sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Na Terra dos Mayas: Chichén Itzá e arredores


Cá estou, na terra onde há 4.000 anos vive aqui o povo indígena Maya. Esta é a Península de Yucatán, sudeste do México, cerca dos países centro-americanos Guatemala e Belize. Em muitos aspectos os Mayas foram a civilização pré-colombina mais avançada. Eram excelentes astrônomos, matemáticos (tinham o zero, que os romanos não tinham e que os europeus só aprenderiam depois, com os números arábicos que usamos até hoje), tinham um calendário complexo, e tinham escrita em hieróglifos, como os egípcios antigos, mas estes de cá nunca foram inteiramente decifrados.

Entretanto, caso você creia que os Mayas sumiram tal qual os antigos egípcios, está enganado. (Os egípcios de hoje são árabes e nada tem a ver com os egípcios antigos). Aqui no sul do México e na América Central mais de cinco milhões de pessoas são mayas, falam línguas mayas, e outros milhões são mestiços de sangue maya em maior ou menor grau. A cultura maya segue viva, ainda que surrada pelas imposições dos espanhóis no tempo de colônia e, depois, por governos que pouco têm lhes feito caso. Mas a cultura Maya está presente nos belíssimos monumentos de pedra remanescentes, assim como na gente, nas tradições, e nos saberes.

Os Mayas antigos viviam em cidades-estado, politicamente independentes mas compartilhando uma cultura comum, tal qual as cidades da Grécia Antiga. A mais famosa delas  ainda que não a mais bonita, a meu ver  é Chichén Itzá, a "Cidade do Poço dos Bruxos da Água", datada de 600-800DC, era clássica da civilização maya. Ela foi recentemente eleita como uma das novas 7 Maravilhas do Mundo. Foi um passeio ao mesmo tempo encantador, engraçado, e indignante.
Localização da Península de Yucatán.
Era de manhã na praça quando veio a van de Manuel Jesús me pegar. Éramos umas 12 pessoas, em sua maioria casais mexicanos de meia idade  que logo me adotariam com aquela atitude dos tios e tias brasileiros, com direito a todas aquelas perguntas de reunião de família. Eu era o único estrangeiro. Manuel Jesús, funcionário da agência de turismo, seria o nosso guia e motorista hoje.

Manuel Jesús era um sujeito de seus 50 anos, simples, feito humilde pela vida  não sem antes ela ter-lhe soltado uns parafusos. Ele tinha um pouco a feição de Zacarias, o finado trapalhão, só que com cabelo de verdade, partido ao meio, preto e ondulado, e usava uns óculos escuros largos e espelhados tipo chefe de cartel. Mas apesar do ar, seus olhos miúdos eram humildes e estavam quase sempre no infinito. Metade da cabeça dele parecia estar sempre ocupada com alguma coisa não resolvida e que nos era inacessível. Ele jamais se destemperava. Às vezes soltava uma risada tímida, franca, e nos explicava as coisas com a mesma voz ritmada e solene de quem lê passagens da Bíblia.

A primeira parada do tour seria o pueblo mágico de Izamal, uma cidadezinha colonial toda pintada de amarelo ocre e branco. ("Pueblo mágico" é publicidade mexicana para dizer que o lugar é bonitinho). Nos instruiu Manuel Jesús que "A cidade costumava ser toda amarelo ocre, até 1993, com a visita do santo papa João Paulo II  que descanse em paz  quando pintaram partes de branco para fazer as cores da bandeira do Vaticano, amarela e branca". Manuel Jesús não falhou uma só vez em inserir o "que descanse em paz" nas múltiplas vezes em que mencionou João Paulo II.

Os mexicanos, vocês talvez não saibam, são muito mais tradicionais que os brasileiros, sobretudo em seu catolicismo. Não são todos, mas aqui me parece muito comum um tradicionalismo religioso daquele nível do interior do Nordeste brasileiro. Vocês verão outros exemplos mais tarde.

Por ora, Izamal, onde nos detivemos por uma hora e pouco olhando artesanatos. É bastante arrumadinha.
Ruas de Izamal.


