sexta-feira, 31 de julho de 2015

África Negra

A África Negra, também conhecida como Sub-Saariana (embora o termo seja ligeiramente pejorativo, pois originalmente é eurocêntrico, com sua ideia de que o sul está "abaixo", e eles do norte, acima), é um dos lugares mais memoráveis que já visitei. Por razões boas e ruins. Os detalhes eu deixo que vocês descubram através das minhas vivências nos próprios posts.



Africa do Sul (1 post)

Lesoto (1 post)

Madagascar (3 posts)

Países já visitados até o momento: 3 de 49.

A visitar ainda falta uma cacetada. Visitar a África de forma independente nunca é tão simples, pois você facilmente se destaca (sobretudo se não for negro), a infraestrutura é precária, e em muitas regiões há conflitos armados ou criminalidade maior que no Brasil. Ainda assim, há maravilhas naturais e culturais a ver, e eu espero ainda poder visitar muitos destes. 

Por ver: Angola, Benin, Botsuana, Burquina Fasso, Burundi, Cabo Verde, Camarões, Chade, Comores (ilhas), Congo, Costa do Marfim, Djibuti, Eritreia, Etiópia, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Libéria, Malauí, Mali, Maurício (ilhas), Mauritânia, Moçambique, Namíbia, Níger, Nigéria, Quênia, República Centro-Africana, República Democrática do Congo (ex-Zaire, e diferente do outro Congo), Ruanda, São Tomé e Príncipe, Senegal, Serra Leoa, Seychelles (ilhas), Somália, Suazilândia, Sudão, Sudão do Sul, Tanzânia, Togo, Uganda, Zâmbia e Zimbábue



quinta-feira, 23 de julho de 2015

Isfahan, a mais bela cidade do Irã

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Isfahan, a mais bela cidade do Irã

Bandeiras do Irã hasteadas na grande Praça Imã, a segunda maior praça do mundo.

Este é um post bastante visual. Chegou a hora de me despedir do Irã, mas não sem antes, é claro, falar da mais bela cidade que há no país, Isfahan. (Você vai encontrar escrito "Esfahan" também, mas esta é a transliteração pro inglês, onde E tem som de I). Estes foram os últimos dias desta minha aventura em terras persas, fechada aqui com chave de ouro. Isfahan foi a capital do Irã durante a maior parte do período da Dinastia Safávida (1501-1736), e portanto tem muitos palácios, praças orientalescas, mesquitas, pontes de pedra dos séculos XVI e XVII, etc. Hoje ela é a terceira maior cidade do Irã, e linda.

Eu cheguei a Isfahan de ônibus desde Yazd. Enquanto Yazd é bastante seca e poeirenta, pois está no meio do deserto, Isfahan tem muito mais verde e um rio caudaloso (o Zayandeh) cruzando-a. E ao contrário da espelunca onde fiquei hospedado em Yazd, aqui minha amiga e eu resolvemos pagar um pouco mais e ficar num lugar mais confortável. Era uma casa reformada do século XVII e transformada recentemente em pousada. Cheia de personalidade  muito melhor que os impessoais hotéis.

Visitamos a Praça Imã com a linda Mesquita Sheikh Lotfollah (1619) e o Palácio Real Ali Qapu (1597). Além disso vimos no centro o Palácio dos Oito Paraísos (Hasht Behesht), o Boulevard Chaharbagh, e no sul da cidade as pontes de pedra do século XVII e a Catedral Vank, cristã da minoria armênia que vive aqui há séculos, e mais. Portanto, preparem os olhos, e para definitivamente terem uma ideia mais verdadeira do Irã e suas belezas, diferente do que nos é apresentado no dia-dia pela mídia.  
Casa histórica transformada em pousada, onde me hospedei. (Se quiserem saber o nome, me contatem).
Varanda e jardim aos fundos.

Isfahan é muito mais aprazível que a louca Teerã com suas motos sobre a calçada. Há aqui em Isfahan ainda um quê de poluição no ar, mas há mais árvores e calçadas onde se pode caminhar, além de ônibus tomáveis e muito a ver. Portanto, é fácil circular pela cidade. 

