sexta-feira, 29 de abril de 2016

Stromboli e as Ilhas Eólias, sul da Itália

O sul da Itália tende a ser tão associado à máfia que poucas pessoas no Brasil sabem do seu lado romântico e aconchegante. Poucos de nós vêm à Itália e visitam suas ilhas, mas são muitas delas aqui, um pouco similares às gregas, tipicamente mediterrâneas, e com um aroma italiano. 

De Taormina, facilmente organizam-se tours de barco pelas chamadas Ilhas Eólias, um pequenino arquipélago ao norte da Sicília. É pra quem busca tranquilidade e lindas vistas do mar.

Pra quem gosta de aventura  e de mitologia grega  vale fazer um passeio específico ao entardecer ao redor do vulcão de Stromboli, uma das ilhas. Ele fumega à noite com lava incandescente e tudo. Foi o que fizemos.
Rochas no mar rumo ao vulcão de Stromboli. A parte habitada da ilha fica do outro lado, mas bem ali, perigosamente próxima ao vulcão.
Saímos de manhã cedo num ônibus rumo ao porto. Já aviso que ele ziguezagueia pela estrada. Os navios são vários, e quanto mais gente, mais barato. Procuramos um preço acessível e acabamos num enorme, com um guia maçante que narrava tudo em quatro línguas. (Não bastasse a repetição, ele tinha o irritante hábito de ficar fazendo perguntas confirmatórias, tipo "Hm?", ao final de cada frase em inglês e em alemão. Dava vontade de ir lá e jogar ele no mar.)

A alta estação destas ilhas, como por todo o Mediterrâneo, é entre abril e setembro. Quando vim, como já estávamos em outubro, as ilhas estavam pra lá de quietas. Pode ser bom se você estiver buscando tranquilidade. Se quiser o máximo do movimento, serestas à noite, todos os bares funcionando etc., prepare-se para o calor e venha no meio do verão (junho-julho-agosto).

Um porém nestas ilhas é que o mercado é inteiramente turístico, então você fica exposto a péssima qualidade de comida italiana. (Veja se consegue alguma indicação de alguém daqui e encontra um lugar bom. Eu não tive essa oportunidade e fiz aqui das piores refeições do ano. Ver Comendo na Itália: Particularidades, dicas e alertas. Nós almoçamos um macarrão num restaurante pra turista que nem merece ser retratado. E o jantar no barco foi uma massa nível "restaurante universitário".) 

Ao menos a vista não desapontou. A natureza raramente desaponta, muito menos aqui no Mediterrâneo. 
Vistas ao norte da Sicília. Esta na ilha de Panarea, a primeira das Ilhas Eólias onde ancoramos.
Eu não tinha noção do quanto esta parte do mar é acidentada. Há rochedos por todo lado, além dos vulcões. Comentando com pessoas no navio melhor familiarizadas com a região, me disseram que foi muito daqui que os gregos antigos desenvolveram seus mitos sobre as górgonas, sereias, e criaturas marinhas em geral. Eram nesses rochedos que, supostamente, viviam as sirenes que encantavam os marinheiros, às quais Ulisses teve que resistir na sua Odisséia, e que assustavam tanto os navegadores gregos antigos da vida real. 

Era, supostamente, aqui no sul da Itália que esses monstros viviam. (Lembrem-se que o território da civilização helênica de antigamente incluía todo este sul da Itália, então chamado de a Magna Grécia.)
Quadro do pintor inglês Herbert James Draper, Ulisses e as sirenes (1909), da passagem na Odisséia na qual Ulisses pede que lhe amarrem ao mastro do navio para que ele não deixe o barco, encantado pelo canto das sirenes. As sirenes eram "monstros" marinhos, que tinham aparência feminina atraente mas que devoravam as pessoas. (O quadro original encontra-se na Ferens Art Gallery, na Inglaterra.)
Os marujos tinham medo dessas encostas, pois dizem que é aí que elas viviam.
Cair do sul no mar das Ilhas Eólias. Você pode imaginar a sensação dos marujos gregos de antigamente, crendo que toda sorte de criaturas habitavam estes mares e aquelas rochas.