O mesmo ar das cidadezinhas do interior do Brasil.
Mexicana vestida com os trajes tradicionais da região.
Entrada para a igreja local, que tem o maior átrio do mundo, o pátio por detrás daqueles arcos.
Criançada alegre deixando-se fotografar.
Dali seguimos à primeira das ruínas mayas, uma bastante antiga. Ali mesmo, no centro de Izamal, está uma pirâmide de degraus de mais de 2000 anos, não restaurada. Datada de 400-600 AC, a pirâmide era à antiga divindade maya de Kinich Kakmó, o deus do sol. Tal qual os antigos egípcios, os mayas antigos tinham divindades zoomorfizadas, isto é, que mesclavam formas animais e humanas. Este tinha cabeça de arara e uma flama em cada mão.  
Ruínas da pirâmide maya de Kinich Kakmó, de cerca de 2500 anos.
A subida é íngreme e nada mole, ainda mais com os degraus quebrados. Manuel Jesús aguardou-nos sentado numa pedra debaixo de uma árvore. Ao final, paramos rapidamente para merendar antes de retornar à van. Foi então que eu experimentei picolé de arroz doce (detalhes aqui). A esta altura Manuel Jesús também pegou um outro. E numa das cenas mais bizarras que eu veria neste dia, ele "limpava" as sobrancelhas e a frente do cabelo com o palito do picolé chupado.
Meu picolé de arroz doce. (Não, aquela arabaca velha não é a nossa van).

No almoço, eu experimentaria sopa de lima, a mais famosa entrada da culinária yucateca. É um caldo temperado com ervas e limão. Não é azeda demais. Frequentemente põem frango dentro (o povo aqui come frango como a gente bebe água). O prato principal foi qualquer coisa inexpressiva  mas não incluía frango. Já na saidinha foi o digestivo licor maya, xtabentún, vermelho feito a partir de flores. Na verdade, me parecia água aromatizada. Acho que rolou um batismo maya ali.
Xtabentún, para experimentar quando vier a Yucatán. É um licor digestivo maya feito a partir de flores.

Os mayas hoje são em geral a classe trabalhadora pobre do sul do México. Da mesma forma que, por razões históricas, no Brasil os pobres são mais negros, aqui no México os pobres são mais indígenas. Você percebe facilmente as feições. 

Na rua, especialmente aqui no sul do país, o que você mais vê são os rostinhos redondos, olhos ligeiramente puxados, estatura baixa, cabelo preto liso. Muito diferente do que mostra a mídia mexicana, sobretudo as telenovelas, onde a mocinha sempre tem ares de Branca de Neve e os mexicanos são retratados como tão caucasianos que nem na Espanha isso seria representativo. Tripla injustiça: não bastassem a histórica e o descaso das autoridades de hoje, os mayas atuais são tratados como seres invisíveis, como se não existissem, a ponto de os meus colegas de passeio, mexicanos do norte, ficarem se perguntando "aonde terão ido os mayas". 
Esta é uma capa de revista de turismo (Jan 2015) aqui do Estado de Yucatán. Nas ruas da capital do estado, Mérida, eu lhe dou uma hora pra você achar nas ruas alguém com essas caras e você terá dificuldade. Isso pra não falar da zona rural.
A cara do povo em Yucatán  e em grande parte do México. Acho que nunca estive num lugar onde a discrepância fosse tão grande, entre a imagem vendida e a real.

No momento mais emotivo que eu veria de Manuel Jesús, ele nos contou, com ligeira indignação, que os mayas atualmente não têm permissão para realizar seus rituais livremente nas ruínas. As maiores ruínas hoje são administradas pelo Estado, para arqueologia e turismo. Por exemplo, contou-nos que se um maya vier acender fogueira pra fazer seus rituais, virá alguém pô-los pra fora com um balde d'água. "Isso não está certo. É como se você estivesse no meio de um batismo e chegasse alguém pra interromper", comentou o guia, desta vez fazendo-se presente por inteiro.

Esse é o caso de Chichén Itzá, a mais famosa de todas as ruínas mayas. À tarde finalmente chegamos lá. Ela é toda uma cidade, não apenas a pirâmide. Esta, de 24m de altura, é onde ficava o ápice da cidade, o Templo de Kukulkan, com mais 6m (aquela casinha lá em cima). 
Pirâmide de Kukulkan, em Chichén Itzá.
São 91 degraus em cada escadaria  há quatro, uma em cada lado da pirâmide. A pirâmide foi construída de tal modo que, nos equinócios (primeiro dia) de outono e primavera, o sol vai exatamente na diagonal da pirâmide, deixando uma face completamente ensolarada e outra completamente na sombra. Além disso, cria-se um efeito em que a luz aparece como o corpo de uma serpente ao longo da pirâmide. É a representação do deus "serpente emplumada", que os mayas antigos chamavam de Kukulkan, e que para os astecas era Quetzalcoatl.

