sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Sarajevo (continuação), a parte bela que você desconhece


A fama mundial da Bósnia e de Sarajevo como lugares sofridos marcou a imagem que as pessoas fazem daqui, desde a Guerra dos Bálcãs dos anos 1990. Não é uma imagem falsa; há mesmo muito de uma realidade triste que deixou marcas na vida de muitas pessoas, como na infraestrutura que permanece degradada e marcada por buracos de bala na periferia da cidade. Já comentei dessa parte no meu post anterior, com a minha chegada à cidade. 

O que as pessoas desconhecem de Sarajevo é o seu outro lado, mais antigo, bem preservado, bonito, e que faz dela uma das mais distintas e curiosas cidades do continente europeu. Na minha opinião, Sarajevo é a capital mais subestimada por quem visita a Europa.

Razões? Vejamos: (1) Sarajevo é uma capital predominantemente islâmica, numa Europa que estamos acostumados a (erroneamente) imaginar como exclusivamente cristã. Os quase 500 anos de colonização turca, quando a Bósnia foi governada pelo Império Otomano (de 1450 a 1878!) não são pouca coisa. (2) As colinas ao redor da cidade, que um dia abrigaram tanques de guerra, continuam verdes. Dão um ambiente gostoso e fazem um lindo pano de fundo. (3) A forte influência turca deixou aqui na Bósnia uma gastronomia diferente, deliciosa. 

E não menos importante, você assiste à superação de que o ser humano também é capaz. Conheci indivíduos inesquecíveis nesta minha estadia aqui.
Uma vista de Sarajevo e suas colinas. Os detalhes em madeira na janela da pousada faziam a vista parecer um filme.
Acomodamo-nos, eu e uma amiga minha turca, na pousada de Dženan [Djenãn], um figuraça. Parecia algum dançarino do Qual é a música?, do SBT. Jovem, loiro de cabelo liso que caía pela testa e precisava ser sempre charmosamente tirado da frente do olho, e aquele sorriso exageradamente alegre dos dançarinos de televisão. Supus que era gay, até conhecer a sua esposa  uma linda jovem de olhos azuis e a cabeça coberta pelo véu islâmico  e seus 4 filhos pequenos. Uns amores. Moravam todos na pousada, numa seção ao lado.

Estávamos a curta distância de caminhada do centro histórico  o que recomendo que qualquer visitante também faça. 

O centro histórico de Sarajevo é chamado Baščaršija. Calma, não se assuste com o tanto de acentos circunflexos invertidos. Lição básica pra as línguas eslavas que usam o alfabeto latino: ž tem som de j (como em Juliana), š tem som de sh, e o č tem som de tch. Então Baščaršija soa Básh-TCHÁR-shia, que vem da língua turca e quer dizer algo tipo "Mercado Central". (Viu como é tudo muito simples? O próprio nome Sarajevo deriva do turco saray, que quer dizer "palácio". A cidade foi fundada pelos otomanos em 1461). 

Esse centro histórico é charmoso e agradável. Bonitinho de um jeito que eu nunca tinha ouvido falar que existisse em Sarajevo. 
Calçadões no centro histórico de Sarajevo, com uma mesquita de estilo turco ali atrás. 
Entrada para uma mesquita.
Os pátios em frente são quase sempre bem acolhedores. E como os muçulmanos devem sempre lavar os pés e as mãos antes de orar, há sempre água (potável) disponível, o que vem a calhar no verão.
Quinquilharias mil pelos bazares do centro. Até uma bandeira do Brasil ali hasteada.
E a comida aqui na Bósnia merece menção especial. Dženan nos recomendou em particular este restaurante da foto abaixo
Pra que ninguém ache que eu estou inventando, eis o cardápio do lugar. A comida é boa, apesar do desafortunado nome.
Não, não há nenhum sinal eslavo distinto aí; o nome do restaurante é Sofra mesmo. Preferimos "sofrer" à noite, pois durante o dia come-se tranquilamente e com muitas opções no centro histórico. 

