sábado, 25 de janeiro de 2014

Luxemburgo, um país que você provavelmente não conhece

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Vista distante do centro de Luxemburgo, capital do pequeno país com o mesmo nome.

Pra mim, até agora a solução da equação França + Alemanha + bancos e muito dinheiro era sempre "Suíça". Mas agora aprendi que Luxemburgo também é uma resposta válida. Este pequenino país -- menor que metade do estado de Sergipe -- está espremido entre a França, a Alemanha e a Bélgica (que por sua vez já é uma boa mistura de França com Holanda). Quase sempre passa despercebido no mapa, mas Luxemburgo está no topo de muitos rankings socioeconômicos, e tem das maiores rendas per capita do mundo. Ou seja, podre de rico. Aqui estão sediados muitos bancos e empresas atraídas pela política fiscal macia do Grande Duque, o chefe de estado. Luxemburgo é uma monarquia constitucional, como o Reino Unido ou a Holanda, mas aqui o monarca tem maior poder de fato, não só o status simbólico. Um país que normalmente não está nas rotas dos turistas brasileiros, mas que eu fiz questão de conhecer. Ele foi a primeira parada das minhas férias desse Natal passado.
Luxemburgo, o país que muita gente não vê. Espremido entre a Alemanha ao leste, França a sudoeste e Bélgica a noroeste.

Minhas férias começaram com um trem lotado onde fiquei 2h em pé -- pra você não achar que isso só se passa no Brasil. Por alguma razão, todo mundo resolveu viajar na mesma hora que eu. De Amsterdã, na Holanda, a Bruxelas, na Bélgica, de onde eu pegaria qualquer trem para Luxemburgo. Não sou o maior amigo de Bruxelas -- acho uma das cidades mais esculhambadas da Europa --, mas tenho que admitir que os belgas cozinham bem. Eu tive portanto o plano infalível de almoçar em Bruxelas, no Café Arcadi, onde fazem umas tortas salgadas maravilhosas. O pequeno porém é que eu não sabia o endereço. Eu tinha só uma lembrança geral de onde ele fica, e saí a procurar. Depois de me bater um pouco, acabei pedindo ajuda a um casal que ia passando com um mapa. Depois de muita conversa em inglês, o cara vira: "Ô Cláudia, como era mesmo o nome daquele lugar onde a gente passou?". Heh, brasileiros. Acabou que o lugar era logo ali de junto, perto da "Rue d'Assaut", ou Rua do Assalto (essa ia fazer o maior sucesso no Brasil). Perto dali fica também a "Rue de la Putterie" (se estiver duvidando, busque no Google que você vai ver). Bruxelas tem dessas.

Fiquei tão envolvido pela minha torta com cebola na manteiga que nem me lembrei de tirar foto -- perdão. Da próxima vez eu tiro.

Voltei pela Rue de la Putterie até a estação central e tomei meu trem para Luxemburgo. Mais 2h e meia, mas fui sentado desta vez. Quando chegamos lá já estava anoitecendo, e eu sabia que tinha uma longa caminhada até o meu albergue. O que eu não sabia é que Luxemburgo tinha tantos altos e baixos, pois isso o Google Mapas não te mostra. Há uma cidade alta e uma cidade baixa, nem sempre com passagens de uma para outra. Quando há, são muitas vezes ruelas tortuosas ou escadarias, como você esperaria de uma cidade com estruturas da Idade Média. Uma perdição.
Saguão da estação central de trens em Luxemburgo.
Estação Central vista pelo lado de fora.
Área ao redor da estação, uma parte mais moderna da cidade, nada especial. Cheia de imigrantes, muitos deles portugueses. Não se surpreenda se ouvir a língua na rua.
Ponte que leva de lá ao centro histórico da cidade, onde estão as coisas interessantes.
Ruelas medievais no centro histórico de Luxemburgo. Fácil de se perder. E tome-lhe sobe-e-desce.
Mais ruelas medievais. Ao menos é um cenário bonito onde se perder.