Os astros eram associados aos deuses, daí essas correspondências entre templos e movimentos siderais. Os mayas no primeiro milênio depois de Cristo previam os movimentos do sol, da lua, de vênus e das estrelas com grande precisão, inclusive eclipses. Eles tinham três calendários que se interconectavam: um era de 260 dias para fins religiosos; outro, de 365 dias, era o comum, com 18 meses de 20 dias cada um. Isso dava 360 dias, aos quais se somavam 5 dias de azar em que não se trabalhava. O terceiro calendário era o famoso, que media grandes ciclos de centenas de anos e cujo último ciclo se findou em 2012  daí todo aquele papo de "fim do mundo", pura má-interpretação. A cosmologia maya é cíclica, como o movimento dos astros, e não inclui nenhum fim à là armageddon ou apocalipse como faz a visão judaico-cristã.   
Outras ruínas, de prédios civis, aqui em Chichén Itzá.
Aqui em Chichén Itzá estão também o poço dos tais bruxos da água, que deu nome à cidade, e um campo de um jogo de bola comum à época e que lembra o quadribol, de Harry Potter. 

O poço, ainda presente, é uma fossa redonda de 60m de diâmetro que é uma abertura aos lençóis frenéticos que percorrem toda a Península de Yucatán. Os antigos mayas usavam-na como fonte de água doce e também para fazer oferendas, que permaneceram séculos lá no fundo até serem resgatadas por arqueólogos.  
Poço dos bruxos da água de Chichén Itzá.

Já o jogo de bola era interessante. A bola era feita de borracha, cuja árvore é nativa aqui das Américas. Havia dois times de sete indivíduos, um capitão em cada. Não se conhecem todas as regras do jogo, mas sabe-se que o objeto era fazer a bola passar pelo aro no campo adversário. O jogo sempre terminava de 1 x 0. Não tinha empate; o jogo seguia até alguém marcar; continuava no dia seguinte se necessário. Ao término, um dos capitães era sacrificado. Era literalmente um jogo de vida ou morte. Porém os estudiosos não sabem se o sacrificado era o capitão vencedor ou o perdedor, já que ser sacrificado aos deuses era visto como uma honra. (Haaaaja coração! Imagem Galvão Bueno narrando um jogo disso?)
O campo onde se dava o jogo, uma equipe à direita e a outra à esquerda. Do alto assistiam os espectadores.
Dali assistiam alguns notáveis da sociedade.
O aro por onde era preciso passar a bola. Percebam também a muralha de pedra.

Circulando, veio uma velhinha vender coisas. Vendia panos, visivelmente feitos à máquina e comprados de algum atacadão. Era miúda, de um tamanho que eu acho jamais ter visto numa pessoa que não fosse anã  e ela não era, pois os anões o são devido a problemas genéticos e têm certas características comuns, como a cabeça desproporcionalmente grande. Ela não parecia falar espanhol, pois não conversava. 

Achei indignante, obsceno, vergonhoso que uma sociedade permita a uma senhora daquela idade, de aspecto tão vulnerável, viver em mendicância enquanto turistas pagam ao Estado para visitar aquilo que o seu povo construiu. Comprei um pano por pura solidariedade e nem pedi o troco de volta.

Mais adiante, um dos tios me interpelaria, fascinado com a antiga arquitetura: 

 "Êêê Mairon!", me alcançou ele. "Que tal? Impressionante, hein? Aonde terão ido, os mayas?", perguntou em tom profundo.

 "A lugar nenhum", respondi eu, de repente seco. "Estão bem aqui. Acabei de tirar uma foto com um deles". 



terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Picolés mexicanos, conheça os originais

Com uma paleta aqui no interior do México. Vocês jamais adivinharão de que é.

Este é um pequeno post só pra dizer que a gente no Brasil não entende nada de picolé. Os mexicanos nos dão de 10 a 0  ou de 7 a 1, se preferirem.

Confesso que quando chegou a moda dos picolés mexicanos no Brasil, a tratei com certo desdém. "Nunca ouvi falar em México ter tradição de picolé", lembro de ter pensado enquanto vencia toda a resistência da minha frugalidade para pagar 7 reais num picolé. Leda ignorância a minha, agora devidamente corrigida. Mas deixem-me dizer-lhes que tampouco essa versão gourmetizada dos picolés mexicanos aí no Brasil se compara aos originais, e vou lhes dizer por que. 

Comparados aos picolés brasileiros comuns, os picolés mexicanos  aqui chamados de paletas  são maiores, mais saborosos, mais baratos, e têm uma diversidade muito maior de sabores. Esqueça aquela pobreza alimentar americana de só Magnum Chocolate ou Magnum Chocolate Branco. Esqueça também as miudezas da Kibon ou da Nestlé, que parecem com o tempo diminuir de tamanho, ter cada vez menos sabores, e aumentar só no preço. 

As verdadeiras paletas mexicanas são simples: parecem não ter marca, e vêm vestidos só num saquinho plástico transparente. São grandes, custam de dois a três reais, e têm uma infinidade de  sabores, inclusive alguns que você provavelmente nunca imaginou.