A esplendorosa Praça Imã foi nossa primeira visita. Ela é a segunda mais larga praça do mundo, atrás apenas de Tiananmen, a Praça da Paz Celestial em Pequim (onde houve o massacre de estudantes em 1989, da famosa cena do estudante pondo-se à frente do tanque de guerra). Ainda não conheço Tiananmen, mas é difícil superar a Praça Imã em beleza. São 160m de largura por 560m de comprimento repletos de flores, chafarizes, gramados, e arcadas persas sobre lojas em todo o redor.
A Praça Imã em sua extensão, com lindos espelhos d'água e um céu mais azul ainda.
Meninos jogando bola e mulheres caminhando na Praça Imã.
Família fazendo piquenique.
Lojas na Praça Imã ao entardecer. (Preços proibitivos aqui, mas comento mais sobre as mercadorias a seguir).
Essa ali atrás é a Mesquita Sheikh Lotfollah, de 1619. Esses domos largos são típicos da arquitetura persa desse período.
Vista da cúpula por dentro.
O interior da mesquita, já fora de uso, só para visitação.
Do outro lado da praça, defronte à mesquita, fica o Palácio Ali Qapu ("Grande Porta"). Estava em reforma, mas posso mostrar-lhes outros palácios da mesma época, de textura parecida, quiçá ainda mais bonitos, e que merecem ser visitados aqui no centro de Isfahan.

Abaixo, após o Ali Qapu, estão os palácios Chehel Sotun ("Quarenta Colunas") e Hasht Behesht ("Oito Paraísos"). Confiram.
Fachada do Ali Qapu num dia nublado.
Jovem artista pintando a fronte do Quarenta Colunas, Chehel Sotun
Chehel Sotun e suas altas colunas de madeira.
Entrada.
Vista lateral do Chehel Sotun e seus agradáveis jardins.
Vista do interior, com janelas de arcadas persas. 
Pinturas no interior do palácio. 
O Oito Paraísos, Hasht Behesht, da mesma época e estilo.
Os jardins do Oito Paraísos, mais belos ainda.
Todo esse verde que rodeia os palácios fica no centro da cidade. A artéria principal é o Boulevard Chaharbargh, duas longas pistas separadas por um largo calçadão arborizado no meio. 
No calçadão central do boulevard. 
A cara foi por que eu estava com fome.
Isfahan tem o mesmo problema das outras cidades do Irã: quase não há restaurantes. Você circula, vê lojas, mais lojas, e nada de lugar onde comer  a não ser birosca vendendo suco e fritura engana-estômago. Lugar onde sentar-se para comer de garfo e faca, é difícil. Não me perguntem por que. 

Por sorte, Isfahan é ligeiramente mais turística que as demais cidades iranianas (não é à toa), então há um restaurante ou outro nas proximidades dos monumentos e da Praça Imã. Tivemos que voltar o caminho inteiro até o restaurante que havíamos visto lá no começo.

Já tratei das comidas no Irã aqui

Mas não falei ainda das mercadorias. Se você é como a maioria dos turistas brasileiros, que passa grande parte da viagem ao exterior fazendo compras, vai se esbaldar aqui no Irã. Isfahan então, tem das melhores coisas. No entanto, cuidado, pois tudo nas imediações da Praça Imã é mais caro, e barganhar é preciso. 

Os tapetes de Isfahan são dos mais famosos da história persa. Há lindas artesanias em cobre pintadas de azul, e impressionantes miniaturas e caixinhas de jóias talhadas em osso de camelo e pintadas a mão com motivos florais. Tudo muito bonito e de bom gosto, mas os preços são salgados.
Bazares de Isfahan. 
Muita coisa em cobre feita ali mesmo.
Artesão pintando o prato de cobre.
Peças em cobre pintadas à mão em tons de azul.
Tapetes, muitos tapetes. Cada um mais embasbacante que o outro.
Vendedor na loja (provavelmente o dono) à espera de clientes. São caros, mas a ideia no Irã é que os tapetes tornem-se bens da família e durem por gerações.

Venha com uma mala vazia, se estiver pretendendo fazer muitas compras. Tentado você ficará, mas prepare também o bolso. Um tapete desses custa facilmente mais de mil reais  o que não quer dizer que não valha a pena.

 "Tá querendo uma dessas?", perguntou-me a minha amiga quando me viu admirando por um tempo umas miniaturas.
 "Querendo, sim. Disposto a comprar, não"
 "Vai fazer o que então, roubar?"
E demos risada. Aí o vendedor, sentado à porta da loja com um jornal na mão, nos dá aquela olhada breve de canto de olho. Depois o ouvimos falar com uma turista e nos demos conta de que ele entendia inglês. Ops.