Aqui em geral na Bósnia você come bem, ao contrário do que passei na vizinha Croácia, fiquei a pizza, macarrão e peixe frito por uma semana (aqui). Já aqui na Bósnia até arroz com feijão eu achei! E barato! Além de belos temperos, caldos, doces, e um milhão de comidas de influência turca. 

Depois de penar com as culinárias insossas da Croácia e da Áustria, pensei comigo mesmo e quase postei no Facebook: Que pena que os turcos não chegaram mais longe quando invadiram a Europa. Mas evitei, pra não açoitar os meus amigos europeus.
Feijão com arroz em Sarajevo! Não é idêntico ao brasileiro, como você pode ver pelo feijão, mas é saboroso.
Outros pratos, com diversidade de opções, e o pão chato característico do Oriente Médio. 
Tudo isso num restaurante simples, com ar de cantina. Aquele escudo em azul e amarelo ali acima é a bandeira da Bósnia.
Pra quem desconhecia essa influência turca na Europa, eis o pano de fundo histórico pra você entender. Coisas curiosas e que talvez tenham sido "puladas" nas suas aulas de História. 

Por volta de 1400, o clã Otomano tornou-se dominante dentre os turcos na Anatólia, a península onde hoje é a Turquia e que costumava ser Império Bizantino. Aliás, "Império Bizantino" é uma invenção póstuma do historiador germânico Hieronymus Wolf, uma alcunha por ele dada em 1557 ao Império Romano do Oriente. Em 285 DC o Império Romano foi dividido em duas metades administrativas; Roma veio a cair em 476 DC, mas Bizâncio (atual Istambul) no oriente, rebatizada de Nova Roma pelo imperador Constantino em 324 DC e que acabou conhecida como Constantinopla [Constantino + pólis] perdurou até ser conquistada pelos turcos em 1453 (maiores detalhes dessa conquista aqui). Eles se viam  e eram conhecidos pelos outros  como romanos, não como "bizantinos".   

Rumélia, portanto, era o nome dado pelos turcos às posses tomadas desses romanos na Europa. Os turcos otomanos conquistariam esse longevo Império Romano do Oriente por completo. Conquistaram toda a atual Grécia no século XV; invadiram Belgrado, a região da Sérvia e de todos os Bálcãs, onde hoje estão também Romênia e Bulgária; invadiram a Hungria e tomaram Budapeste em 1541; e atacaram os portões de Viena, na Áustria, duas vezes. 

Feliz ou infelizmente, os turcos nunca conseguiram tomar Viena. Aqueles se tornaram os limites ocidentais do Império Turco Otomano, mas todo o sudeste da Europa permaneceria sob seu domínio por quase 500 anos, até as revoltas nacionalistas do século XIX. Romênia, Bulgária, Bósnia, Sérvia, e a própria Grécia de hoje são fortemente influenciadas pela cultura turca (na culinária, hábitos, músicas, danças, e até mesmo no seu mix genético), embora não gostem muito de admitir. Afinal, foi quase meio milênio de misturas sob domínio turco.

Com o tempo, o nome Rumélia passou a ser substituído por Bálcãs, que em turco quer dizer cadeias de montanhas com florestas, características na região e lindas, que podem ser vistas até hoje, como aqui na Bósnia e na Transilvânia na Romênia. O mapa abaixo pode ajudar a esclarecer a geografia.
Eis o mapa. Tudo em colorido chegou a ser domínio turco otomano. (Clique para ampliar.)