Esse da foto acima, pra começar, é de arroz doce. (Arroz con leche, como eles costumam dizer aqui). E não é que o negócio é gostoso? Vem com grãos de arroz. Aqui não precisa ser especial ("morango com pedaços") para ter pedaço dentro  é o habitual. Há picolé de nozes, picolé de café, de uma infinidade de frutas, etc. O vendedor lhe pergunta se você quer das paletas com água ou das com creme. Há, inclusive, da mesma fruta de um jeito e do outro. E há alguns sabores mais atrevidos, tipo abacaxi com pimenta, que arde de verdade. Uma diversidade maravilhosa. E algo simples  acessível e despretensioso. Vai um?
Paleta mexicana de abacaxi com pimenta na Plaza Grande da cidade de Mérida.



sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Mairon em Teotihuacán

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Teotihuacán, uma das mais impressionantes cidades antigas da Mesoamérica. Estamos no México, perto da capital. Teotihuacán é um sítio que precede até mesmo a cultura asteca. Trata-se das ruínas de uma antiga cidade indígena, datada do século I antes de Cristo. Diz-se que a cidade vingou ao longo de todo o primeiro milênio depois de Cristo, provavelmente com uma população de várias diferentes etnias indígenas da região. As ruínas estão surpreendentemente bem preservadas. As enormes pirâmides do sol e da lua continuam aqui, e é possível subir os seus íngremes degraus  o que eu fiz, não sem antes tomar uma dose de tequila pra sacanear o estômago já pela manhã.

Cheguei ao México esta semana. Já no aeroporto fui congratulado com uma pérola de um compatriota brasileiro. "Ah, eu não sei preencher isso aqui, não", dizia a mulher de um casal de meia idade diante do formulário de imigração. Nada além do habitual, o que o Brasil também exige aos estrangeiros que chegam. O formulário estava em espanhol e em inglês. O oficial da alfândega dizia-lhes que eles não podiam passar sem preenchê-lo. O homem do casal brasileiro, aparentemente sem entender patavinas do espanhol do mexicano e em tom de cumplicidade comigo, então me solta: "Eles veem que tem voo chegando do Brasil, deviam pôr aqui alguém que falasse português, né?". Eu fiquei sem jeito de dizer que, se assim fosse, teriam que pôr gente que falasse todos os idiomas do mundo, já que aqui chegam voos de todas as partes. 

Ajudei-os e se resolveram. Mas eu fico meio de cara com essas pessoas que viajam a um país estrangeiro sem a mínima noção do idioma. É a mesma coisa que fazem os norte-americanos, que chegam à Europa achando que todo o mundo fala inglês. Ou o que fazem os russos, os chineses, e outros  não é exclusividade de brasileiro. Parece síndrome de país grande, habituado a conceber a vida exclusivamente em seu próprio idioma, gente nada habituada a interagir com estrangeiros que não falam a sua língua.  

Achei o Aeroporto Benito Juárez bem demodê, diga-se de passagem. Mas deixemos a Cidade do México para um post futuro. Comecemos respeitando a cronologia histórica aqui nestas aventuras no México, com um dos que foram dos meus primeiros passeios ao chegar. Vamos a Teotihuacán.
Vendedor de bugigangas com o típico sombrero mexicano em Teotihuacán.

Cheguei num desses tours guiados, desses que duram o dia todo. De quebra, antes de Teotihuacán, passaríamos numa oficina de produtos de rocha obsidiana, extraída na região. Esse é o vidro vulcânico que os astecas  e povos que os precederam  usavam para confeccionar armas e ferramentas. (Pra quem lê As Crônicas de Gelo e Fogo ou assiste a Game of Thrones, esse é o tal dragonglass, "vidro de dragão" de que falam; existe de verdade).

Acabou sendo uma grande mostra de vários produtos da região, incluso bebidas. O nosso guia, Luís, era um senhor já meio idoso, com cara de mexicano e sotaque de texano quando falava inglês (no nosso grupo éramos todos estrangeiros). Andava feito George Bush, como se tivesse uma pistola na cintura. Com sua cara de malandro, fazia comentários de que só ele ria, enquanto olhava astuto para nós. Levou-nos para um outro malandro, Ricardo, que nos tentaria vender produtos caros  coisa pra gringo ver  na sua oficina. É um desses acordos hiper-comuns entre agências de viagens e lojas caras aonde trazem os turistas.
Produtos feitos com rocha obsidiana, o tal vidro vulcânico, polido. 
Os produtos eram caros, mas bem bonitos.
Os indígenas das Américas dominavam a metalurgia, não usavam metais para confecção de armas. Tampouco priorizavam a dureza. Seu foco era maleabilidade e beleza, daí preferirem mexer com ouro e outros metais preciosos. Então as armas, em alguns casos, eram feitas disso aí, obsidiana.