Nas ilhas em si você tem um sem-número de casinhas brancas tipicamente mediterrâneas, com portinhas bonitinhas e às vezes uns pequenos jardins.  
Em Panarea, uma das Ilhas Eólias. Elas são parecidas.
Ruelas estreitas e lojinhas. (Estarão mais movimentadas no verão europeu.)
Em Panarea. Vivendo.
Como aqui é a Itália, os principais pontos de referência nos vilarejos destas ilhas são igrejas. Encontrei até Cosme e Damião numa delas.

Acho, contudo, que foi fora duma dessas igrejas, "no mato", que vi uma das imagens cristãs mais impressionantes de minha vida. Talvez por sua genuína simplicidade, condizente com o autêntico cristianismo.  
Igrejas muito bem decoradas (mais do que eu imaginava, dada a simplicidade do lugar).
Cosme e Damião. (Caso você esteja a se perguntar, eles eram gregos, nascidos na Arábia, e viveram no século III.)
Alguém pôs esta imagem de Jesus aqui na rocha. Talvez a mais genuína que já vi.
A atração principal da viagem era pra ser a visão do vulcão de Stromboli à noite, com derramamento de lava no escuro. Só que não. Outros viajantes, e amigos, me garantem que quase toda noite há erupção, e nós ficamos lá por duas horas no barco aguardando após o jantar, e não ocorreu. Acontece. 

Com ou sem erupção, o pôr-do-sol sobre o mar, ali flutuando em meio àquelas rochas, foi lindo. E com ou sem erupção, não deixou de ser um lugar muito formoso de visitar. Só reprovei a comida "pra turista", mas aqui me parece difícil escapar dela.

Deixo vocês com 5 fotos que não resisti fazer por lá. A primeira é da casa onde a célebre atriz Ingrid Bergman e outros gravaram o filme Stromboli (1950), do diretor Roberto Rossellini. As outras quatro são esculhambação.
Casa onde foi filmado Stromboli (1950), filme italiano de Roberto Rossellini com Ingrid Bergman.
Já esta outra casa tinha um nome bastante curioso.
Estes cidadãos estavam conversando na área de Stromboli perto do porto. Pareciam saídos de alguma comédia teatral, mas era a rua. Coisas da Itália.
A casa amarela que era branca.
Não resisti a esta foto do vulcão de Stromboli.

Assim encerramos, eu e minha amiga holandesa, o passeio pela Sicília, após ver as cidades de Siracusa, Noto, e Taormina. No próximo post, vou para outra parte do mundo.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Taormina e o Monte Etna, na Sicília

Estamos em Taormina, provavelmente o lugar mais cobiçado de toda a Sicília. Cá nas alturas à sombra do Monte Etna, entre o indomável vulcão e este belo mar, temos um agradável vilarejo italiano (pra lá de turístico) onde as pessoas vêm experimentar um pouco da dolce vita.

As vistas são estonteantes. O charme do vilarejo é aquele clássico do interior italiano. E a comida, você vai precisar driblar uns horríveis lugares pega-turista, mas é possível achar delícias maravilhosas. Só recalibre um pouco o orçamento, pois sendo tão turística, as coisas aqui em Taormina são um tanto mais caras que noutras partes da Sicília.
Vista de Taormina para o Mar Mediterrâneo, ao entardecer.
Uma das várias igrejinhas, lá no alto em Taormina.
Chegamos de trem. É possível vir de ônibus diretamente do aeroporto de Catania (aprox. 1:00-1:30h de viagem), mas como estávamos em Siracusa (mais ao sul), escolhemos o trem, que é bem mais confortável. 

O trem não sobe toda esta altura, pois é muito íngreme. Ele te deixa à beira-mar, na Estação Taormina-Giardini, e de lá você escolhe entre subir a pé (um gasto de energia desnecessário na minha opinião, pois é caminhada na beira da estrada) ou tomar um ônibus barato que ziguezagueia até o topo. Tomei dois cafés espresso na estação e, em seguida, o ônibus.