Aqui em Sarajevo você ainda encontra muitas casas de arquitetura tradicional dessa época colonial turca. Uma boa de ser visitada é o museu Casa de Svrzo, que pertenceu a uma família rica do século XVIII. (Tentar pronunciar o nome é parte da diversão. Os eslavos adoram consoantes).
Casa de Svrzo, do século XVIII.
Uma sala. Tudo devidamente coberto por tapetes, tradição turca.
Um dos quartos.
E, como sempre perguntam, o banheiro, ali com o triângulo mágico.
Eu na varanda da casa de Seu Svrzo.
Os turcos também deixaram aqui outras coisas bonitas, como muitos doces, e a sua maneira tradicional de preparar o café. Mas cuidado: não vá achando que os Bósnios têm saudades daquela época. Embora valorizem esta sua cultura de forte influência turca, eles hoje a tem como sendo puramente sua. 

Chegamos a um restaurante no centro, em busca de um café tradicional desses e que é diferente do ocidental mais comum, e a minha amiga caiu na besteira de perguntar: "Vocês têm café turco?". (O interessado era até eu, e ela que tomou a queimada, coitada). "Aqui não tem nada turco", respondeu o garçom sem nem olhar.

Glup. Bom, mas se você pedir por "café bósnio" (que é exatamente a mesma coisa), eles atendem com presteza. Dá uma ideia dos sentimentos étnicos na região. Coisas do nacionalismo.
Café que tomamos em Sarajevo, em estilo tradicional, servido com o doce turco no palito. (Ou será que acham que o manjar turco, famoso Turkish delight, virou bósnio também?). Para os menos versados, esse café tradicional vem com o pó dentro, e daí tem todo aquele lance de ler a borra que ficar na xícara. O sabor dele também é diferente.
Este é um kadaif (nome desses cabelos de anjo), em modo de bolo. Há outros formatos. Nozes em cima.  
Este é o tulumbe, que parece um churro. Estes doces turcos são doces pra cacete, então não faça como eu que saiu pedindo "um de cada". A glicose sobe à cabeça de um jeito que chega uma hora que você tem que parar.

Para digerir, uma bela caminhada. Mesmo fora do "Mercado Central", em áreas de menor aparência turca e cara mais típica de Europa, há ruas e praças agradáveis, onde você vê pessoas hoje vivendo numa bem-vinda paz, ainda que a vida aqui seja simples e muitos continuem pobres.
Homens jogando xadrez na praça, com uma igreja ao fundo. Aqui há uma mistura de religiões. Se por um lado eclodiram guerras pela diferença, por outro mostra que a convivência pacífica também é possível.
O que não faltava era gente peruando esse jogo. Esse tiozinho mesmo de camisa listrada à direita não parava de dar palpite, entrando no tabuleiro.
A catedral da cidade.
Ponte sobre o Rio Miljacka, que cruza Sarajevo.

Anoitecia, e Dženan nos havia recomendado visitar a tradicional casa de chás do seu amigo Džirlo [Djírlo], curiosíssima figura que parecia uma versão mais idosa de Jesus Cristo Super Star.

Era meio atrapalhado, e sua mulher é quem geria realmente a loja. Mas a alma do lugar era ele. Ficava ali de papo com os clientes e contando histórias. De quebra, falava um pouco (ou um muito) de cada idioma. Certamente viveu a guerra, mas conseguiu manter-se alto astral. Claramente um profeta do atual "deboísmo" avant la lettre.
Eu e Džirlo.
A propósito, os chás são excelentes. (Procure por Džirlo e Sarajevo na internet que você acha, e poderá visitar pessoalmente.)

Garanto que toda esta cultura você pouco associava a Sarajevo, e nem imaginava que ela tivesse esses recantos bonitos. Eu fiquei positivamente surpreso e muito contente em descobri-la. Como disse: certamente uma das cidades mais distintas e provavelmente a capital mais subestimada de toda a Europa.