Ricardo, que acolheu o nosso grupo, vinha com a sua lábia de vendedor pra cima de mim: "De qual você gostou mais? Posso fazer um preço especial. De onde nos visita?", etc. Tô na sua. Acho que não havia nada por menos de 100 reais, os mais baratos.

A parte boa, belezas à parte, foi que tivemos uma pequena mostra de como o agave  planta suculenta de clima áridos  sempre teve mil utilidades para as pessoas daqui, incluso na fabricação de bebidas. Pra quem não sabe, a tequila é feita dessa planta. 
Ricardo, vendedor matuto, junto de um agave. São grandes assim mesmo. Lá no meio eles acumulam litros e mais litros de água, como estratégia de adaptação aos climas áridos onde vivem. Dessa água se bebe, e é conhecida como "água de mel", por ser ligeiramente adocicada. Provei e é boa mesmo.
Da agave se lasca também "folhas" assim, que Ricardo puxou ali na hora. Os antigos indígenas daqui as usavam como papel, para escrever e desenhar.
Da ponta se faz uma agulha para costurar com as fibras da planta. Com essas fibras se fazem roupas, tapetes, e tecidos de vários tipos. Fica coisa fina mesmo. 
E, claro, da tal água de mel também se faz a tequila, destilada, ou o pulque, fermentado. É o que está naquela jarra de suco, e experimentaríamos.
Enquanto que a tequila só foi desenvolvida no período colonial, após a vinda dos espanhóis, o pulque já era fabricado pelos índios da região há muito tempo. Tratava-se de uma bebida cerimonial, ou que era apreciada pelas classes nobres da região  não era bebida do povão. Meu filho, que coisa horrível. Eu não sou de gostar de álcool, muito menos de manhã, mas não quis perder esta oportunidade etnográfica. O pulque tem a cor, textura e sabor de saliva. Parece que alguém cuspiu no copo, acumulou, e te deu pra beber. Eu, inocente, achei que ao menos o gosto fosse diferenciá-lo de saliva. Que nada. Ledo engano. Você vai virando o copo e sentindo aquela espuminha de cuspe lhe entrar pela boca.
Eu tomando pulque. Ô negócio "disinfiliz".
Procurei avidamente por algo de gosto forte, que me tirasse da boca aquela sensação de ter bebido cuspe. (Ricardo ainda perguntou quem queria mais). Queria um chocolate, uma coca-cola, kiboa, o que fosse. Mas só o que estava disponível era a próxima da fila para a nossa degustação: tequila. 

De fato, nada como uma dose de destilado, já pela manhã, antes de subirmos as íngremes pirâmides indígenas que nos aguardavam. Tomamos à maneira tradicional, pondo sal e limão na língua antes de virar a dose. Outro negócio sem nenhum apelo comigo, mas pelo menos não tinha textura de cuspe.

Depois desse programa, fomos afinal às ruínas de Teotihuacán, já devidamente alcoolizados. 
Escadaria da Pirâmide da Lua, vista de baixo.
Teotihuacán é um complexo de vários quilômetros de extensão  afinal, era toda uma cidade. No meio há uma longa avenida reta, chamada de Avenida dos Mortos (olha que nome auspicioso). Numa das extremidades dela, a Pirâmide da Lua, a segunda maior. Aos lados, várias pequenas pirâmides de degraus, onde os arqueólogos acreditam que ficavam templos às várias deidades da época. Num dos lados está também a Pirâmide do Sol, a maior de todas (pouco menor que a Grande Pirâmide de Gizé no Egito). Só que esta daqui você sobe, degrau a degrau, uma loucura sem tamanho.

Subir a Pirâmide da Lua era fichinha, se comparada à do sol. No entanto, por ficar na cabeceira da avenida, dá uma visão impressionante. 
Escadaria da Pirâmide da Lua. Os degraus são altos e íngremes. Percebam algumas pessoas "catando fichas", com as mãos no chão para subir com melhor equilíbrio.
A vista de cima da Pirâmide da Lua, diante da Avenida dos Mortos. Ali ao lado esquerdo, no horizonte, está a Pirâmide do Sol, ainda mais alta.
Eu lá em cima.
Já lá embaixo, com a Pirâmide da Lua ao fundo.
O nome Teotihuacán, na verdade, não é o original. O original não se conhece. Esse nome foi aquele dado pelos astecas muito depois, quando passaram por aqui (nos idos de 1300) e viram este lugar já abandonado. O batizaram com esse nome (Teotihuacán) que, no seu idioma, o Nahuatl, significa "cidade dos deuses". Sabiam que havia sido de uma civilização que os precedia.