Do terminal rodoviário (na real, um estacionamento amplo com um guichê vendendo passagens) você caminha ainda um pouquinho até a cidade propriamente dita, já gozando das altas vistas no caminho. 

Tudo em Taormina se faz a pé. Em 1h você vai de uma ponta a outra da cidade. O legal, no entanto, são as paragens no caminho, os recantos bonitinhos de vilarejo italiano.
A tranquila Estação Taormina-Giardini.
Centro de Taormina. Prepare-se para andar ombro a ombro com outros turistas, pois são muitos visitantes para as ruelas.
Dom Gato descendo tranquilamente as escadas numa sossegada via lateral.
As mesinhas na rua, claro.
Corso Umberto, a artéria central de Taormina.
Infelizmente, há também grande desigualdade social em vista. Aqui um senhor sul-asiático (não sei se da Índia, Paquistão, Bangladesh ou Sri Lanka) tentando vender quinquilharias chinesas pra arrumar um trocado. São muitos deles pela Itália, escapando da pobreza de seus países.

Hospedamos-nos com a adorável Rita, uma simpática moça siciliana que tinha um ex-namorado brasileiro. Ela sabia algumas palavras e músicas românticas brasileiras, e ainda estava ligeiramente chocada por ter sido trocada por um cara. Seu ex-namorado revelou-se gay. 

Hoje ela namora Bruno, um talentoso cozinheiro italiano de olhos verdes que divide com ela a administração da pousada. (Eu, é claro, não perdi a oportunidade de assustá-la depois do café da manhã, dizendo que ia levá-lo embora para o Brasil. Jamais esquecerei as caras de indignação divertida que ela fazia quando eu tecia elogios à culinária do cara.) 
Como por toda a Itália, e mais ainda aqui na Sicília, o café da manhã é tradicionalmente doce. Ainda que essa não seja a minha praia, os confeitos do cozinheiro neste café da manhã daqui são fabulosos.

Os sicilianos têm a fama de passionais apenas no aspecto violento da coisa, mas são pessoas também muito amáveis e calorosas de modo geral.

Alerto-vos desde já que, aqui sendo muito turístico, não é por todo lugar que você encontrará comidas com essa qualidade. Abundam as biroscas oferecendo comida italiana da pior qualidade. Cheguei a comer uma salada caprese (com tomates e mozzarella) e um arancino (bolinho de arroz italiano que parece uma coxinha) que não tinham gosto de absolutamente nada e me deixaram até de mau humor. (Como eu sempre digo, na Itália você pode fazer a melhor mas também a pior refeição da sua vida. Ver Comendo na Itália: Particularidades, dicas e alertas)

Depois, com indicações de Rita, acharíamos uns lugares maravilhosos onde comer. 
Minha tenebrosa salada caprese e o meu insípido arancino. Cuidado onde comer em lugares turísticos na Itália. Sempre peça indicação de algum italiano que conheça o lugar, ou pode dar com os burros n'água como eu. Essa refeição me fez perder até a paciência.
Já esta me levou às nuvens. Ma-ra-vi-lho-sos legumes recheados com azeite de oliva, queijo de alta qualidade, e cuscuz (revelando aí as ligações culturais, às vezes negadas, do sul da Itália com o norte da África). Minha amiga Kim ali já a postos pra atacar a comida.
Fica a recomendação.
Essa Rita da osteria (cantina) não é a mesma da pousada. Foi uma coincidência. Esta do restaurante é já uma senhora, siciliana, daquelas que dá tapa nos filhos não importando sua idade, e os dois filhos (já uns quarentões) é que administram o lugar e servem. Um deles, inclusive, parecia descarado até a alma, e ficou trocando charme com uma coroa alemã sentada na mesa ao lado da nossa. Era uma figura. (Até que volta e meia aparecia a mãe com cara de zangada à porta. Era uma comédia.)