Acabei vendo mais da cidade à noite do que planejei, e albergue que é bom, nada. Fui parar por engano lááá no fundo da cidade baixa, uma área bonitinha chamada de Grund (do alemão para "chão", como ground em inglês). Pelo nome você já imagina que lá é o fundo do fundo. E não teve jeito, tive que perguntar a alguém. Ninguém sabia o nome da rua pra onde eu ia, então tive que usar museus "próximos" como referência. Meu alemão é quase zero, mas no francês eu me viro bem, e por sorte um casal de senhores lá embaixo pôde me ajudar. Meia volta volver.
Vista de uma pequenina ponte sobre o Rio Alzette, na área do Grund, em Luxemburgo.

O casal de senhores me indicou um elevador escondido que leva direto de volta à parte alta do centro histórico, e recomecei minha jornada. Depois de ainda me bater por pelo menos mais uma meia hora, cheguei ao albergue. Me senti como naqueles jogos de RPG\Aventura em que você tem que achar o caminho.

O albergue (Luxembourg Youth Hostel) em si não era nada especial; parecia um predião de 4 andares de residência estudantil com quartos coletivos. Já fiquei em albergues com mais personalidade, mas vamos lá. A sorte é que era inverno, e que os europeus em geral não são de tomar tanto banho quanto nós, pois havia não mais que dois chuveiros para um andar inteiro com capacidade para umas 100 pessoas. No quarto, um cara roncava que mais parecia que eu estava dormindo com Smaug, o dragão de O Hobbit.

E, falando em Hobbit, o café da manhã era bastante chinfrim, daqueles que forçam você a buscar um segundo café da manhã logo em seguida. Fatias de pão branco, queijo, presunto, e leite com sucrilhos, além de umas maquininhas de café e suco. Se for vegetariano com pouca tolerância à lactose como eu, está lascado. Me aventurei no café, mas acho que devo ter apertado o botão da "água quente" por engano. E quanto ao "suco", enquanto eu tomava o meu um rapaz espanhol perguntou ao amigo de frente para a máquina: "Es de naranja?". O amigo não ouviu, ao que eu intervim: "Si, pero hay que utilizar un poco la imaginación". Ele se aventurou; tomou um gole e retrucou com aquela cara irônica de espanhol: "Mucha imaginación!". Se você nunca saiu do Brasil e só conhece o suco de laranja daí de verdade, saiba que é abençoado(a), porque aqui na Europa é quase sempre suco processado ou tang de laranja. Mas, bom, vamos à cidade -- pra tomar café e conhecê-la.

Luxemburgo faz uma mescla das culturas dos seus dois grandes vizinhos, a francesa e a alemã -- embora, à minha vista, me pareça que puxa um pouco mais para o alemão. Por outro lado, o francês é mais falado que o alemão aqui. Até porque o alemão que aqui se fala é mais o "Luxemburguês", um dialeto local que os alemães acham engraçado. (Não diga ao povo de Luxemburgo que o que eles falam é dialeto; eles gostam de dizer que é uma língua diferente).

Pra aprender um pouco mais sobre a cidade, fui ao museu histórico. Bem arrumadinho, e não é cansativo. Mas primeiro, como de costume, fui ao café do museu tomar um espresso pra evitar a sonolência depois da noite mal dormida com Smaug. Aproveitei também pra comer algo. Lá também conversei com Manoel, um dos muitos imigrantes portugueses aqui. O lugar aconteceu de ser um café meio naturalista, com várias opções vegetarianas\veganas, e peguei um bolo de manga que não estava mau. (Já a salada de quínoa, cereal andino hiper-fashion na Europa, deixaria os bolivianos e peruanos decepcionados, pois só tinha gosto de limão. Mais sobre o quínoa quando eu relatar a ida aos Andes, em breve).