Ainda veríamos mais da Bósnia, partindo daqui pelo interior do país. A seguir.
Praça no centro de Sarajevo, em Baščaršija. Aprendeu a pronunciar? Pelo sim ou pelo não, visite e ouvirá.
Sarajevo, em seu lado belo, e que você desconhecia.

sábado, 19 de setembro de 2015

Sarajevo, Bósnia

Centro histórico.
Sarajevo é uma cidade muito mais bonita e charmosa do que você provavelmente imagina. Sim, ela tem uma história recente sangrenta, cujas marcas permanecem pra todo mundo ver na pobreza, nos olhares às vezes arredios das pessoas mais velhas (sobreviventes), e em prédios e paredes cravejados de balas na rua. Se você, como eu, não tem o hábito de andar por cenários reais de guerra, Sarajevo lhe chamará a atenção.

Mas Sarajevo também me chamou muito a atenção 
 e sem eu esperar  por um lado histórico mais antigo, bem conservado, e muito menos conhecido, do tempo quando a Bósnia era parte do império turco otomano (1450-1878, quase meio milênio!). Essa época deixou aqui um dos centros históricos mais distintos e charmosos de toda a Europa. Sarajevo é, a meu ver, a capital europeia mais subestimada de todas.

Fiz uma distinta viagem de trem para chegar até aqui. De Mostar você pode tomar um ônibus, que é mais prático e sai em mais horários, ou o trem, que sai apenas à noite ou de manhãzinha, mas que é muito mais cênico pelas vistas. Vale a pena levantar cedo pra ir à estação. Vejam se não tenho razão.

Paisagens no interior da Bósnia, entre Mostar e a capital, Sarajevo.
Minha vista da janela do trem.
Foto tirada do finzinho do trem, quando cruzávamos uns túneis pelas montanhas. Estes são os chamados Alpes Dináricos, uma cordilheira europeia menos famosa porém linda. Desce por todo o lado leste do Mar Adriático, oposto à Itália. Desde a Eslovênia no norte até a Albânia no sul. Uma Googlada e você os vê o mapa.

Mas como nem tudo são flores, e o país continua pobre, o trem era velho. Doação sueca. Vagões demodê, acho que dos anos 70, daqueles que a gente vê em filme antigo do 007. Poderiam ser charmosos se não estivessem acabados, com seus revestimentos de madeira cheirando a lugar fechado. Aliás, o cheiro de velho do trem durou pouco, pois logo começaram a fumar.

O próprio condutor fumava no seu compartimento, então não havia a quem reclamar. E o banheiro era um espetáculo à parte, digno de uma visita. Pra completar, alguns jovens bósnios bêbados faziam algazarra. Ah! E, é claro, como estávamos numa arabaca velha, o trem quebrou. Ficamos 1h parados no meio do caminho.
Doação sueca. Só não dizem de quando era o trem.
Mas o interior não era mau. O problema foi só o odor de cigarro, e ter quebrado no caminho.
A charmosa janela do banheiro, com o rolo de papel ali estrategicamente preso.
Chegamos à estação de Sarajevo por volta do meio-dia, e logo houve confusão à vista. Os ânimos na Europa do Leste às vezes são meio agitados, sobretudo aqui nesta ex-Iugoslávia. Caminhamos pela estação de trem mal-acabada e pichada, com ar de prédio abandonado, até o pátio exterior onde tomaríamos um bonde até o centro.

Foi aí que os jovens bêbados que estavam no trem quiseram entrar no bonde e o motorista não deixou. Partiram para as vias de fato. O mais exaltado dos rapazes gritou na cara do motorista e tomou um safanão na cara que o pôs pra catar fichas. Ainda chutou o exterior do bonde enquanto ele partia, mas sem resultado.

Diante desta pândega, esperamos o próximo bonde. Ainda fomos abordados por uma pedinte, com ar de dificuldades mentais e uma cicatriz feia de traqueostomia (na garganta). Queria dinheiro para tomar um ônibus e viajar ao interior. (Dois dias depois a veríamos por ali novamente).
Na estação de trem em Sarajevo. Cheiro de prédio sem-sal e mal-acabado da época comunista.
Belos interiores no caminho para a plataforma de trem. 
Interior do bonde. Apesar de velho e feio, pelo menos leva você aos lugares.
Sarajevo lhe transporta às duas épocas que aqui co-existem: o passado recente, da Guerra dos Bálcãs dos anos 1990, em que a Iugoslávia se despedaçou, e o passado mais antigo (1450-1900), de séculos de presença turca e que ainda marcam aqui as áreas históricas. Comecemos pela parte que você conhece melhor, a da guerra recente. Acompanhem-me, porque é um pouco complexo.

