sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Nas Cavernas de Postojna (Eslovênia)


O meu primeiro dia de 2014 foi literalmente cavernoso. Depois da fuzarca de réveillon em Ljubljana (post anterior), a cidade estava deserta. Recebi mil recomendações sobre cafés a visitar, mas tudo estava fechado. Meu café da manhã foi portanto extraído de máquinas automáticas. Uma delícia. Na verdade, foi melhor do que eu imaginei: consegui um iogurte de côco, um sanduíche, e de quebra um pacote de batata chips. Senti-me como se tivesse feito uma feira, naquela entradinha despretensiosa numa avenida em Ljubljana. A caminho da rodoviária.

Como era feriado (1 de janeiro), muito da cidade estaria fechado, e resolvi deixar pra visitá-la depois. Iria eu às Cavernas de Postojna [lê-se Postóina], uma das maiores atrações da Eslovênia. São 20 kilômetros de cavernas, usadas para turismo desde a época do Império Austríaco dos Habsburgo no século XVII. O próprio imperador esteve aqui certa vez, e o destino era popular na Áustria. Inclusive, é estranho ver pixações do tipo "Eu estive aqui" datadas de 1800 e coisa. (A gente, não sei por que, às vezes tem a ilusão de que as pessoas antigamente eram muito cuidadosas com a natureza. Não aqui.).

Mas vamos ao passeio.
Meu primeiro café da manhã de 2014.
... a entradinha fica aqui, logo à direita. 
A rodoviária. Não, aquela amarelinha lá atrás é a estação de trens. A rodoviária é essa aqui mais perto, cinza.
Esta aqui, a portentosa rodoviária de Ljubljana. (Mas não posso esculhambar demais, porque na Europa ônibus interurbano é pra pobre; o considerado civilizado é andar de trem, e a estação de trem é boa. Mas hoje eu fui de pobre). 

A viagem de ônibus é curta, e deu pra ir farofando no caminho. Você tem umas visões campestres do interior da Eslovênia, ali naquele quase-Alpes, e chega a Postojna, uma cidadezinha com a cara e o jeito típicos do centro da Europa (vá ao interior da Áustria, ou da República Tcheca, e verá as mesmas construções, o mesmo jeitão das cidades).

Nesta aqui, havia um micro-centro com restaurante, ringue de gelo para patinação, e pouco mais que isso. As cavernas ficam a 1km de caminhada, uma caminhada agradável e tranquila. Eu, sozinho, sem conhecer ninguém num raio de muitos quilômetros, fui tomado por aquela sensação de estar à deriva, de "estar por aí", despreendido, como andarilho. A sensação é boa se você souber apreciá-la. Não é o tipo de coisa que você talvez vá querer para todo o sempre, mas de vez em quando, faz bem.
Campo no interior da Eslovênia. Vista da janela do ônibus.
Centrinho de Postojna, com o ringue de patinação no gelo.
Caminhando contra o vento, sem lenço mas com documento.

Era ainda de manhã, e o local estava abrindo. À entrada das cavernas, há uma infraestrutura para turistas: um restaurante, uma lojinha de souvernirs etc., além, é claro, da bilheteria. A entrada podia ser "franca" na época dos imperadores da Áustria, mas hoje não é mais. Mas não é caro. Visitei primeiro um museu dentro das cavernas, onde é possível ver a salamandra sem olhos, acostumada a viver na escuridão. Em seguida, tive um almoço chinfrim ali naquele restaurante mesmo -- onde comi batata amassada e a sobremesa foi a banda de limão que veio pra espremer sobre a salada. Eu disse que o dia foi cavernoso.

