japonês descobriu sobre o ultimato não por que o governo informou, mas devido a panfletos que a aeronáutica americana jogou, e transmissões de rádio (que os japoneses eram proibidos de ler e de ouvir, mas o fizeram mesmo assim). Aí o primeiro-ministro japonês foi aos meios de comunicação dizer que o Japão ignorava o ultimato. Má escolha.

Hiroshima foi escolhida porque já há algumas décadas era uma central militar importante para o exército japonês, e porque não possuía campos de prisioneiros aliados. Além disso, era uma área ampla e que permitiria medir bem os efeitos da bomba  por isso, a força aérea ficou proibida de bombardear Hiroshima nos dias que antecederam o ataque atômico, para que se pudesse medir a real potência deste.

A bomba foi lançada às 8:15 da manhã de 6 de agosto de 1945. Ao contrário do que se pensa, ela não explode no chão, mas no ar, neste caso a 600m de altura, e matou em torno de 80 mil pessoas instantaneamente (30% da população de Hiroshima na época). Outros 70,000 morreram depois, das queimaduras e dos outros efeitos da radiação. O fogo se espalhou pela cidade, e depois uma chuva negra e oleosa caiu em Hiroshima trazendo ainda a fuligem e as partículas radioativas suspensas na atmosfera.
Fotografia da explosão, no Memorial à Paz.
Velotrol de metal que restou.
A sombra. Foi o que restou do cidadão que estava sentado nesse degrau.
Vítima de queimaduras faciais.


Ainda assim o governo japonês não se rendeu. Não estavam dispostos a aceitar nenhuma intrusão nos seus domínios na Coreia ou em Taiwan. A resposta foi uma declaração de guerra da União Soviética, que invadiu   e tomou a posse japonesa da Manchúria na China. Quando soube, o governo japonês declarou lei marcial, para que ninguém se atrevesse a admitir rendição. A obstinação custou caro.

Em 9 de agosto, portanto três dias depois, veio Nagasaki. Você veja como é o apego das elites ao poder: a demanda principal do governo japonês era que a rendição "não comprometesse as prerrogativas do imperador como soberano". Dá vontade de meter a mão num indivíduo desse. Os EUA já discutiam um terceiro ataque para 19 de agosto, mais três em setembro, e outros três em outubro, até que o Japão se rendesse. Em 14 de agosto o imperador Hirohito veio à razão e realizou um pronunciamento de rádio à população anunciando a rendição. A rendição formalmente aconteceu dia 2 de setembro, e dezenas de milhares de tropas norte-americanas ocuparam o Japão. Desnecessário dizer que as posses ultramarinas japonesas foram perdidas: logo a Coreia, o Vietnã e a Indonésia se tornariam independentes novamente, e Taiwan e a Manchúria voltaram para a China.

Aí começou o outro problema: a censura americana às imagens e filmagens da flagelação humana causada pela bomba. Por décadas certos documentários foram mantidos "top secret", ao contrário do que fizeram com as imagens dos campos de concentração nazista -- como se a desgraça humana tivesse sido muito diferente. Felizmente, hoje já se reconhece a desumanidade do ataque, apesar de toda a motivação de guerra.
Parque do Memorial hoje.
Memorial às vítimas. Flores e uma chama, com o domo lá atrás.
Criança olha para o domo atômico em Hiroshima.

Como eu disse, é desalentador. Depois de visitar o museu, ainda fiquei um tempo pela praça, e tirei as fotos acima. Muitas crianças correndo. A grande conquista é haver hoje uma mentalidade diferente, menos belicosa, e uma maior compreensão dos danos que a guerra pode causar. Pra quem não sabe, até hoje o Japão é proibido de ter exército, marinha ou aeronáutica, por força da sua própria constituição, feita sob pressão americana no pós-guerra. Em virtude da Guerra da Coreia nos anos 50, o general Douglas MacArthur permitiu que uma força japonesa de auto-defesa fosse constituída, o que veio a se desenvolver num aparato avançado hoje em dia, mas ainda assim bastante limitado. Ainda hoje os EUA têm cerca de 40 mil militares em solo japonês, e 5 mil civis do seu departamento de defesa. Por ano, o Japão arca com em média 2 bilhões de dólares dos custos dessas bases americanas em seu solo. Os EUA, por sua vez, se comprometem a defender o Japão de qualquer hostilidade estrangeira.

Hoje em dia, em tempos de crise econômica, de uma China forte e de Coreia do Norte agressiva, há um movimento cada vez mais forte no Japão para se cessarem esses gastos, retirar o contingente americano, e se emendar a Constituição para que permita a constituição de Forças Armadas de verdade. Vamos esperar que as lições da História sejam perenes, e que a memória não seja curta demais para questões tão importantes.
O domo atômico em Hiroshima.