Em 1991, a Eslovênia e a Croácia se separaram da então República Federal Socialista da Iugoslávia. Em fevereiro de 1992, a região da Bósnia e Herzegovina  habitada tanto por sérvios cristãos ortodoxos, quanto croatas católicos, quanto bosniaks (como são chamados os bósnios muçulmanos)  quis seguir o mesmo caminho e passou um referendo a favor da independência. Os bósnios sérvios, no entanto, haviam boicotado o referendo e não aceitaram o resultado. Decidiram que fundariam o seu próprio país, a República Srpska, aliada à Sérvia. (A Sérvia então era a região principal da Iugoslávia e quem de fato mandava  sua capital e a capital da Iugoslávia eram a mesma, Belgrado. Da mesma forma que a Rússia era quem mandava na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, desde Moscou). 

À frente da Sérvia estava o famoso e mal-fadado presidente Slobodan Mlosevic. Morreu em 2006 durante julgamento pela Corte Internacional de Haia (na Holanda) por crimes de guerra. À frente da República Srpska, liderando os sérvios da Bósnia, estava o comandante Ratko Mladic, outro acusado, e que foi capturado e extraditado para Haia em 2011. Este aguarda julgamento.

Os episódios mais marcantes da guerra foram o Cerco de Sarajevo e o Massacre de Srebrenica. O exército da República Srpska lançou tanques contra Sarajevo e aqui manteve um cerco armado de mais de 1.000 dias (1992-1996). Aulas foram interrompidas, alguns trabalhos seguiram, mas as pessoas viviam trancadas, ou sob a mira de franco-atiradores nas ruas, e sob bombardeios ocasionais. No campo, o terror instalou-se com visitas de militares a vilarejos rurais. Começou a limpeza étnica para ganhar território aos sérvios, e seu ápice foi Srebrenica. Nesta cidade do leste da Bósnia, 8 mil homens bosniaks foram executados, e mais de 20 mil mulheres, crianças e velhos deportados dali, em julho de 1995.

A ONU prestou um belo papel de não fazer nada a respeito. Ela havia declarado Srebrenica uma "área segura", sob sua proteção na forma de uma divisão 300 soldados holandeses. Esses soldados, no entanto, retiraram-se da área em julho de 1995 apesar de apelos da população local, e passivamente abriram caminho para o massacre.

Você não pode vir a Sarajevo e não visitar a Galeria 11/07/95, um museu que conta detalhes e expõe fotos e vídeos da época. Prepare os ânimos, mas é uma visita importante.
Foto das ruas de Sarajevo sob o cerco. Parece imagem da Segunda Guerra Mundial, mas foi há pouco, em 1995.
Fotos da época expostas na Galeria 11/07/95. "United Nothing" em vez de United Nations, a ONU. Ao lado, uma piada num muro na época: "Sem dentes...? Bigode...? Cheira a merda...? Garota Bósnia!"
Nesse vídeo se vê a dinâmica da vida de crianças, adolescentes e adultos durante o cerco a Sarajevo, nos anos 90. Cada história mais trágica e sádica que a outra, incluindo estupros, e uma garota que conta como soldados sérvios invadiram a sua casa e assaram o seu irmão-bebê no forno pra ele parar de chorar. Tentam um colorido também, mostrando como certas atividades sociais não pararam, e como os cidadãos fizeram até um concurso de Miss Sarajevo durante o cerco para tentar levantar os ânimos, mas é pauleira. É difícil não sair revoltado com até onde a crueldade humana pode chegar.