Segundo a lenda, o Conde Siegfried, um nobre germânico, passava por estas bandas nos idos do ano 963, quando avistou uma ninfa das águas, Melusina. Foi seduzido e acabou fixando morada aqui, construindo o Castelo Bock, e casou-se com ela. A ninfa, é claro, não aparece na História, mas o castelo Bock existiu e suas reuínas continuam aqui. Na História, o conde (que também existiu de verdade) adquiriu as terras com a Igreja Católica. O lugar era chamado de Lucilinburhuc, nome na língua local da época para "pequena fortificação", que é o que havia ali, talvez deixada pelos romanos. Ao longo dos séculos os herdeiros do conde deram jeito de se manter independentes apesar das ameaças e ocasionais invasões de seus vizinhos, França e Alemanha. Os luxemburgueses se orgulham não só disso, mas também de serem membros-fundadores da União Europeia (junto com Bélgica, Holanda, Itália, França, e a então Alemanha Ocidental).
Ruínas do castelo Bock.
Paredões remanescentes da Idade Média, com as cidades alta e baixa.
Vista das antigas muralhas e da igreja de São João do Grund. Agora imagine eu perdido aí à noite, subindo e descendo com o mochilão nas costas. Ah vida.

E nenhuma visita a uma cidade de influência alemã é completa nessa época sem uma ida às tradicionalíssimas feirinhas de Natal (Christkindlmarkt). Não se assuste com a palavra alemã; as feirinhas de Natal são bem legais e típicas, e ajudam a compensar a falta de sol e o frio do inverno. Há sempre as barraquinhas vendendo vinho quente (quentão, ou glühwein no original alemão), artesanatos natalinos, comidinhas, etc. Claro que hoje, com a globalização, você encontra de tudo, desde stands de brinquedos fabricados na China até incenso indiano. E as "comidinhas", é claro, seguem a tradição alemã, então muito salsichão, chucrute e fritada de batata.
Feirinha de Natal em Luxemburgo.
Uma das muitas barracas vendendo quentão. Já a "Gaufre" é uma wafer belga, uma massa crocante açucarada com creme, morangos, nutella ou o que você quiser em cima.
Barraca com as moças vendendo fritadas de batata. Não estou chamando de "batata frita" porque não é naquele formato mais comum. Estas daqui são em rodelas grossas, e são fritas com alho e ervas. Ficam uma beleza.
Tiozinho vendendo marrons chauds, o que literalmente do francês quer dizer "marrons quentes". Mas não tem nada a ver com a Alcione. São castanhas portuguesas assadas -- também super típico.
E as feirinhas de Natal também têm música ao vivo, normalmente com orquestras tocando aquelas músicas natalinas.

Passei longe do salsichão, mas experimentei as fritadas de batata e também um quentão especial que, segundo me disseram, é típico daqui: o Feuerzangenbowle (até tirei foto do nome escrito pra me certificar de que acertaria a escrevê-lo depois).
Feuerzangenbowle, o quentão flambado de Luxemburgo.
Demonstração na frente da barraca. Basicamente o cara ateia fogo ao rum e o derrama sobre um cone branco de açúcar, que então derrete-se sobre o vinho quente no panelão.
Experimentando o negócio. O gosto é de quentão com um pouco mais de açúcar. Não é mau. Ajuda a esquentar.

Já a minha segunda  e última  noite no albergue poderia ser chamada de "A Desolação de Smaug". O meu colega de quarto (éramos seis ao todo) roncou como nunca, a noite inteira. Todo mundo tem uma história dessas de algum roncador, mas esta realmente foi das piores da minha vida. Tive uma noite daquelas de dorme-e-acorda como em viagem noturna de ônibus ou avião. E eu vi a hora de o pau comer, pois ninguém no quarto conseguia dormir -- exceto, é claro, ele próprio. Certa hora deram três pancadas na cama dele e dois gritões, mas nada. Desceram até na recepção para reclamar, onde prometeram mudar o cara de quarto... na noite seguinte. Eu vi a hora de o roncador apanhar. Eu sei que quando ele acordou, aos gritos dos que passaram a noite quase em claro, já eram umas 6:30 da manhã. Eu havia desistido de dormir.