Há horas fixas para a entrada nas cavernas maiores, o que ocorre só com os guias, e em grandes grupos. Lá dentro você pega um trenzinho (que faz você se sentir em Os Caçadores da Arca Perdida) e depois há um longo trecho a pé. A visita toda dura umas 2 horas, então é bom você gostar de caverna. Mas, a menos que você seja claustrofóbico, é difícil não se maravilhar com todos as estalactites e estalagmites. (Se você até hoje não sabe qual vem de cima e qual vem de baixo, faça como eu, que associou estalac-tite ao teto --- é a que vem de cima). Elas são formadas pelos minerais nas goteiras d´água. Aqui me disseram que o processo constrói 1 centímetro a cada século. Portanto, um estalactite de 2m levou 20 mil anos para se formar. Faz você olhar para eles com mais respeito.
O museu-caverna a que me referi. Nas telas há informação, e há também aquários onde se pode ver a salamandra cega. 
O que hoje seria considerado vandalismo num lugar como estes, no século XIX era normal. Mensagens do tipo "Eu estive aqui", como aquela ali de 1836.
A área da entrada para a caverna principal.
O trenzinho na caverna. Ele mistura uma sensação Disney com a de que você está em algum cenário de Indiana Jones.
Muitas estalactites.
Muitas estalactites.
Há uma longa caminhada pela caverna. A extensão é de 20km, mas se visita só uma parte.
Fascinantes formações rochosas. Pra deixar os geólogos e demais admiradores babando.

Prepare-se porque há muita gente. Tantas que os guias dividem os grupos por idioma. Os italianos, claro, eram os mais sonoros. Às vezes você tinha a impressão de que ia desmoronar tudo. Fui no grupo anglófono, com um guia bem amistoso. Foi nos mostrando a "sala branca", a "sala vermelha", e assim por diante. Até que "E esta aqui é a sala negra", e pum, apagou as luzes. Dá uma sensação de impotência imensa, quando você se dá conta do quando depende do sentido da visão, e que a sua chance de achar a saída no escuro éa zero. Ia ter que viver igual à salamandra. 

Duas horas de passeio depois, saímos. Como os dias de inverno aqui são curtos, já não havia lá muita luz, mas já era bem melhor que o escuro. Voltei ao restaurante e tive a melhor refeição do dia: a merenda da tarde, um belo bolo esloveno.
Meu bolo esloveno (que obviamente aqui não se chama "bolo esloveno", mas não sei se tem nome; na minha notinha veio escrito "Gotovina", mas se você botar isso no Google vai aparecer um tenente-general croata com esse sobrenome). Massa cremosa no meio, geleia de mirtilho no recheio, amêndoas, e massa folhada com açúcar refinado em cima. Estava bom!

Fiz a caminhada de volta à cidade, e ainda fiquei ali enrolando um bocadinho. Havia que esperar até a chegada do ônibus de volta a Ljubljana. Na falta de outra coisa, fiquei ouvindo música na praça pública, assistindo à criançada patinar no gelo melhor do que eu. Eu precisaria de um pinguim igual ao desse menino aí abaixo.
Criançada patinando no gelo em Postojna.
Aguardando ao crepúsculo o meu ônibus de volta a Ljubljana. Vejam que épico que parece.

Deixo vocês com algumas fotos da região da entrada das cavernas, tiradas ainda à luz do dia. Belo cenário invernal.
Tranquilidade é a palavra que melhor descreve a sensação o lugar. Bom pra aquelas horas tipo "momentos a sós".




domingo, 21 de setembro de 2014

Bem vindos à Eslovênia: como entrei o meu 2014


31 de dezembro de 2013. Em vinte minutos o ônibus me trouxe de Trieste na Itália até Sežana, na Eslovênia. A natureza é idêntica, mas a atmosfera humana muda completamente. Os eslavos em geral são muito mais discretos que os italianos, e isso de certa forma reflete no ambiente. Além disso, as pessoas nos antigos países comunistas têm uma postura mais humilde, sobretudo os de mais idade, e isso se percebe na vestimenta simples e até na linguagem corporal. 


As ruas são muito mais quietas, e tudo parecia dominado por uma serenidade invernal. Não vi alvoroços de grupos de jovens onde cada um tentava aparecer mais. E, apesar de todo o meu apreço pelas italianas, ao meu ver a beleza feminina sobe um ponto aqui no lado esloveno da fronteira.

Fosse este um ambiente árido e quente, Sežana seria a típica cidadezinha perdida do velho oeste. Apenas algumas casas e a estação de trem. Mas como é inverno e é a Eslovênia, um país ex-comunista que integrava a Iugoslávia e que se fez independente em 1991, o que temos são árvores desfolhadas e uma mistura de arquitetura austríaca (da época em que isto cá era domínio dos Habsburgo) e de prédios de cimento da época do Marechal Tito (governante comunista da antiga Iugoslávia de 1953-1980). 


