sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Trieste: Uma breve passagem pela Itália irredenta

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Quando cheguei ao meu compartimento no trem, havia um indiano no meu lugar, um outro rapaz, e um velhinho italiano com cara de velhinho italiano, chupando tangerina. Apontei ao indiano que eu tinha uma reserva para aquele assento, e ele se mexeu. Quando achei que a trupe estava completa, me chegou ainda um jovem casal paulistano. Crentes que não estavam sendo entendidos por ninguém. "Ai amor, preciso ir no banheiro, me dá meu telefone?". "Pra que o telefone? Vai mijar". "Ah, eu quero". "Não vai deixar cair no vaso hein. E não encosta no vaso não".

Eu saí de Bolonha e rumava para Trieste, a última cidade da Itália na costa do Mar Adriático, no nordeste do país. Ela fica já na fronteira com a Eslovênia (meu destino seguinte), passando da Europa latina para a Europa eslava. No caminho, os paulistanos desceram em Veneza, que eu já havia visitado. São viagens relativamente curtas aqui, de poucas horas, mas os italianos já ficam parecendo peru em véspera de Natal, andando pra lá e pra cá no trem procurando sinal de celular (curiosamente, aqui na Itália é TIM) e desesperados para acender cigarro em cada parada, ainda que fossem meros minutos e não desse nem tempo pra fumar o cigarro todo.
Saguão da estação central de trens em Trieste, Trieste Centrale.

O sol já havia caído quando eu cheguei a Trieste. A estação de trens é um deslumbre, que contrasta com a rodoviária (que parece cenário de Resident Evil ou filme de terror) e que eu visitaria a seguir para ir à Eslovênia, já que os dois países não se entendem tão bem assim e basicamente não há trens de um pro outro  só ônibus.

Meu quarto era num hotel simples no centro, com jeito e cheiro do pensionato onde eu morei logo que me mudei para Curitiba no começo da década passada. Um cheiro de madeira, de lugar fechado, e o resto é difícil descrever. Não foi difícil de achá-lo. Trieste, apesar do quilate histórico, é uma cidade pequena e facílima de navegar.

Você talvez não saiba, mas Trieste não foi construída pelos italianos. Sua história como parte da Itália é bem breve. Trieste foi de 1382 a 1920 parte do Império Austríaco  e depois Austro-Húngaro  dos Habsburgo. Ela era largamente habitada por eslovenos e germânicos até o final da Primeira Guerra Mundial. Por muito tempo era o único porto da Áustria, que hoje não tem mais acesso ao mar. Na Primeira Guerra a Itália entrou do lado dos Aliados (França, Reino Unido, EUA), vencedores, e com isso ganhou este litoral aqui que costumava ser da Áustria. No entanto, a Itália não ficou nada satisfeita; queria mais; queria todo o litoral que hoje pertence à Croácia. Vamos à chamada "Itália irredenta".

Após a unificação italiana no Século XIX, muitos italianos continuaram a viver fora do seu território. O mundo naquela época era muito mais misturado: não tinha muito isso de "italiano vive na Itália, francês vive na França". Havia mistura de povos, e no Império Austríaco, por exemplo, havia mais de 10 nacionalidades misturadas e vivendo sob o mesmo imperador (tchecos, sérvios, italianos, húngaros...). No Século XIX é que o nacionalismo ganhou força  inspirado nos europeus pelos movimentos nacionalistas das Américas, diga-se de passagem. Começou então essa coisa de "nós queremos ter o nosso próprio país, que reúna a nossa gente". Só que, óbvio, se o povo está misturado, onde traçar as fronteiras? A Itália não estava satisfeita com as fronteiras que tinha na unificação; queria também os territórios onde havia minorias italianas.