O nome "Avenida dos Mortos" também foi interpretação asteca, pois acreditaram que as pequenas elevações aos lados da avenida eram túmulos. (Os arqueólogos viriam depois sugerir que eram, na verdade, templos). Hoje essa avenida é um longo passeio de mais de 3km de extensão. Para onde você olhar, impressiona a retitude e a simetria das construções, com ângulos e formas geométricas precisas.

Nos aposentos onde vivia a antiga elite da cidade, ainda é possível ver afrescos nas paredes em cores vivas, com desenhos de aves coloridas e deidades, além de imagens esculpidas nas colunas.


Depois dessas primeiras paradas  e de comer dois picolés e dois sanduíches caseiros com queijo, tomate, alface, cebola e abacate, porque estava com fome  fui finalmente à Pirâmide do Sol. Subestimei o tamanho da coisa, o da fila que estava para subir, e o tempo que levaria para chegar até em cima. 

A base da pirâmide são 220x230m. De altura são 65m que você sobe levantando a perna até quase rasgar as calças, de altos que são os degraus. Quando você pensa que chegou, se dá conta de que está apenas na metade. As pessoas parecem formigas em comparação. Você chega ao alto botando o coração pela boca.
Gente subindo na Pirâmide do Sol em Teotihuacán.
De outro ângulo. 
Uma vista do alto.
Ainda se conhece relativamente pouco da cultura e história de Teotihuacán, e ainda hoje há salões inexplorados e materiais da pirâmide sendo estudados. Há novos túneis descobertos tão recentemente quanto 2013. Seja como for, mostra a antiguidade e a imponência das civilizações indígenas das Américas, das quais sabemos relativamente pouco. 

Desci já quase sem fôlego, doido por um lugar onde me sentar. Mas não dava. Tínhamos o tempo contado, pois o guia nos aguardava do outro lado para prosseguirmos com o passeio, ao final da avenida  que eu caminhava e parecia não acabar nunca. Atrasei-me, e quando vi Seu Luís perguntei se era o último. "Você é o segundo", disse ele espiando por cima dos meus ombros pra avistar quem mais vinha. Ainda esperamos uma boa meia hora até aparecerem os restantes. Entre eles havia uma islandesa enorme, de facilmente mais de 100kg, que eu ficava a imaginar como havia se havido nos degraus.

Com a criançada a brincar tresloucada com apitos que soavam como o rosnar de jaguares (onças), sentei-me à beira de umas lojas para tomar água e ar. Volta e meia vinham vendedores ambulantes com bijuterias de prata falsa e esculturas de ônix e outras pedras dizendo que era obsidiana. 

Em tempo chegaram todos. Era só o começo das minhas andanças no México.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Roubando figos rumo às origens árabes de Malta


Eu comecei a estranhar quando esbarrei em várias das 10 palavras  ou menos  que eu conheço em árabe. Dar (casa), medina (mercado), rabat (lugar fortificado), entre outras. Malta é extremamente católica  a ponto de, dizem as más línguas, a igreja até hoje se meter nos afazeres do governo. As igrejas badalam a Ave Maria várias vezes ao dia, e imagens de santos estão por toda parte nas cidades, inclusive ao lado de fora das casas, nas ruas. Perguntei sobre o idioma, e me diziam ser oriundo do fenício. Há uma pobreza imensa de referências à História do arquipélago antes da chegada dos Cavaleiros da Ordem de São João (os Cavaleiros Hospitalários) aqui em 1530. Os museus sobre eles, inclusive, estão repletos de menções a "infiéis", algo que, ainda que comum à época, me soou estranhamente em desacordo com o "politicamente correto" tão comum na Europa, que remodela até como os museus abordam o passado. Quando sugeri a Elaine  a minha idosa anfitriã (aqui que as palavras e nomes dos lugares soavam árabe, ela franziu o cenho e disse que não. Só que estavam todos redondamente enganados. 

Fui estudar um pouco o assunto, ainda na ilha. Descobri que os árabes deram das contribuições mais significativas à História da ilha e ao país, ainda que isso pouco seja reconhecido no senso de identidade própria dos malteses: a língua, oriunda do árabe, e cultivos agrícolas (algodão, figos, limão, laranja), além de técnicas de irrigação praticadas em Malta até hoje.


Os árabes aqui chegaram no ano 870 DC, tomando Malta dos domínios bizantinos. Sua capital foi Mdina, que pode ser visitada ainda hoje  embora tenha sofrido muitas modificações ao longo dos séculos. 
Entrada para a cidade medieval de Mdina, com direito a ponte e fosso.
Mas antes de eu tratar de Mdina, deixem-me contar como cheguei. 