Passado o almoço, fomos parar numa birosca aos fundos do bazar onde havia café. Sentado no chão, o bem-vestido homem de meia idade, pintor e dono da cafeteria, acendia um cigarro para continuar o seu ofício, pincelando aqui e ali, com uma cafeteira também junto a si. Há uma sutil seriedade profunda nesses homens iranianos mais velhos acostumados a um viver tradicional e tão diferente da nossa irreverência ocidental.
Homem acende o seu cigarro para voltar a pintar após nos servir café. O lugar, como vocês podem ver, é bastante simples.
Já outros mais novos puxam uma conversa mais parecida ao que estamos acostumados. Certa vez estávamos buscando café e só encontramos na casa desse chapa aí abaixo, boa praça. (E o café era bom. É raro, mas em áreas turísticas se acha).
Onde tomamos café numa tarde em Isfahan.
Um outro, jovem vendedor de seus 35 anos, começou a nos falar de política. 

 "Esses clérigos embolsam com o dinheiro todo. É cada um mais rico que o outro. E pra a gente ficou ainda pior depois do baixinho."
 "Baixinho? Quem? Ahmadinejad?"
 "É. Ele é miúdo assim", e fez com a mão a altura do que me pareceu um metro e meio. (Depois eu viria a descobrir que a altura do ex-presidente iraniano é 1,57m). "Agora com Rouhani [presidente do Irã desde 2013] está melhor."
Eu ri.
 "E aí, vai levar algo?", perguntou ele sossegado, sem fazer pressão. Ao contrário do que experimentei no Marrocos ou na Turquia, aqui os vendedores lhe deixam na maior paz. Não ficam pressionando. 
 "Deixa a gente procurar um pouquinho mais". 
Aqui no Irã, se a outra pessoa falar inglês, você facilmente puxa conversa, algo que me faz falta na Europa. Apertamos as mãos e seguimos. 

Seguindo-se dali ao sul da cidade, cruza-se o caudaloso rio Zayandeh por uma de suas magníficas pontes até chegar-se à área mais moderna da cidade e ao bairro cristão armênio. 

São várias as pontes erigidas no século XVII e ainda presentes aqui. São pontes exclusivas a pedestres. Quase todas elas têm lindas arcadas persas que se iluminam à noite. Às margens do rio, jardins e calçadas por onde caminhar. 
Chegada para uma das pontes. 
Ponte Sio-se-pol, a mais longa.



Ponte Sio-se-pol à noite.
Vista da Ponte Khaju para o rio no anoitecer.
Não, não é o Rio de Janeiro, é Isfahan.

E, pra completar este passeio, do outro lado do rio você se depara com algo pouco comum aqui no Irã: arte cristã. 

Durante os séculos XVI e XVII, a dinastia persa Safávida tinha um império que se estendia do atual Paquistão ao leste da Turquia e incluía o que são hoje a Armênia e a Geórgia no Cáucaso. Para reduzir movimentos autonomistas, os xás (como eram chamados os monarcas persas) da época promoviam migrações forçadas e reassentavam populações inteiras em outras partes do império. Muitos armênios foram trazidos cá para Isfahan, então capital do império, e fundaram o bairro de Jolfa, uma espécie de gueto cristão. A religião cristã era aceita porque partilhava da mesma origem do Islã. (Para o islamismo, Jesus não é filho de Deus mas é um profeta, como Moisés e outros. Maomé é, na visão deles, o último e mais importante profeta. Mais sobre o islamismo no Irã aqui).   

Os armênios foram a primeira nação a se converter oficialmente ao cristianismo, no ano 301. Portanto são bastante religiosos e tradicionais nesse sentido. Fundaram aqui belas igrejas que podem ser vistas até hoje, como a Catedral Vank. Ela é cheia de afrescos religiosos nas paredes.  
Catedral Vank, cristã armênia, de 1664 e com um perceptível quê de arquitetura persa.
Interior decorado com ilustrações de passagens bíblicas.
Interior da cúpula. Lembra ou não o interior da outra cúpula, da mesquita no início do post?