Mas isto aqui era uma passagem rápida. Duas horas de trem ainda me separavam da capital, Ljubljana. (Lê-se Liubliana; o J tem som de I. Já o ž tem som de J, então Sežana se lê como se fosse Sejana em português. Parece confuso, mas você se habitua rápido). Ljubljana é que era o meu destino para esta noite de réveillon.

Prédios de cimento ao estilo arquitetônico comunista e algumas casas tradicionais. 
Pátio de espera na estação de trens de Sežana.
Local aonde o meu trem chegou em Ljubljana.
Meu trem ia até a estação central, mas saltei antes, num parque, numa estação menor que era mais próxima do meu albergue: o Sax Hostel. Esse nome era terrível pra se pedir informação. Facilmente as pessoas entenderiam "Sex Hostel", e olhariam pra você como se estivesse buscando turismo sexual com as europeias do leste, então cuidei na pronúncia (sax, à là britânica, e não à americana). 

Me pus ali com o mapa próximo àquelas árvores que você vê. Na ausência do sol, eu estava sem saber que lado era o leste e que lado era o oeste, e pra onde eu deveria caminhar. Ao que então uma simpática eslovena loura passeando com seu cachorro se ofereceu a me ajudar. (Parecia cena de filme). Eles aqui falam muito bem inglês, sobretudo os mais jovens. Me apontou a direção do centro  pra onde eu deveria caminhar , agradeci, nos desejamos Feliz Ano Novo, e cada um seguiu seu caminho. (Queria o quê, que eu perguntasse se ela já tinha planos pra hoje à noite?).

A caminhada até o centro foi por ruas molhadas, frias e vazias. Um relógio digital no alto de um prédio marcava, em vermelho, a data (31/12) e os 4 graus de temperatura. Por sorte foi relativamente curta. Ljubljana, ainda que seja a capital, é relativamente pequena, e em 30 minutos você atravessa o centro a pé. 
Ruas frias e quietas na véspera de Ano Novo em Ljubljana.
Pequena praça em Ljubljana, e o relógio digital vermelho lá no alto ao fundo.  Boris Kidrič [Kidrítch] aqui foi um dos líderes do movimento de resistência à ocupação nazista da Eslovênia, durante a Segunda Guerra.
Amplas avenidas, com a mistura da arquitetura tradicional de influência austríaca e, à esquerda, os prédios moderno da era comunista.
Chegando ao centro histórico...
Centro histórico de Ljubljana, muito bonitinho. As pessoas foram também começando a se fazer presentes.

Eu precisava atravessar o centro histórico para chegar ao Sax Hostel, então aproveitei para ver o que podia enquanto ainda havia sol. Ljubljana é uma pequena joia. Deve ser também muito bonitinha no verão. Como era inverno e final de dezembro, tínhamos ainda as feirinhas de produtos de Natal típicas da Europa Central (Alemanha, Áustria, Polônia, Hungria...). Entrarei mais em detalhes quando falar da cidade. Por ora só o visual por onde passei.

Caminhei por essa rua aí, margeando as barraquinhas de Natal e já vendo as coisas. De artesanatos em madeira até comidas e bebidas típicas  e, claro, algumas bobagens Made in China aqui e ali. O Sax Hostel ficava do outro lado do centro, ainda a uns 15 minutos dali. 

Afastando-se ali do centro, as ruas iam ficando quietas novamente, e um chuvisco começou a cair. Apressei o passo. Olhando o meu mapa de quando em vez, alcancei o Sax Hostel, uma casa desolada, grafitada, com cara de bar de caminhoneiro, mas muito aconchegante. De fato, o albergue são os fundos de um bar, um bar de jazz, daí o nome do lugar. 
O Sax Hostel.
Fui recebido lá por Léa e Rosie. Léa era uma coroa de cabelo loiro curto e ar bastante ativo. Rosie era uma grande e sossegada terrier castanha. Fui instalado no dormitório Miles Davis havia também o Louis Armstrong e outros, cada quarto com o nome de um mito do blues ou do jazz. Não havia ninguém, embora uma das seis camas estivese claramente ocupada por alguém que devia estar na cidade. Era hora de... ? Comer.