Desci pra tomar meu café como se tivesse perdido a noite. Lá acabei encontrando vários brasileiros intercambistas do programa Ciência sem Fronteiras. Os albergues europeus agora estão cheios de conterrâneos. Se você acha que brasileiro cá fora é sinônimo de baderna e vergonha alheia, não se iluda: os jovens europeus aqui fazem tanta ou mais baderna. Além disso, essa vinda mostra brasileiros de verdade aos europeus, para além dos jogadores de futebol e das dançarinas do carnaval. Muitas pessoas aqui na prática vivem como se o mundo se limitasse a Europa, América do Norte e Ásia. A América do Sul aparece como aquele lugar distante, exótico e tropical, mas na prática os europeus acabam sabendo muito mais da Índia ou do Japão  culturas muito mais distantes  do que do Brasil, o que é um contrassenso. Então fico contente de ver isso mudando na medida em que os jovens europeus fazem contatos com jovens brasileiros.

Quanto ao meu sono, bem, o "chafé" do albergue é claro não resolveu, mas o alarme de incêndio ajudou a me acordar. Uma menina chinesa queimou torradas e acabou enchendo todo o refeitório de fumaça, para satisfação geral. Eu arrumei a mochila e fiz meu check-out, pois à tarde me aguardava um voo para a Itália, onde passaria o Natal. "Mairon em Veneza" no próximo post.

Por agora, deixo vocês com mais algumas fotos de Lëtzebuerg, como eles aqui chamam o país e a sua capital.
Ruas enfeitadas para o Natal no centro.
Prédios históricos com ar de mal-assombrados em Luxemburgo.
Foto que tirei to mapa da cidade numa parada de ônibus, pra me orientar. 


Catedral de Nossa Senhora de Luxemburgo.
Mais uma feirinha de Natal na cidade.
Luxemburgo, Luxemburgo.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Uísque e Idade Média em Edimburgo, Escócia

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Uísque e Idade Média em Edimburgo, Escócia

Edimburgo, capital da Escócia.

A Escócia é um país que todos nós conhecemos  pelo uísque, gaita de foles, pelos homens vestindo saias xadrez (kilt), ou pelos gritos de liberdade do William Wallace em Coração Valente. Aliás, "país"? A Escócia faz parte do Reino Unido, que inclui a Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales) e a Irlanda do Norte. Bom, acho que se o País de Gales pode ser chamado de "país", a Escócia também pode. Mas não são países independentes. Há uma certa autonomia, mas estão todos sob o primeiro-ministro britânico em Londres; no caso da Escócia, desde 1707, quando a Inglaterra a anexou, depois de séculos de guerras. Hoje, uma das discussões mais fervorosas é exatamente a possibilidade que tem se tornado cada vez mais real de a Escócia se separar novamente.

Pra isso, é preciso entender que os escoceses têm uma cultura e identidade diferentes das dos ingleses. Nunca cometa o erro cabal de confundir um com o outro. Pra os falantes de inglês, é fácil distinguir por conta do sotaque: o sotaque escocês (com seus sons nasalados e "R"s vibrados  de laranja) tem um charme próprio mas é terrível de se entender, principalmente se for gente do interior falando. Só indo lá pra conferir.

E eu fui. Era começo de dezembro, já frio como se fosse inverno, pra um evento de alguns dias em Edimburgo, a capital. Como todo bom evento acadêmico, havia a parte social. E como todo bom participante de evento acadêmico, eu aproveitei pra pegar um tempinho extra e conhecer um pouco mais do lugar.

Cheguei num domingo, tudo quieto e molhado. As cidades na Escócia, como na Inglaterra, são uma mistura daquele ambiente escolástico medieval à là Harry Potter, Oxford (com castelos, igrejas de pedra, etc.) e a parte moderna, colorida, bem feia em muitas das vezes, com fast foods por toda parte, lojas de conveniência aqui e ali, e aqueles anúncios de frente de loja barata.
Mistura de estruturas antigas de pedra com a estética questionável de lojas modernas.