Ao retornar de Gozo (aqui), reencontrei Véronique, a minha colega de quarto francesa, lendo seu guia de viagens na cama. Ela me contou que teve um dia bastante agradável em Mdina e de lá até Dingli, uns penhascos no sul da ilha. Caminhou, segundo ela, por áreas rurais bem tranquilas, apanhando figos do quintal dos outros no caminho. Resolvi experimentar o plano.

"Mas faz bastante calor. É bom levar um chapéu e uma garrafa d'água", me recomendou Véronique.

Ela não se lembrou de que estava diante de um brasileiro, ainda por cima nordestino. Ela não sabia que em Feira de Santana aquilo seria considerado um fresco dia de primavera. 

Tomei um ônibus para Rabat, outra cidade antiga que fica em frente a Mdina  literalmente a um atravessar de rua. A diferença é que Rabat é habitada, e Mdina quase não é. Diz-se que hoje a maior parte das casas pertence a famílias ricas que moram fora. 
Ruas em Rabat, com imagens de santos decorando. 
Onde o ônibus para Rabat me deixou. Influência britânica visível, já que Malta foi colônia deles até 1964.
Ruas quietas de Rabat. Mas aí mora gente.
Quem já foi ao mundo árabe notará as semelhanças na estrutura dessas medinas antigas:  becos e ruelas para pedestres, casas simples e altas, de portas já para a rua. Mas no mundo árabe esses corredores estariam cheios de vida, com crianças correndo, velhinhos sentados, gente passando, um comércio vivo e uma dinâmica social muito ativa, de forte espírito comunitário. Já na Rabat e na Mdina aqui de Malta isso já se foi há muito. 

Compare com a medina de Fez, no Marrocos, ou com sua capital homônima, Rabat.
Meninada indo pra (ou voltando da) escola na parte antiga de Fez, no Marrocos.
A Rabat marroquina. Muito semelhante na arquitetura, completamente distinta na parte social e humana. (Quem não viu o post sobre ela, veja aqui)


Essas Rabat e Mdina de Malta são como cascas vazias, de onde a alma se foi. Você passeia por cidades quase fantasmas, muitas vezes na companhia só de outros turistas. Vale a pena pela beleza estética e para rememorar, imaginar como era, mas saiba que encontrará muito pouca vitalidade humana ainda presente aqui, e do tipo pouco autêntico.
Restaurante para turistas nos becos de Mdina, em Malta. 
Praça principal com a catedral de Mdina, que foi cristianizada ainda na Idade Média, quando Malta passou às mãos dos genoveses, franceses, e finalmente ao Reino de Aragão (atual Catalunha, na região de Barcelona, na atual Espanha) em 1283.
Da mesma forma que em 1492 os reinos de Castela e Aragão  base do que viria a se tornar a Espanha depois  forçaram os judeus em seus domínios a converterem-se ao cristianismo (ou irem embora), o mesmo ocorreu aos muçulmanos em Malta. Ainda que os europeus tenham tomado Malta dos seus governantes árabes em 1225, o povão continuou arabizado e muçulmano. Isso perdurou por séculos, até eles serem forçados a se tornarem cristãos em finais do século XV. Assim, a religião islâmica aqui não perdurou, mas a língua e muitos dos hábitos, sim. Gradualmente a ilha foi se latinizando e tornando-se cristã católica, fazendo a sobreposição e mistura que a gente vê aqui hoje.
Casa de um mercador da ilha, hoje museu em Mdina. Me encantam estes passadios com pedras, janelas e plantas.

Lembro-me até hoje de certa vez, na Rabat do Marrocos, quando caminhava por um desses becos e de repente senti um forte cheiro de figo maduro. Só que não havia plantas ao redor. Aí olhei pra cima,  e vi uma frondosa figueira cujos galhos superavam o muro ao lado. O aroma era delicioso, e dava vontade de ser alto (seria necessário ter uns 4m de altura) e agarrar uns pra comer.

Em Malta, aquilo foi possível. Os árabes trouxeram figos cá para a ilha e elas até hoje são frutas comuns aqui. Foram a maior delícia da longa caminhada que eu chamaria de "programa de índio" se eu não já não tivesse trabalhado com índios e soubesse que eles são mais espertos que isso. Chamarei de "programa de francês" então, já que me foi recomendado por uma francesa. (Muito cuidado com essas recomendações de pessoas de culturas diferentes, que gostam de passeios diferentes).