Não era tarde (suas 7 da noite), mas como era réveillon, os restaurantes fechariam cedo (sim, aqui funciona assim). Um primeiro, vegetariano, aonde fui já estava fechando. Acabei entrando numa pizzaria ainda decorada para o Natal e tocando Tina Turner. Tinha um ar retrô, toda de tijolinhos como se o restaurante inteiro fosse uma grande churrasqueira. Pedi uma pizza inteira pra mim, não lembro o sabor, mas lembro que as músicas dos anos 80 continuavam, agora com Madonna - Like a Virgin. Senti-me prestes a celebrar o réveillon de 1985.

A comida na Eslovênia é uma grande mistura das culinárias italiana e centro-europeia (de forte influência da Áustria e da Alemanha, com seus bolos, carnes, etc). Mas fiquei contente que há mais opções de bebida (ex. sucos produzidos aqui) que na Itália, onde supõem que você sempre vai querer vinho. Mas eu falarei mais da gastronomia daqui depois; por ora foi somente uma pizza simples.
Léa e Rosie.
Segui pra dar um bordejo no centro, agora sem a mochila nas costas e com mais calma. Vi as várias barraquinhas, experimentei algumas coisas (mais detalhes virão), e andei ali por debaixo do chuvisco na calada da noite.  É pequeno, como eu havia dito. Entrei rapidamente na igreja no centro e vi um mar de gente, no que parecia ser uma missa de réveillon. Haveria shows de rua, mas esses só começariam mais tarde, e ainda eram umas 21h.

Resolvi que iria ao albergue para uma power nap  uma soneca empoderadora, daquelas de que você acorda revigorado  pra levantar mais tarde e ver a música e os fogos à meia-noite. Tirei minha roupa de rua, botei o calção, aboletei-me gostoso na cama e, não deu cinco minutos, fui interrompido. 

Chegaram ao quarto Léa e duas moças, uma animada gordinha emo com franja cobrindo um dos olhos e uma outra, um tanto mais velha (nos seus 30 e poucos), com ar consternado. Seriam as minhas colegas de quarto e de réveillon.

Levantei-me e pus-me a postos. Quando apresentei-me como brasileiro, a gordinha logo iluminou o rosto dizendo que lia Paulo Coelho, como grande parte dos jovens na Europa. (Você fique aí achando que do Brasil só se conhece samba e futebol; Paulo Coelho é incrivelmente popular aqui na Europa).  Um dos livros dele, inclusive, dos poucos que eu li, se passa aqui em Ljubljana: Verônica Decide Morrer. Coincidência ou não, a moça consternada aqui também se chamava Verônica. A gordinha era Nádia.

Conversamos, e Verônica me explicou num ar de enterro  que junto com seu rosto pálido, cabelo comprido escuro e casaco preto faziam-na parecer uma personagem de filme de vampiro  que seu celular não estava funcionando.  Quando ela foi ao banheiro, comentei com Nádia que esperava que Verônica não decidisse morrer por causa disso.  Ela riu. Resisti e não fiz a piada à própria Verônica.

Saímos os três. Troquei a minha power nap por outro bordejo no centro, agora acompanhado, e lá encontraríamos mais uns amigos delas. A música estava finalmente começando, e o lugar ficando mais animado. Tomamos quentão nas barracas e comemos mais pizza, desta vez de um fast-food de balcão onde eles faziam na hora e você via os pizzaiolos balançando a massa em seus braços suados.

As minhas colegas de passeio eram eslovenas, mas do interior da Áustria. (Ou seja, eram etnicamente eslovenas, mas nascidas e criadas na Áustria, e com passaporte austríaco). Descreveram-se como austro-eslovenas. Logo achamos os outros, apesar do celular quebrado. As ruas estão longe de ter o mesmo agito de qualquer festa popular no Brasil, mas também não é o marasmo que você talvez imagine  ainda que esteja um frio da gota. Sinta a atmosfera aí no vídeo que fiz.

Caso você não saiba, na Eslovênia se fala esloveno, uma língua eslava próxima do que se fala na Sérvia e na Croácia. Mas parte do vídeo talvez tenha lhe soado familiar, hehe. Se eu não tivesse filmado, iam dizer que eu inventei. 