A República Srpka ainda existe, e continua autônoma. A guerra acabou mas a Bósnia, na prática, segue tendo duas regiões administrativas quase independentes: o governo da Bósnia, e o governo paralelo da República Srpska, que administra as regiões habitadas por sérvios.

Sarajevo hoje é uma cidade pobre, com muita infraestrutura deteriorada, e uma periferia soturna onde figuram prédios pichados e ainda com buracos de bala. Mesmo os shoppings têm aquele ar de shopping popular abandonado de centro de cidade, e com gente fumando na praça de alimentação.

As minas terrestres também permanecem, milhares delas, na zona rural por onde hoje podem estar trafegando os refugiados sírios que buscam caminho até a Alemanha. A vida é pauleira.

Quero falar do lado belo de Sarajevo, mas este fica para o próximo post. (Continua em Sarajevo, a parte bela que você desconhece)
Sarajevo no verão. Rua com casas acabadas, mas veja as colinas verdes lá no fundo. Há um lado de bonito de Sarajevo, que relatarei depois.



sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Bósnia e Herzegovina: Bem vindos à linda Mostar

Mostar.
A Bósnia é um país complicado. Mas vos digo: é um país lindo, de natureza deslumbrante, cultura impressionante do sudeste europeu que você pouco conhece, e é talvez o país mais subestimado de toda a Europa.

Bósnia e Herzegovina é um país só, da famosa capital Sarajevo. "Bósnia" e "Herzegovina" eram regiões administrativas medievais (principados, ducados), habitadas sobretudo por povos eslavos, administrados pelo Império Bizantino e, mais tarde, pelos Turcos Otomanos (1463-1878). Não será sua surpresa, portanto, vir saber que a maioria dos bósnios são muçulmanos. Desafiarão seus estereótipos de achar que todo muçulmano tem cara de árabe, pois aqui eles são loiríssimos de olhos azuis e, no caso das mulheres, véu na cabeça. Herzegovina hoje é a região oeste do país, daí o nome composto. Chamarei só de Bósnia, para facilitar (e também porque os próprios Bósnios assim o fazem).
Estrada desde Split, na costa da Croácia, adentro, rumo à cidade de Mostar, na Bósnia.
Para quem estiver geograficamente deslocalizado, recomendo ver os mapas no meu post sobre Split, na Croácia (Split: Ruínas romanas na costa da Croácia).

Uma viagem de ônibus de  em tese  5h lhe leva de Split até Mostar, cidadezinha linda no oeste da Bósnia. É a maior cidade da região da Herzegovina.

Há quem tenha me relatado experiências diferentes, mas a minha foi de mofar 7h no ônibus, duas delas parado (ou engatinhando) num engarrafamento pra cruzar a fronteira. Desde que a Croácia se juntou à União Europeia (em julho de 2013), mesmo que ela ainda não faça parte da Zona Schengen de fronteiras abertas, os controles de fronteira se tornaram mais rígidos. Leve água e lanche, pois não tem pausa para o almoço.
Fronteira da Croácia com a Bósnia, vista pela janela do ônibus. Eles usam tanto o alfabeto cirílico, como os sérvios e os russos, quanto o alfabeto latino, como os croatas e a Europa Ocidental.

Após cruzar a fronteira, tudo é tranquilo. A moeda local, o marco bósnio, é das mais desvalorizadas do continente, e as coisas em geral são baratas  exceto quando claramente voltadas para o mercado turista. No caminho até Mostar passamos por Medjugorje, uma cidadezinha destino de peregrinação católica. (A Bósnia é uma mistura de religiões, mas falaremos mais disso depois). Em Medjugorje diz-se ter havido uma aparição de Nossa Senhora, em 1981, tal qual Fátima. A cidadezinha é extremamente simples, com a precariedade e humildade características do interior da Bósnia. Pra quem está habituado a pensar em Europa e imaginar França, Alemanha e outros países ricos, esta Europa pobre de cá lhe fará repensar à luz da diversidade socioeconômica do continente europeu.