Volta e meia apareciam uns cantores de ópera de rua também. A cena noturna em Taormina é bem agradável. Como há muitos turistas, há muitos artistas de rua também. 
Artistas de rua em Taormina. Esse cantou uma serenata a Taormina. 
Ele posando pra nós com sua ânfora de moedas, na Osteria da Rita.
Afora aproveitar essas italianidades de comer e desfrutar la dolce vita, há também em Taormina um antigo anfiteatro greco-romano a visitar. Vale a pena, e as vistas de lá também são ótimas. 

Afora o anfiteatro, há igrejinhas seculares aqui e ali, e o imprescindível Giardini della Villa Comunale. Este último é um jardim nas alturas, com mirantes belíssimos, inclusive para o Monte Etna, onde o vimos fumegar ao longe. ("Longe", mas ele é tão grande que você tem a impressão de que se rolasse alguma erupção forte, não haveria para onde correr da fumaça tóxica.)  
Vista do Monte Etna ao entardecer, a partir dos Jardins della Vila Comunale. Localize a sua boca pelo rastro da fumaça no céu.
Vista da boca do Monte Etna, a partir de Taormina. Ele, com 3.350m de altura, é o maior pico da Itália e o maior de todos os vulcões ativos da Europa (por exemplo, o Etna tem mais que o dobro do tamanho do Monte Vesúvio, cerca de Napoli.) Explodiu mais recentemente em dezembro de 2015. 
Os tranquilos Giardini della Vila Comunale, de onde se têm aquelas vistas.
Anfiteatro greco-romano lá no alto em Taormina. Ele data do século III a.c., e segue ainda hoje sendo usado para performances (no verão).
Praça central de Taormina, em toda a sua fofura.
É possível subir o Monte Etna, para aqueles de coração mais aventureiro. (Claro que só se sobe até certo ponto. Não é possível ir até a caldeira.) Íamos fazer, mas estava nublado quando havia tour disponível, e portanto não veríamos nada. A dica que recebi, no entanto, é a de não subestimar o frio lá em cima. 

Optamos, em vez disso, por fazer um passeio de barco a Stromboli e às demais Ilhas Eólias, famosas aqui no sul da Itália. São mares pedregosos, que inspiraram muito da Mitologia Grega acerca das górgonas e dos monstros marinhos. A seguir.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Sevilha (Espanha): Capital de Andaluzia, do Flamenco, e do estilo Mudéjar

Leia uma versão de melhor visualização deste post no novo site, em:

Sevilha é uma cidade impressionante, e por vários motivos. Rainha do sul da Espanha, ela é tanto a capital administrativa de Andaluzia quanto a sua maior cidade e o seu coração. Aqui moram os melhores espetáculos de flamenco da Espanha, e aqui também repousam quilates e quilates de história espanhola medieval e moderna. (Para os mais chegados em arte, tampouco deixem de ver as obras do pintor Murillo, sevilhano, e a rua onde se passa a famosa ópera Carmen, de Bizet.)

Vamos por partes, pois as riquezas aqui são muitas. Eu optei por não dividir este post, para que vocês sintam como todos esses elementos estão juntos aqui nesta fabulosa cidade. Apesar de todo o respeito e consideração que me devem Madrid, Barcelona e Valencia (as três maiores cidades da Espanha, nesta ordem), acredito ser Sevilha (a quarta) a mais charmosa. Vocês verão o porquê.
Bairro residencial de ceramistas, em Sevilha.
Instalei-me no agradável bairro de Triana, na rua dos alfareiros (ceramistas). Aqui são produzidas das mais tradicionais cerâmicas espanholas de raiz moura  uma excelente opção de souvenir, e que aqui você compra direto nas casas dos artesãos, com mais opções e preços melhores que no centro da cidade.