Como as garotas não pareciam tão interessadas nos fogos e eu sim, nos despedimos brevemente e eu segui para a beira do rio, com vista para o castelo. Cruzei a multidão e cheguei a tempo a uma das pontes. Era a entrada de 2014. Até aqui um ano de muitas viagens, novidades e reviravoltas. Deixo vocês com o vídeo dos fogos, e volto na próxima postagem para falar mais de Ljubljana e da Eslovênia.



sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Trieste: Uma breve passagem pela Itália irredenta

Veja uma versão de melhor visualização deste post no novo site, em:


Quando cheguei ao meu compartimento no trem, havia um indiano no meu lugar, um outro rapaz, e um velhinho italiano com cara de velhinho italiano, chupando tangerina. Apontei ao indiano que eu tinha uma reserva para aquele assento, e ele se mexeu. Quando achei que a trupe estava completa, me chegou ainda um jovem casal paulistano. Crentes que não estavam sendo entendidos por ninguém. "Ai amor, preciso ir no banheiro, me dá meu telefone?". "Pra que o telefone? Vai mijar". "Ah, eu quero". "Não vai deixar cair no vaso hein. E não encosta no vaso não".

Eu saí de Bolonha e rumava para Trieste, a última cidade da Itália na costa do Mar Adriático, no nordeste do país. Ela fica já na fronteira com a Eslovênia (meu destino seguinte), passando da Europa latina para a Europa eslava. No caminho, os paulistanos desceram em Veneza, que eu já havia visitado. São viagens relativamente curtas aqui, de poucas horas, mas os italianos já ficam parecendo peru em véspera de Natal, andando pra lá e pra cá no trem procurando sinal de celular (curiosamente, aqui na Itália é TIM) e desesperados para acender cigarro em cada parada, ainda que fossem meros minutos e não desse nem tempo pra fumar o cigarro todo.
Saguão da estação central de trens em Trieste, Trieste Centrale.

O sol já havia caído quando eu cheguei a Trieste. A estação de trens é um deslumbre, que contrasta com a rodoviária (que parece cenário de Resident Evil ou filme de terror) e que eu visitaria a seguir para ir à Eslovênia, já que os dois países não se entendem tão bem assim e basicamente não há trens de um pro outro  só ônibus.

Meu quarto era num hotel simples no centro, com jeito e cheiro do pensionato onde eu morei logo que me mudei para Curitiba no começo da década passada. Um cheiro de madeira, de lugar fechado, e o resto é difícil descrever. Não foi difícil de achá-lo. Trieste, apesar do quilate histórico, é uma cidade pequena e facílima de navegar.

Você talvez não saiba, mas Trieste não foi construída pelos italianos. Sua história como parte da Itália é bem breve. Trieste foi de 1382 a 1920 parte do Império Austríaco  e depois Austro-Húngaro  dos Habsburgo. Ela era largamente habitada por eslovenos e germânicos até o final da Primeira Guerra Mundial. Por muito tempo era o único porto da Áustria, que hoje não tem mais acesso ao mar. Na Primeira Guerra a Itália entrou do lado dos Aliados (França, Reino Unido, EUA), vencedores, e com isso ganhou este litoral aqui que costumava ser da Áustria. No entanto, a Itália não ficou nada satisfeita; queria mais; queria todo o litoral que hoje pertence à Croácia. Vamos à chamada "Itália irredenta".

Após a unificação italiana no Século XIX, muitos italianos continuaram a viver fora do seu território. O mundo naquela época era muito mais misturado: não tinha muito isso de "italiano vive na Itália, francês vive na França". Havia mistura de povos, e no Império Austríaco, por exemplo, havia mais de 10 nacionalidades misturadas e vivendo sob o mesmo imperador (tchecos, sérvios, italianos, húngaros...). No Século XIX é que o nacionalismo ganhou força  inspirado nos europeus pelos movimentos nacionalistas das Américas, diga-se de passagem. Começou então essa coisa de "nós queremos ter o nosso próprio país, que reúna a nossa gente". Só que, óbvio, se o povo está misturado, onde traçar as fronteiras? A Itália não estava satisfeita com as fronteiras que tinha na unificação; queria também os territórios onde havia minorias italianas.