Paramos apenas na rodoviária para deixar alguns animados peregrinos croatas católicos que vinham para subir a Colina da Aparição, onde há hoje uma cruz e uma estátua da virgem. Na praça principal, uma catedral simples. Quem sabe um dia eu subo. Por ora, seguimos viagem.
Na simples rodoviária em Mostar.
Cheguei com fome. Azul de fome. Por sorte, a influência turca durante os quase 500 anos de colonização otomana legou à Bósnia uma culinária muito mais diversa que a de seus vizinhos (ver a minha crítica aqui: Veraneio nas Ilhas da Croácia). Minha amiga turca, que me acompanhava, soube identificar os quitutes na padaria e as comidas nos restaurantes como se estivesse em casa.

Catei-me logo um borek na padaria em frente à rodoviária, um pão macio recheado com queijo branco, batatas apimentadas, ou espinafre  há múltiplos tipos.
Meu bem-vindo borek, um pão macio assado com queijo branco dentro. Originário turco, mas há muito incorporado na cultura bósnia.

Dali da rodoviária a caminhada até o centro histórico de Mostar, onde tínhamos uma reserva, já lhe mostra os dois grandes lados que verá na Bósnia: o histórico antigo e o histórico recente. De um lado, o charme impressionante do casario otomano, das seculares calçadas de pedra (como no Pelourinho), e as mesquitas que hoje se misturam às igrejas. Do outro, casas modernas cravejadas de bala e caindo aos pedaços, resultado da Guerra dos Bálcãs entre sérvios e seus vizinhos nos anos 1990, que levou à dissolução da extinta Iugoslávia.
Casas no centro de Mostar, ainda com marcas da guerra dos anos 90.
Muitos prédios são novos ou foram restaurados, mas mesmo assim percebe-se em geral que se trata de um país simples e pobre. 
Prédios não renovados, que ainda mostram cruamente as marcas da guerra. 
Mas essa parte da Bósnia é a mais conhecida. É, na verdade, a única que eu imaginava encontrar. Qualquer estudante de História, ou que tenha acompanhado as notícias da guerra na Iugoslávia nos anos 1990, sabe o que esperar encontrar aqui.

O que muita gente não sabe  e eu próprio não imaginava encontrar  foi esse outro lado lindo, o histórico mais antigo, da influência turca. Estamos acostumados a pensar em Europa e imaginar só a Europa mais conhecida, da França, da Itália e da Europa Ocidental em geral. E esquecemo-nos dessa Europa de lá, do leste, e que tampouco pode ser generalizada numa coisa só. Há muitas Europas. Esta daqui, do sudeste, dos Bálcãs, vai lhe impressionar de tal maneira que você não imagina. E além dela, a natureza, ainda de um jeito conservado que você não imagina mais encontrar na industrializada Europa.
Rio Neretva, cortando Mostar. O ambiente é maravilhoso.
Centro histórico de Mostar. Sim, lembra mais um bazar turco do que o que você imagina de uma cidade europeia.

Mostar, o nome da cidade, vem de Most, "ponte" nas línguas eslavas, em referência ao ponto principal da cidade. Aqui era um entreposto medieval de comércio e travessia, onde uma ponte cruzava o Rio Neretva ligando o interior dos Bálcãs, na atual Bósnia, à costa do Mar Adriático, na atual Croácia.

Os turcos otomanos, após conquistarem a cidade em 1468, substituíram em 1566 a antiga ponte de madeira por uma de pedra, às ordens do sultão Suleiman, o magnífico. É uma ponte de pedra curva. Foi um feito de engenharia à época. A original, infelizmente, foi destruída na guerra dos anos 90, mas anos depois reconstruiu-se uma idêntica, replicando os métodos antigos, e a cidade voltou a ter o coração do seu charme.