Eis o irredentismo, muito praticado hoje em dia por Vladimir Putin. Surgiu a visão de que aquelas regiões eram a chamada Itália irredenta, que se precisavam redimir, readquirir, reunir à pátria-mãe. Ainda que os italianos nelas fossem minoria, aquelas regiões eram vistas como historicamente parte da Itália. Qualquer semelhança com a postura de Putin em relação aos russos na Ucrânia, Geórgia e demais países vizinhos não é mera coincidência.  
Em vermelho as regiões que a Itália queria: a ilha da Córsega, atual parte da França; parte da região francesa de Savoie ali à esquerda; e à direita a costa do outro lado do Mar Adriático, hoje parte da Eslovênia e da Croácia. A Itália dizia que aquilo ali tudo havia sido domínios de Veneza, e deveria portanto fazer parte da Itália.

Quando os Aliados (França, Reino Unido, EUA) negaram-se a reconhecer aquelas regiões como italianas ao fim da Primeira Guerra, a Itália ficou azeda. A França ficou com o que queria pra ela, e ao leste do Mar Adriático formou-se um novo país, a Iugoslávia, que depois na década de 1990 se fragmentaria em Eslovênia, Sérvia, Croácia e outros. A Itália tentaria novamente na Segunda Guerra, dessa vez entrando ao lado de Hitler, mas sem sucesso. 

Bem, a Itália conseguiu Trieste. A arquitetura te lembra a Áustria, mas a dimensão humana já é bastante italiana. Durante os anos 1920 os fascistas fizeram um terrorismo maciço (da milícia dos chamados "camisas negras") contra não-italianos, sobretudo eslovenos, que emigraram em grande número. E ao longo do tempo a cidade foi sendo absorvida. Daí você entende que a relação com a vizinha Eslovênia poderia ser melhor, embora hoje em dia entre as pessoas comuns a relação me pareça tranquila.
Para ajudar na orientação. Veja Trieste ali no finalzinho do território italiano ao norte do Mar Adriático.

Em Trieste há ruínas romanas e prédios do tempo dos Habsburgo no centro. É um centrinho tranquilo, bom de andar e onde se pode tomar sorvete italiano enquanto se observa arquitetura veneziana e austríaca, e o mar. É sossegada, a cidade. 





Presépio numa igreja de Santo Antônio.
Praça principal em Trieste.
Mar Adriático.

A atração mais visitada aqui é provavelmente o Castello di Miramare, um palácio feito numa ponta de terra defronte ao mar para a realeza austríaca do Século XIX. O nome já é sugestivo. Contudo, havia reformas nesta época, e a beleza está mais nos jardins ao redor do que no castelo em si. Portanto, é uma visita mais para o verão ou a primavera do que para um dia cinzento de inverno. Eu também tinha basicamente só a noite em que cheguei e a manhã do dia seguinte, então só deu para visitar o centro da cidade. 

Estávamos já no dia 31 de dezembro, e meu plano era passar o réveillon em Ljubliana, capital da Eslovênia. Era preciso tomar o ônibus para Sežana, no lado esloveno da fronteira, e de lá o trem para a capital  já que, como eu disse, a Itália e a Eslovênia não têm trens de uma para a outra. (Esse ž com chapeuzinho invertido lê-se como se fosse um J, portanto Sejana em português).  

Ao contrário do luxo da estação de trens, aqui a estação de ônibus parecia a rodoviária de Feira de Santana, só que depois do armageddon. Tudo com ar vagabundo mas quieto (ao contrário da vivaz rodoviária feirense, onde televisão, rádio e conversê se misturam). Mas, sério, parecia cenário de The Walking Dead ou qualquer outro apocalipse de zumbi. Vejam as fotos.
Rodoviária de Trieste.
Interior.
Portas de acesso aos ônibus, com cara de saída de emergência de prédio americano abandonado.
O lugar onde você toma os ônibus.

A bagatela de 2,70 euros te cobre os 20 minutos de "viagem" até Sežana, então não reclamei. Dei um bordejo na cidade, almocei pela rua, e desejei muito auguri a todos, como fazem os italianos às vésperas do Ano Novo. 

Deixo vocês com a visão de Trieste à noite. E que a jornada na ex-Iugoslávia se inicie! A entrada de 2014 em Ljulbliana, no próximo post.
Igreja de Santo Antônio em estilo neoclássico.


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