Eis o irredentismo, muito praticado hoje em dia por Vladimir Putin. Surgiu a visão de que aquelas regiões eram a chamada Itália irredenta, que se precisavam redimir, readquirir, reunir à pátria-mãe. Ainda que os italianos nelas fossem minoria, aquelas regiões eram vistas como historicamente parte da Itália. Qualquer semelhança com a postura de Putin em relação aos russos na Ucrânia, Geórgia e demais países vizinhos não é mera coincidência.  
Em vermelho as regiões que a Itália queria: a ilha da Córsega, atual parte da França; parte da região francesa de Savoie ali à esquerda; e à direita a costa do outro lado do Mar Adriático, hoje parte da Eslovênia e da Croácia. A Itália dizia que aquilo ali tudo havia sido domínios de Veneza, e deveria portanto fazer parte da Itália.

Quando os Aliados (França, Reino Unido, EUA) negaram-se a reconhecer aquelas regiões como italianas ao fim da Primeira Guerra, a Itália ficou azeda. A França ficou com o que queria pra ela, e ao leste do Mar Adriático formou-se um novo país, a Iugoslávia, que depois na década de 1990 se fragmentaria em Eslovênia, Sérvia, Croácia e outros. A Itália tentaria novamente na Segunda Guerra, dessa vez entrando ao lado de Hitler, mas sem sucesso. 

Bem, a Itália conseguiu Trieste. A arquitetura te lembra a Áustria, mas a dimensão humana já é bastante italiana. Durante os anos 1920 os fascistas fizeram um terrorismo maciço (da milícia dos chamados "camisas negras") contra não-italianos, sobretudo eslovenos, que emigraram em grande número. E ao longo do tempo a cidade foi sendo absorvida. Daí você entende que a relação com a vizinha Eslovênia poderia ser melhor, embora hoje em dia entre as pessoas comuns a relação me pareça tranquila.
Para ajudar na orientação. Veja Trieste ali no finalzinho do território italiano ao norte do Mar Adriático.

Em Trieste há ruínas romanas e prédios do tempo dos Habsburgo no centro. É um centrinho tranquilo, bom de andar e onde se pode tomar sorvete italiano enquanto se observa arquitetura veneziana e austríaca, e o mar. É sossegada, a cidade. 





Presépio numa igreja de Santo Antônio.
Praça principal em Trieste.
Mar Adriático.

A atração mais visitada aqui é provavelmente o Castello di Miramare, um palácio feito numa ponta de terra defronte ao mar para a realeza austríaca do Século XIX. O nome já é sugestivo. Contudo, havia reformas nesta época, e a beleza está mais nos jardins ao redor do que no castelo em si. Portanto, é uma visita mais para o verão ou a primavera do que para um dia cinzento de inverno. Eu também tinha basicamente só a noite em que cheguei e a manhã do dia seguinte, então só deu para visitar o centro da cidade. 

Estávamos já no dia 31 de dezembro, e meu plano era passar o réveillon em Ljubliana, capital da Eslovênia. Era preciso tomar o ônibus para Sežana, no lado esloveno da fronteira, e de lá o trem para a capital  já que, como eu disse, a Itália e a Eslovênia não têm trens de uma para a outra. (Esse ž com chapeuzinho invertido lê-se como se fosse um J, portanto Sejana em português).  

Ao contrário do luxo da estação de trens, aqui a estação de ônibus parecia a rodoviária de Feira de Santana, só que depois do armageddon. Tudo com ar vagabundo mas quieto (ao contrário da vivaz rodoviária feirense, onde televisão, rádio e conversê se misturam). Mas, sério, parecia cenário de The Walking Dead ou qualquer outro apocalipse de zumbi. Vejam as fotos.
Rodoviária de Trieste.
Interior.
Portas de acesso aos ônibus, com cara de saída de emergência de prédio americano abandonado.
O lugar onde você toma os ônibus.

A bagatela de 2,70 euros te cobre os 20 minutos de "viagem" até Sežana, então não reclamei. Dei um bordejo na cidade, almocei pela rua, e desejei muito auguri a todos, como fazem os italianos às vésperas do Ano Novo. 

Deixo vocês com a visão de Trieste à noite. E que a jornada na ex-Iugoslávia se inicie! A entrada de 2014 em Ljulbliana, no próximo post.
Igreja de Santo Antônio em estilo neoclássico.