Mas vamos ao que interessa. Do aeroporto há um ônibus rápido que leva ao centro em meia-hora. Do ônibus já se vê uma colina com área verde ao redor chamada de Arthur's Seat, ou "assento do (Rei) Artur", até se chegar à área central onde está o Castelo de Edimburgo, a Catedral de Saint Giles (traduzido como Santo Egídio em português), e outros prédios históricos. Você também verá referências e estátuas a Adam Smith por toda parte, o economista lá da "mão invisível" do mercado. Ele era escocês.
Catedral de Saint Giles e estátua de Adam Smith no centro de Edimburgo.
Centro de Edimburgo. Essa torre aparece em detalhes no filme Cloud Atlas, que saiu no Brasil em 2013 com o título de "A Viagem". Recomendado.
Rua Royal Mile, ou "milha real", que leva ao Castelo de Edimburgo. (Os ambientes são em geral escuros mesmo).
O Castelo de Edimburgo ao fundo.

Com todo esse astral medieval, você não vai se surpreender de saber que Edimburgo tem uma das festas de Ano Novo mais famosas do mundo, caracterizada por procissões com tochas pelas ruas. Bem estilo Idade Média. (Só torça pra não chover no dia; afinal, nestas ilhas britânicas chove tanto que, talvez você não saiba, mas a palavra sky, inglês para céu, originalmente significava "nuvens"... pois estava quase sempre nublado mesmo).

Bem, depois de chegar no ônibus do aeroporto, encontrei-me com uma amiga alemã que mora aqui e fomos almoçar. Restaurante indiano  há bons aqui, já que há muitos imigrantes. Já a culinária britânica é bastante questionável. Na Inglaterra há a tradição de comer feijão (de lata) ao molho de tomate adocicado no café da manhã, com bacon e batatas fritas. Já na Escócia, um dos pratos mais tradicionais é o haggis, que consiste numa massa de carne (normalmente em formato de bola ou de salsichão) feito com  espero que você não esteja comendo enquanto me lê  pulmão de ovelha misturado com flocos de aveia, vísceras outras e cebola, envolvido no estômago da ovelha como invólucro, pra segurar. (Eles servem isso no café da manhã).

Bom, como eu ia dizendo, fui no restaurante indiano. Pus o papo em dia com a minha amiga, circulamos pelo centro (onde tirei essas fotos), e depois segui para conhecer o local do evento: a bela Universidade de Edimburgo.
No centro de Edimburgo, "The Elephant House", um café-bar onde J.K Rowling escreveu parte do primeiro livro de Harry Potter.
A universidade em si tem vários campi, mas esta é a parte antiga, com uma biblioteca bem tradicional. Faz você voltar no tempo.
Foram mais dois dias de reuniões aí  uma oficina sobre impactos da mudança climática global na Europa  com os comes e bebes abundantes de um bom evento acadêmico. (Sem pulmão de ovelha, graças a Deus). Mas o notável mesmo foi a degustação de uísque a que fomos convidados uma noite.

Não sou do tipo que bebe, e nunca gostei de uísque, mas, na Escócia, não tinha como ficar de fora. Fui. Numa mesa posta havia várias tacinhas já aguardando os convidados, num belo salão com piso de madeira e decoração antiga. À frente, para nos descrever as bebidas, um escocês alourado de sorriso bobo impossivelmente parecido com o do Rei do Camarote, esse que virou hit da internet em 2013. Acho que era a emoção que ele sentia pelo uísque.

Pra quem não sabe, o uísque é feito da destilação do álcool de cereais (cevada, trigo...). O que se chama de "malte" não é uma planta mas um processo, muito usado no caso dos uísques escoceses, de deixar o grão germinar um pouco e as suas enzimas transformarem amido em açúcar, alterando o sabor. Pode-se portanto usar cevada maltada, trigo maltado, ou assim por diante. Os escoceses daí separam seus tipos de uísque de acordo com a região de origem. O envelhecimento é em barris de carvalho (e não na garrafa). Eles engarrafam a bebida a mais ou menos 60 graus alcoólicos. Este é o uísque puro, mas muitas vezes você já o acha diluído, a uns 40 graus.