Hoje, desnecessário dizer, a ponte de Mostar é a atração principal da cidade.
Vista da ponte principal no centro histórico de Mostar, sobre o Rio Neretva.
Vista de baixo. Uma galera desce aqui às rochas para ver o burburinho lá em cima à distância, e ouvir as águas do rio passarem.
O centro histórico se estende um pouco para os dois lados da ponte. Não é grande; em um dia você vê tudo. Mas é bastante agradável, como você pode imaginar. Há lojas com artesanatos interessantes (embora parte deles trazidos da Turquia), mesquitas seculares a serem visitadas, um museu na torre de guarda num dos lados da ponte contando como ela foi originalmente construída e depois reconstruída em 2003/2004, e restaurantes com comida boa e bela vista.
Lojas no centro histórico.
Pátio externo de uma mesquita.
Interior de uma mesquita. Em geral são simples, com espaços abertos amplos e tapetes no chão para as orações que os muçulmanos fazem ajoelhados.
Finalmente comida diversificada! Depois da penúria na Croácia, aqui só neste prato havia: arroz temperado com tomates e pimentão, feijão no caldo, legumes e espinafre refogados, e purê de batata. Havia carnes diversas também.
A cara aí é só pra a foto, pois essa limonada estava azeda pra cacete.
Ficamos numa das pousadas mais agradáveis em que já fiquei na vida. Uma coroa rebuliçosa e com aquele espírito ativo de "dona da situação" era a gerente da coisa. A sua assistente era Alma, uma jovem que inesquecivelmente virou-se pra mim um dia pra dizer "Você não come de frango? Nossa, como você vive. Frango é tão bom!", com o sorriso cabeça-de-vento que você pode deduzir pelo teor da frase. Mas era simpática e animada, como você pode imaginar. Seus pais morreram na guerra e ela foi criada, desde pequena nos anos 90, pelos avós. Hoje tinha certa dificuldade em manter emprego, mas a chefona dona da pousada a tentava disciplinar. "Se você não for forte e lutar na vida, ela lhe carrega", me afirmou certa vez no carro, sem tirar os olhos da rua enquanto fazia uma curva, ao nos dar uma carona na manhã seguinte.
Café da manhã na pousada, com as influências turcas de se comer legumes de manhã. Havia, claro também café...
... e uns mini-borek deliciosos, de queijo à direita, e de doce de framboesas e amoras à esquerda, numa mistura bem balcânica de culinárias turca e centro-europeia (com suas frutas de clima temperado).
Matemáticos, regozijem. Anotações para a (re)construção da ponte de Mostar. Tudo calculado para tentar refazer a precisão da versão original, que mesmo feita em 1566, jamais caiu. (Ao contrário das obras de engenharia de hoje, onde asfalto desmancha na primeira chuva.) 

O mais curioso de Mostar é talvez ouvir os sinos das igrejas baterem e, logo depois, o cantar das mesquitas chamando os muçulmanos à prece. Nunca antes eu havia visto as duas coisas quase que ao mesmo tempo na mesma cidade. Faz você crer um pouco na viabilidade de uma sociedade mais diversa, ainda que aqui na Bósnia o passado seja de conflitos.

No cemitério, você vê muçulmanos, cristãos ortodoxos e cristãos católicos todos enterrados lado a lado  quase todos registrando anos de morte na década de 90.
Cemitério no centro da cidade, com a lua cheia ao fundo.
Sim, uma das noites em Mostar foi de lua cheia, e a vista da cidade fica espetacular. Na manhã seguinte, após duas noites aqui, a dona da pousada nos daria uma carona até a estação ferroviária, de onde um trem antigo leva à capital Sarajevo, o nosso próximo destino.

Deixo vocês com mais vistas de Mostar à noite. 
Uma das várias mesquitas da cidade, com a lua cheia escondendo-se por detrás do minarete.
Ruas movimentadas à noite, com a bandeira da Bósnia ali enfeitando, em azul e amarelo
Restaurantes no centro histórico à noite.
Vista para a ponte com a lua cheia emergindo ali à esquerda.
Até Sarajevo!