O charmoso Rio Guadalquivir (o único grande rio navegável em toda a Espanha, do árabe Wadi al-Qabir, "Grande rio") separa Triana do centro da cidade. Você cruza umas pontes pra lá de bonitas para atravessar de um lado a outro.
Muitas caras de cerâmica no bairro de Triana.
Entardecer às margens do Rio Guadalquivir em Sevilha.
A pensão onde fiquei era de um casal já coroa, a amável Dona Rosa (uma espanhola que imitava sotaque português como ninguém) e Seu Marco, um italiano que falava espanhol. (É engraçado que eu percebi rapidamente que ele não era espanhol, apesar de ele quase não ter sotaque, para os meus ouvidos. Acho que os coroas italianos na real jamais conseguem esconder aquele jeito capatosto de ficar apontando como as coisas devem ser, e ocasionalmente queixando-se disso e daquilo.)

Claro que o meu interesse de imediato era saber onde fica o melhor flamenco da cidade. Há de dois tipos: os shows em tablado, pelos quais você paga, como quem assiste a um espetáculo; e os que eu chamaria de "flamenco vadio", mais ou menos espontâneo, em bares, e pelos quais você não paga. Ao menos é assim que os lisboetas diferenciam entre o fado espetáculo (quase sempre para turistas) e o fado cantado entre amigos da própria vizinhança em tardes de finais de semana. Acho que a mesma terminologia cabe aqui.

Só que flamenco é "um pouco" mais difícil que cantar fado. Não é qualquer um que vem e participa. (Muitos dos meus amigos nem sabem, mas eu fiz um semestre de dança flamenca quando morei no Canadá. Difícil pra cacete, sobretudo o sapateado.)
Significado da palavra. Do Museu do Baile Flamenco, em Sevilha.
Pela cidade o que não faltam são chamadas para shows de flamenco sobre tablado. Os shows ocorrem todos os dias, com duração de 1-2h, e as entradas em geral custam 15-20 euros. Difícil dizer que tenha algum que não seja bom. Eu assisti a dois e fiquei satisfeito. Recomendo o do Museu do Baile Flamenco, que achei bastante competente (e a dançarina era uma simpatia).

Em geral há um quarteto: o violonista, o cantor que também bate palmas, a dançarina e o dançarino. Nesse que fui no Museu do Baile Flamenco, o cantor era uma curiosíssima mistura de Jesus com Dave Grohl (ex-Nirvana e vocalista do Foo Fighters). Chegue cedo para pegar um bom assento.
Parte do show, no Museu do Baile Flamenco. (Em geral eles não permitem filmagem.)
A dançarina em ação.
Num outro tablado onde fui, com a mesma estrutura do quarteto.
As dançarinas sempre põem essa expressão dramática de sofrimento, e os dançarinos sempre parecem pôr água no cabelo para ficar com cara de quem acabou de sair do banho. (Obs: Respinga.)

Mas eu queria também conferir o "flamenco vadio", é claro. Só que aí você precisará ajustar-se aos horários tardios dos espanhóis. Esses shows de tablado em geral começam entre as 19-21h, para turistas verem. Já os shows "vadios", pra os próprios espanhóis, em geral não começam antes das 22h, que é quando eles jantam (ver meus comentários sobre isso em Málaga e um Panorama Geral do Sul da Espanha). Alguns, como o do bar da casa de Dona Anselma, inclusive só começam à meia-noite.

O mais popular desses shows de flamenco vadio é no bar La Carbonería. Os turistas sabem, então você verá muitos, além de espanhóis. Você não terá aqueles vestidões nem aquele glamour todo dos shows de tablado, mas o talento é autêntico. Fui lá duas vezes, mas na prática só vi os dançarinos masculinos e os (ótimos) cantores e músicos. Por isso acho importante combinar os dois, tablado e vadio, pra ter uma experiência completa.
Galera no bar La Carbonería, e o grupo de amigos no flamenco ali à esquerda. O retângulo preto no chão é um tablado improvisado, já que o chão de madeira facilita o som do sapateado. A festa nos bares espanhóis em geral se estende madrugada adentro.
Nem só de flamenco vive Sevilha, mas ele serve de entrada para se entender a tônica geral da cidade. Esta cidade respira os idos de 1200-1700, talvez o período de maior transformação na Espanha.