No nosso caso, o negócio veio puro mesmo. E eu não imaginava que os fabricantes e bebedores de uísque eram tão criativos. No rótulo há uma descrição do aroma da bebida, do sabor inicial, e do sabor após pingar um pouquinho d´água. O nosso Rei do Camarote -- ou melhor, Rei do Uísque -- estava um amor só, discorrendo sobre essa e aquela garrafa. Perdoem-me não ter atentado para os detalhes, mas vocês vão concordar que haja criatividade. Saquem só a descrição de uma das garrafas que eu provei:

Aroma: ameixa, melão, passas fervidas, grãos de café, e cinzas.
Sabor: Primeiro um sabor seco e travado, daí o de pão de ló assado no licor de frutas vermelhas e com côco verde. (Não estou zoando. Peguem qualquer garrafa de uísque escocês puro que vocês vão ver as descrições viajadas).
Após a gota d'água pra diluir: marmelada de laranja e jaqueta de couro de um fumante, ou o sabor de pudim de leite com uma rodela de laranja flambada em cima.

Você que está aí duvidando, se ler inglês veja a foto.

E esse ainda era normalzinho. Havia outros que alegavam ter cheiro de estojo de primeiros socorros, gosto de pão assado, fósforo riscado e o cacete. Claro não senti gosto de p**** nenhuma a não ser o de álcool, mas vai ver o meu paladar simplesmente não está treinado o bastante.

Eu sei que foi divertido, e o Rei do Uísque logo estava meio mamado e dizendo besteira. Por sorte havia umas bolachinhas com queijo pra enganar o estômago, e em seguida fomos pra um jantar de encerramento. Nada de haggis pra mim, mas teve gente que pediu (na maior parte aqui da Europa os pedidos são individuais em vez de compartilhados como aí no Brasil). De quebra, experimentei a tradição natalina britânica dos Christmas crackers, tubinhos de papelão enrolados em papel de presente. Cada pessoa puxa de um lado, a coisa parte e estala como um traque, e dentro tem uma mensagem, um brinquedo, e/ou uma coroa de papel colorido a ser usada pela pessoa durante o jantar. Coisa simples e boba mas divertida.
Foto de um Christmas cracker e as pessoas puxando.

Valeu a pena. Não comprei saia xadrez nem toquei gaita de foles (embora houvesse vários homens vestidos à caráter e tocando a gaita para os turistas na rua), mas descobri coisas novas sobre a Escócia. Não deixem de vir aqui e levar alguma coisa de lã, que eles aqui vendem por toda parte. Dizem que no verão as áreas naturais também são interessantes. E não deixem de ficar antenados nas notícias até setembro de 2014, quando os escoceses irão às urnas para um referendo histórico decidir se permanecem parte do Reino Unido ou se passam a ser um estado independente. Tal como no Christmas cracker, se partir vai ser um estouro.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Palácios, escritórios comunistas, balé e desventuras em São Petersburgo, Rússia

É inverno. Nosso trem desliza sobre o metal de Helsinki a São Petersburgo. Do lado de fora, campos cobertos de neve cheios de casamatas, torres e fiação, parecendo uma área militar vigiada da Segunda Guerra Mundial. O sol já havia se posto desde as 4h da tarde, e só se viam as luzes brancas de holofotes sobre a neve. Dentro do trem, também metal, pois é o que mais se ouve escapando dos fones de ouvido dos finlandeses. Belas finlandesas de rostinho quadrado e tranças louras no trem, mas sentava-se do meu lado bem um marmanjo com cara de russo e casaco de couro preto cheirando a nicotina. É a vida. A pouco mais de 1h de São Petersburgo, a fronteira. Primeiro entra no trem a polícia finlandesa, depois a russa  estes o autoritarismo em pessoa, quase todos com "a cara do filho que matou o pai", como diria a minha avó. Mas aqui ao menos não há as filas dos aeroportos. O nome do trem, Allegro, parece uma tentativa de corrigir o cenário.

Apesar disso, chegamos bem e sem problemas. Já era noitinha em São Petersburgo, a bela capital imperial russa. A cidade foi erigida pelo czar (imperador) Pedro, o Grande, em 1703, numa tentativa de remodelar a Rússia de acordo com a estética e os costumes da Europa ocidental. Ele passou anos viajando para aprender as maneiras europeias, e quando voltou empregou uma série de mudanças, desde econômicas até coisas tipo obrigar a corte a vestir-se à maneira ocidental, obrigar todo mundo a se barbear, proibí-los de cuspir no chão, etc.