Saindo de Rabat, o passeio consistia basicamente numa caminhada de vários quilômetros à beira de uma pista asfaltada, debaixo de um sol de três horas da tarde. (Eu havia dito antes que resisto ao calor, mas não quer dizer que eu aprecie esses suplícios gratuitos de caminhar no asfalto debaixo de sol quente). Graças a Allah  e aos agricultores dali  havia figo no meio do caminho. Como eu comprei uns damascos frescos antes de sair de Rabat, neste dia almocei o que virou salada de frutas no meu estômago.
A caminhada. O meu "programa de francês".

Achei que melhorava depois, por isso continuei, mas que nada. Eu era a única viv'alma perambulando debaixo do sol, e a cada meia hora passava um carro donde as pessoas me olhavam com ar estranho, de como quem diz: "Aonde vai esse maluco aí sozinho à beira da pista?". Lembrei-me que Véronique trabalha com doido em clínica psiquiátrica e senti-me um deles, de repente.

No caminho também encontrei uvas verdes, mas essas estavam impossivelmente azedas. Achei amoras, o que foi bom, pois me empanturrei, com um olho no pé e outro nas casas dos donos, pra ver se vinha alguém, mas só quem me viram foram os cachorros, devidamente retidos do lado de trás dessas muretas de pedra. Encantei-me, inclusive, ao aprender que os figos maduros abrem-se sozinhos, e expõem seu interior rubro para que os pássaros o vejam e comam. Quem comeu, no entanto, fui eu. Segui assim até encontrar Xuxa.

Calma, antes que pensem que eu fiquei doido. Xuxa era, estranhamente, a parada de ônibus que encontrei. Tirei uma foto pra não acharem que foi miragem após ter comido fruta quente do pé.  
Ponto de ônibus numa das poucas sombras que encontrei no caminho. Não me perguntem por que esta parada tem esse nome.
O ônibus até Dingli passaria dali a 50 minutos, e não tive paciência de esperar. Segui adiante a pé. No meio do caminho, desviei para um parque, ou o que parecia ser um, onde não havia ninguém. Sentei-me no meio de árvores, flores e besouros, que voavam pesados pra lá e pra cá. Depois de descansar, continuei rumo ao mar. Mal podia esperar para vê-lo, já que os penhascos de Dingli aonde eu ia ficam na costa. A cada subida da pista, eu esperava ver o mar e não terra no horizonte. Finalmente, aconteceu, após algumas horas.
A vista que eu aguardava, no sul de Malta.

Sentei-me numa pedra ali um tempo, só que não havia horizonte: era nebuloso, onde céu e mar se confundiam em meio às nuvens, como a foto mostra. Parecia que você estava na Terra do Nunca ou em algum cenário de fábula, e que dali das nuvens no mar você logo começaria a avistar navios piratas aproximando-se.

Sabendo da visitação de alguns raros turistas, dois malteses  e um animado cachorro  ficavam ali a uma venda improvisada no fundo de um carro. Brinquei com o cachorro, cujo nome eu esqueci, até o meu ônibus de volta chegar. Demorou pouco, ou talvez eu estivesse com a paciência bem-exercitada após essa caminhada.

Chegando de volta ao albergue, encontrei Véronique já conversando um pouco  num inglês arrastado  com um rapaz italiano que seria o terceiro ocupante do nosso quarto. Elaine estava lá com eles, entretida. "As minhas filhas também já foram ao Brasil", declarou ela em tom revelador quando eu adentrei, "na época que vocês tiveram aquele tsunami". Oi?

 "No Brasil, não. Nunca tivemos tsunami por lá, não. Deve ter sido na época do que teve na Ásia, em 2004", respondi eu, diplomático.  

 "Não, não foi aquele não. Foi um que teve no Brasil. Talvez você não tenha visto nas notícias na época", retrucou Elaine em tom informador.

Vi que não havia esperanças. Quem já discutiu com idoso sabe que essas conversas dificilmente vão pra frente.

 "É, deve ter sido numa época em que eu estava fora do país", declarei.

Ainda batemos um papo, e contei depois a Véronique da minha epopéia. Ela achou ótimo. Improvisamos um macarrão com molho para jantar ali mesmo, mais algumas frutas que eu ainda tinha, e no dia seguinte pela manhã nos despedimos. Estava eu mais uma vez rumo a um aeroporto. Lá, no hall cerca dos portões de embarque, um rapaz tocava num piano o tema d'O Poderoso Chefão, um prenúncio do que me aguardaria quando o meu avião pousasse: Nápoles, no sul da Itália. Comigo embarcaram, inclusive, umas italianas que haviam sacolejado comigo em Antônia rumo a Gozo, mas elas não me reconheceram. Muito me aguardava.

Arrivederci, Malta.