O flamenco é um ritmo surgido da fusão de culturas árabe, cigana, e campesina cristã na Espanha. Qualquer pessoa que escute o cantar microtonal do flamenco (procure qualquer vídeo do Camarón de la Isla no YouTube) o relacionará ao canto árabe existente ainda hoje, com aquelas subidas e descidas na voz  além do violão, instrumento trazido à Europa pelos árabes. 
Uma palhinha de Camarón de la Isla, um dos mais celebrados cantores de flamenco

Agora compare com o canto árabe e as subidas e descidas de voz desse rapaz palestino. 

Inclusive, o Olé!, tão famoso do flamenco e depois usado também no futebol nos países latinos, nada mais é que uma corruptela de Allah!, que os mouros exclamavam quando viam uma performance tão impressionante que era, para eles, como uma manifestação de Deus ali se fazendo presente.

Por outro lado, as vestes vivazes e o dançar têm claras influências ciganas. Como os da fictícia Carmen, personagem da ópera de Bizet (lançada bem mais tarde, em 1875, quando já havia um certo romantismo acerca dos ciganos).
Quadro do pintor francês Alfred Dehodencq, Uma dança cigana nos jardins do Alcázar (1851). O original se encontra no museu Carmen Thyssen, na cidade de Málaga.

Os gregos medievais do Império Bizantino (de Constantinopla, atual Istambul) chamaram esse povo de Atsiganoi (daí o nome cigano), e a teoria mais corrente diz que eles teriam migrado do oeste da Índia até o Oriente Médio e a Europa durante o medievo. Teriam chegado à Península Ibérica a partir do século XV, quando ela ainda estava em convulsão, dividida entre reinos muçulmanos e cristãos.

Os árabes haviam edificado Sevilha desde o ano 712, quando tomaram dos bárbaros Visigodos o povoado de Hispalis e passaram a chamá-lo de Ishbiliya (daí, Sevilha). Perderiam-na cinco séculos depois para o pelo Reino de Castella, em 1248. Se durante aquele período a cidade viveu relativa paz social, com tolerância religiosa e a coexistência de judeus, muçulmanos e cristãos gerando prosperidade à cidade, esse quadro agora mudaria radicalmente com a sua conquista por fundamentalistas católicos. 

Iniciaram-se perseguições, expulsões e conversões forçadas de quem não fosse católico. Caso você não saiba, foi aqui em Sevilha que surgiu o primeiro tribunal da mal-afamada Inquisição espanhola

O Rei Ferdinando III, de Castela e León, aproveitando a fragilidade dos reinos muçulmanos ibéricos, que haviam se dividido após conflitos entre si, saiu conquistando-os um a um  inclusos aí Córdoba, Sevilha, e grande parte do que hoje é a Espanha. A maior parte rendeu-se após cerco, sem batalha. Ferdinando prometia sempre poupar a população e manter a liberdade religiosa de judeus e muçulmanos, mas isso era um engodo.

As sinagogas foram as primeiras a serem convertidas em igrejas. Em 1391, 4 mil judeus foram emboscados e mortos pela turba cristã, tendo suas casas incendiadas. Os portões fecharam-se no bairro judeu para evitar que escapassem, com exceção de um, da rua hoje chamada Vida no centro histórico de Sevilha. Quem sobreviveu submeteu-se a um batismo forçado para conversão ao catolicismo.
Rua Vida, na antiga judería de Sevilha. Uma visita a esse bairro judeu no labiríntico centro histórico de Sevilha é mais do que recomendada. ("Judería" e "mouraria" são palavras muito pouco usadas no Brasil, mas bastante conhecidas de Portugal. São poucas as canções antigas de fado que não se referem à "mouraria", como eram chamados os bairros onde viviam os mouros muçulmanos.)

Da vida dos muçulmanos após a sua conquista pelos cristãos é que vem a palavra mudéjar (lê-se mudêrrar), que quer dizer "amansado", "domesticado". Referia-se depreciativamente aos muçulmanos que permaneceram nas áreas conquistadas pelos cristãos sem se converterem ao cristianismo. A eles foi permitido ficar mais um tempo, por receio que um massacre de muçulmanos  como ocorria com os judeus  pudesse provocar uma jihad ("guerra santa" islâmica) e ataques dos norte-africanos ou dos turcos sobre Castela e os demais reinos cristãos da Ibéria. 