...e fundou esta cidade para ser a capital dos czares russos. São Petersburgo foi, portanto, a capital da Rússia até 1918, quando os revolucionários soviéticos transferiram o centro do poder político de volta a Moscou, que já havia sido a capital antes. O nome "São Petersburgo" não foi dado pelo czar Pedro em homenagem a si próprio, mas sim ao apóstolo Pedro. O nome mudou para Petrogrado na Primeira Guerra Mundial, pois acharam que o russo "grad" para cidade era preferível ao germanismo de "burgo", a língua dos inimigos. Daí a partir de 1924 os soviéticos abandonaram São Pedro de vez e a rebatizaram de Leningrado, já que aqui o revolucionário soviético Lênin fez carreira. Em 1991, depois de um plebiscito, a cidade voltou ao nome original de São Petersburgo. O importante, seja como for, é que aqui  e não Moscou  foi o centro de atividades tanto de czares notáveis como Pedro e Catarina quanto de Lênin e da Revolução do Outubro Vermelho, que transferiu o poder aos soviéticos. Então aqui há mais o que visitar do que em Moscou (sugiro uns 4 a 5 dias).
Nevsky Prospekt, ou Avenida Nevsky, a principal de São Petersburgo.
Esta visita a São Petersburgo chegando de trem da Finlândia no inverno, após a visita à Lapônia, foi a minha segunda. A primeira havia sido final de verão (mas já com temperaturas de outono), chegando de ônibus de Novgorod com amigos. Nessa primeira nós ficamos num albergue onde quase todo mundo estava gripado. E como na Rússia os ambientes quase sempre ficam fechados, imagine a cilada do Bino em que me meti.

Já no inverno o tempo estava friozinho, chão molhado da neve derretida, mas nada impossivelmente frio como a gente sempre acha que está quando imagina a Rússia. O centro da cidade fica particularmente bonito à noite. Você esbarra em várias construções históricas  sobretudo igrejas e palácios convertidos hoje em museus  e fica sem saber qual é a mais bonita. E, ao contrário de Moscou, São Petersburgo é uma cidade fácil de circular a pé.
Vista da janela do Apple Hostel, o nosso albergue na segunda viagem  ninguém gripado. Esses pátios interiores entre os prédios largos são hiper-comuns na Rússia e por toda a ex-União Soviética.
Catedral de Kazan (1801) no centro de São Petersburgo.
Igreja do Nosso Salvador no Sangue Derramado (1883). É, o título é assim mesmo, mas não se refere ao sangue de Cristo, e sim ao do Czar Alexandr II, assassinado aqui. A igreja foi construída meio que em sua homenagem.
Canais semi-congelados em São Petersburgo.

Não há dúvidas de que São Petersburgo é uma cidade mais elegante e mais clássica do que Moscou. Se assemelha um pouco mais ao que encontramos na Áustria ou na Alemanha. Há quem critique, dizendo que tudo é imitado (veja, por exemplo, como a Catedral de Kazan se parece com a Basílica de São Pedro em Roma, ou como a Igreja do Sangue Derramado parece a Catedral de São Basílio em Moscou). Seja como for, é inegável que São Petersburgo tem muito charme. Andar por aqui à noite é a glória.

O ponto mais turístico da cidade é, provavelmente, o Palácio de Inverno transformado no Museu Hermitage, fundado pela czarina Catarina, a Grande, em 1764. O museu é na verdade um complexo de vários prédios, entre eles o Palácio de Inverno (abaixo).
Um primo meu, em frente ao Palácio de Inverno em São Petersburgo. (A minha foto saiu borrada).
Palácio de Inverno durante o dia e no verão, na minha primeira visita à cidade. (É pra olhar pra o palácio, não pra as pernas da moça).
Saibam que as filas são imensas, e que as obras de arte no interior são quase exclusivamente estrangeiras. Começou como a coleção particular de Catarina, e depois se expandiu. Vale a pena ver mais pela beleza dos interiores do que da arte em si, que você encontra mais dos mesmos estilos na França, na Itália ou na Holanda. Se quiser algo autenticamente russo, vá ao Museu Nacional Russo, perto dali. Foi o que fiz na minha segunda visita. Digo que gostei até mais que o Hermitage. Afinal, você está na Rússia, e vale a pena ver o que os pintores russos produziram.
Retrato pintado de Leo Tolstói, escritor russo de obras antológicas como Anna Karenina e Guerra e Paz.
Interior palaciano do Museu Nacional Russo.
O original do famosíssimo Cavaleiro na Encruzilhada (1878), muito conhecido entre jogadores de RPG e fãs de fantasia medieval, mas que nem sempre sabem que este é o quadro de um pintor russo, Viktor Vasnetsov, do século XIX.