Além disso, toda a alta e média classe  inclusos aí artistas, engenheiros, médicos, entre outros  da Península Ibérica na Idade Média eram judeus ou muçulmanos. A minoria de cristãos eram, em geral, camponeses pobres. Os monarcas castelhanos contratavam, portanto, arquitetos mouros muçulmanos para fazer seus palácios, no que ficou conhecido como estilo mudéjar de arquitetura. 

É o caso do lindíssimo Palácio Real de Alcázar em Sevilha, e da torre La Giralda na catedral.
Lindo pátio interno no Palácio Real de Alcázar, em Sevilha.
O estilo arquitetônico é ricamente mouro.
No entanto, nos detalhes você perceberá elementos não-islâmicos, como o uso de figuras animais, a exemplo deste leão aí. Os monarcas cristãos queriam, os arquitetos mouros tinham que pôr. A essa fusão deu-se o nome de mudéjar.

Percebam, contudo, pequeninos detalhes que os arquitetos mouros punham na surdina, sem o conhecimento de seus patrões cristãos. Por exemplo, um guia sevilhano me chamou a atenção para o número de "degraus" nesses "pinheiros" verdes aí. Cinco, como são cinco os pilares do Islã. Dizem também que, muitas vezes, os alfaiates mouros contratados para fabricar as vestes pomposas dos bispos ali punham, no avesso, versos do Alcorão em árabe, que os bispos achavam ser apenas costuras. E celebravam a missa com versos do Alcorão escritos na roupa.

E assim por diante. Foi um período de grande ebulição e mistura, que fusionaria elementos cristãos e muçulmanos para constituir a Espanha moderna.  
A torre La Giralda na catedral de Sevilha, vista de seus laranjais. As laranjas, nativas da China e já conhecidas no mundo árabe durante a Idade Média, foram trazidas por estes à Europa Ocidental. Um sultão de Sevilha certa vez mandou trazer 40.000 laranjeiras para arejar a cidade, dizem. A presença agradável dos laranjais persiste até hoje na cidade (e por todo o sul da Espanha). Elas são de um tipo amargo, chamada de "laranja da terra" em algumas partes do Brasil. Dizem que a prefeitura de Sevilha as vendem em enormes quantidades todos os anos à Inglaterra para fazerem lá a famosa "marmelada inglesa".
Vista da Giralda à noite. Ela data de 1198, construída pela dinastia árabe dos Almôadas. Essa torre é uma réplica quase idêntica daquela (mais antiga) da Mesquita de Koutoubia, em Marrakech, e da torre Hassan na cidade de Rabat, ambas no Marrocos. A dinastia Almôada governou o norte da África e a Península Ibérica entre os anos de 1121 a 1269. Deles vem o nome de "almofadas", habituais em sua corte.   
A Giralda vista de um dos portões do Real Alcázar à noite.
Outras transformações curiosas incluem este portal árabe, cujos arcos mouriscos que davam entrada à mesquita foram conservados, mas com a adição de São Pedro e São Paulo ao seu lado. Acho que a Espanha é o único lugar do mundo onde você pode observar arco mourisco e santos católicos lado a lado.
Apesar da harmonia na arquitetura, na sociedade ela praticamente desapareceu.

Em 1478, estabeleceu-se aqui em Sevilha o primeiro tribunal da "santa" Inquisição espanhola. Percebam que não era apenas fanatismo religioso, mas também malícia econômica. Esta era a forma ideal de apropriar-se das terras e outros bens que aqui estavam historicamente nas mãos dos judeus e muçulmanos.

Em 1492, os cristãos conquistam Granada (o último reino muçulmano na Península Ibérica) e decretam a expulsão de todos os judeus, com uma mão na frente e outra atrás  só lhes foi permitido levar consigo o que conseguissem segurar nos braços. Portugal faria o mesmo em 1497. 