Outra atração fundamental na Rússia é o balé. Em Moscou há a companhia Bolshói, já aqui em São Petersburgo há o Mariinsky  ambos você precisa agendar com meses de antecedência se quiser ingressos pro assentos menos caros. Fui ao Mariinsky em ambas as vezes em que estive em São Petersburgo, e não me arrependi. Não é aquela coisa oh-meu-Deus-que-coisa-estupenda-affee-maria, a menos que você seja muito entusiasta da dança. Mas já que veio até aqui, assista. Vale a pena.

Na primeira visita à cidade nós fomos de ônibus até o teatro, eu e meus quatro companheiros de viagem, e saboreamos novamente a maravilhosa delicadeza dos serviços russos. Eles aqui têm um método pra lá de eficiente para cobrar a passagem no ônibus: como na maior parte da Europa, não há cobrador, você compra o bilhete da passagem antecipadamente. Mas em vez de mostrar o bilhete ao motorista, eles aqui têm uma tia com uma bolsa a tira-colo se esprememendo e esbravejando no meio do ônibus lotado e querendo ver a passagem de todo mundo. Conosco ela gritou feito uma condenada (em russo, é claro) até entendermos que ela queria ver os nossos 5 bilhetes todos ao mesmo tempo, pois ela achou que estávamos repassando o mesmo bilhete um para o outro e mostrando um de cada vez. (E você aí reclamando dos cobradores no Brasil...).

Na segunda viagem eu simplesmente evitei os ônibus e fomos a pé.
No Teatro Mariinsky, nas varandinhas. Sim, o interior do teatro já vale a vinda. 

Já se você não é tão chegado nessa coisa mais clássica e prefere aqueles ambientes à lá Guerra Fria e União Soviética, não deixe de ver o Museu de História Política, onde fica o antigo gabinete de Lênin e a varandinha de onde ele discursava às multidões de operários. De quebra, você verá muitos cartazes de propaganda soviética (que são, inclusive, dos souvenirs mais populares aqui na Rússia).
O braço forte vermelho esmagando a cobra nazista.
Tipo: "Meu pai se alistou, e o seu?"
Escritório da época  com direito a decoração natalina.
Antigo escritório de Lênin, com a porta para a varandinha de onde ele discursava.

Por fim, deixo vocês com as fotos dos Palácios de Pedro (Peterhof) e de Catarina, cada um um dia inteiro de passeio, pra ver os jardins e os interiores super-decorados  mas só vale a pena nos meses mais quentes do ano (maio a outubro).
Ruas e praças de São Petersburgo no inverno.
O largo Rio Neva, que corta a cidade, semi-congelado.
Nos jardins do Peterhof, palácio do czar Pedro nos arredores de São Petersburgo.
Entrada para o palácio.
Jardins nos arredores.
Fontes mis e estátuas de ouro na face interna do palácio. 
(E aí você se pergunta por que é que a classe trabalhadora russa se revoltou...). 
Com o audioguia no interior dourado do Palácio de Catarina, também nos arredores da cidade.
Nos jardins do Palácio de Catarina, com as folhas começando a ganhar cor em setembro.

Caí fora antes de gripar, mas a tempo de ver essas belezas da capital imperial russa. Uns dias aqui valem muito a pena. No verão há esse "plus" de poder ver os palácios. Um dia ainda retorno à Rússia pra tomar o trem transiberiano 
 e, é claro, contar aqui.

до свидания! [Da svidâniya], Rússia! Até a próxima! País novo no próximo post...