A partir dos idos de 1500, o mesmo "ultimato" seria dado aos mouros  conversão obrigatória ou expulsão. Muitos emigraram para o norte da África. Já outros adotaram o cristianismo apenas de fachada, conservando a sua fé islâmica em segredo. 

Daí é que surgem hábitos curiosos, como a obsessão dos espanhóis por presunto. Na Espanha até hoje é difícil achar coisas sem jamón (presunto de porco). O mesmo ocorre com os adorados salamiprosciutto crudo da Itália, a qual estava em grande parte sob domínio espanhol naqueles séculos. 

Judeu come porco? Muçulmano come porco? Não e não. Essa portanto foi uma forma eficaz de desnudar aqueles que se mantinham judeus ou muçulmanos secretamente. Ostentar um pernil de porco virou, quem diria, a demonstração mais convincente de cristianismo aos olhos da época. O hábito, um tanto estranho, permanece até hoje nos bares e restaurantes espanhóis, embora muitos não saibam por que.
Pernis de porco dependurados num bar em Sevilha. O único país do mundo onde essas coisas não estão na cozinha, mas expostas à entrada para todo mundo ver.

O "fugitivo" do nome flamenco refere-se aos judeus e muçulmanos fugidos da Inquisição espanhola e que misturavam-se aos ciganos. Seu nomadismo fazia com que fosse mais difícil a Inquisição agarrá-los.

Assim, aqueles que haviam sido a "nata" da sociedade medieval espanhola (e portuguesa) passavam agora à condição de fugitivos perseguidos. A Espanha deixava de ser o centro avançado nos saberes e na economia que havia sido durante a Idade Média, e passava ao obscurantismo da Inquisição. 

O país, de repente, ficava sem as suas classes escoladas, todas expulsas. Sobraram camponeses, a realeza e o clero, que só conseguiram sustentar o país devido à entrada quase inesgotável de ouro e prata das Américas. Foi daqui de perto que partiu a expedição de Cristóvão Colombo que chegou lá em 1492. Ele hoje está enterrado aqui na catedral de Sevilha.

Naturalmente, aquela riqueza não era investida em empreendimentos produtivos, como depois fariam Inglaterra, França e Holanda (pra onde foram muitos dos judeus expulsos), mas para construir igrejas e decorar palácios. 
Monumento-túmulo de Cristóvão Colombo, na imensa catedral de Sevilha.
O altar. O interior da catedral é um verdadeiro esplendor em ouro trazido das Américas. (Pois, como se sabe, Jesus dava muito valor às riquezas materiais.)
Diante de um espelho no chão, com vista para o teto da catedral.
O uso da língua árabe foi banido, os banhos públicos que abundavam na cidade foram destruídos (pois lavar-se, para os reis espanhóis, era coisa de muçulmano antes da reza), e a repressão da Inquisição dava o tom. Tivemos, senhoras e senhores, a constituição forçada então de um país muito católico, mas muito pouco cristão. 

Na cabeça dessas pessoas, demonstração de cristianismo não tinha nada a ver com ética, era comer presunto e expandir os domínios da Igreja  daí, não por acidente, o papa Alexandre VI ter chamado Isabel de Castela e Fernando de Aragão de "os monarcas mais católicos".
Prédio do Arquivo Geral das Índias, onde eram guardados documentos referentes às colônias nas Américas.  Também vale uma visita.
A riqueza, claro, era insustentável, pois Espanha e Portugal não produziam nada. Viveram ainda um par de séculos na base da riqueza das Américas, mas foi uma questão de tempo até sua pobreza se revelar. Aquela que havia sido a região mais dinâmica da Europa em termos de saberes e produção durante a Idade Média passava agora a ser das mais pobres. 

Culturalmente, no entanto, ficaram o flamenco e o estilo mudéjar como mostras da grande riqueza dessa fusão de povos. Uma nova fusão ocorreria, desta vez na América Latina, ao longo dos séculos seguintes com indígenas e negros. Mas não nos esqueçamos dessa fusão anterior.