Como acho que já ficou mais que evidente, o Irã tem, sim, muitas belezas a serem vistas. As imagens que nos são fornecidas pela grande mídia são ínfimas, são um nada se comparadas ao que se pode ver aqui, e ainda nos passam uma impressão errônea de que o Irã é um país atrasado, tacanho e sem beleza. Longíssimo da verdade. Isfahan é, a meu ver, a parada obrigatória a quem vem aqui. 
Com uns amigos iranianos e suas respectivas esposas num hotel em Isfahan. (Curiosamente, ambos se chamam Ali).
Praça Imã à noite.



sexta-feira, 17 de julho de 2015

O Irã e o islamismo xiita: nada do que você imagina

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O Irã e o islamismo xiita: nada do que você imagina

Quadro em Isfahan. Não, este não é Jesus. Este aí é Ali, "o leão de Allah", primo e genro de Maomé. Ô, peraê, não disse que não podia fazer representação pictográfica na religião islâmica?

Você já deve ter ouvido falar na divisão entre sunitas e xiitas no Islã, sem compreender exatamente qual a diferença. Só sabe que "xiita" em português virou sinônimo de radical, intransigente, e supõe portanto que os muçulmanos xiitas são aqueles mais radicais. 

Errado. Completamente errado. Pegue esse pedaço de "conhecimento" ali e atire pela janela. O governo islamista do Irã é radical sim, conservador, e repressivo numa série de coisas, mas isso não decorre do fato de serem muçulmanos xiitas. A Arábia Saudita é notadamente sunita, e seu governo todavia é ainda mais radical e repressivo que o do Irã. Ou seja, ser sunita ou xiita não é a questão.

(Se você ainda achar que muçulmano e árabe são a mesma coisa, por favor aproveite a oportunidade e jogue fora essa ideia também. Árabe é etnia; muçulmano é quem segue a religião islâmica. Há árabes cristãos, e quase 3/4 dos muçulmanos do mundo não têm nenhum sangue árabe: são indianos, paquistaneses, da Malásia, ou do maior país muçulmano do mundo, a Indonésia, que não tem nada de árabe. Os iranianos, como eu já disse antes, são persas, não árabes).

Não quero me demorar neste post, mas eu não podia passar pelo Irã sem falar ao menos algo de sua tão expressa religião. Permitam-me um pouco. 
Distribuição do Islã no mundo. Verde claro para sunita, verde escuro para xiita. [Correções apenas para os fatos de que (1) na Etiópia a maioria é cristã, apesar de existirem muçulmanos; (2) na Índia a grande maioria é hindu, embora uma minoria muçulmana de 15%, dado o gigantismo populacional indiano, seja quase do tamanho de toda a população brasileira; e (3) o Omã, ali no sudeste da Península Arábica, não é sunita e nem xiita, mas ibadita, que é uma outra corrente. 

Imagine aí que o mundo cristão fosse todo evangélico, protestante, de um tipo deveras conservador, rígido, e que de repente você, de fora, achasse um país cristão onde as pessoas fazem promessa pra Santo Antônio, rezam novena a Nossa Senhora, etc., como costuma ser no catolicismo popular. Imagine aí a surpresa que teria.

Há muitas denominações dentro do Islã, como há no cristianismo. Não é tudo igual  a gente é que é ignorante e não se dá conta. Elas compartilham uma mesma base ("Não há deus além de Deus, e Maomé é seu profeta"), mas há diferenças de crença, de hábitos, de rituais, do que é adequado aos olhos de Deus e do que não é, etc. Sunitas e xiitas são as denominações principais. Uns 80% dos 1.6 bilhão de muçulmanos no mundo são sunitas, espalhados sobretudo do Marrocos à Indonésia, e uns 15% (uns 200 milhões de pessoas) são xiitas, a maioria no Iraque e no Irã. 

O Iraque segue em polvorosa sobretudo devido a  além do dedo do Tio Sam lá melado de petróleo — conflitos entre uma maioria xiita e uma minoria sunita, à qual pertencia Saddam Hussein. Na Síria, o presidente Bashar Al-Assad é alauíta, e a população, amplamente sunita. O Iêmen está em briga porque xiitas e sunitas não se entendem. O Irã, xiita, e a Arábia Saudita, sunita, cada vez mais disputam influência regional, para quem se interessa por geopolítica. 

Em miúdos, qual a diferença?

A origem do cisma é política. Maomé morreu em 632. Quem o sucederia? Primeiro foi o seu amigo Abu Bakr, considerado o primeiro califa (sucessor). Só que o Islã expandia-se rápida e vertiginosamente, conquistando territórios, e com isso as ambições individuais e disputas cresciam. Gente é gente em todo lugar. O quarto califa foi Ali, primo e genro de Maomé. Ele dizia que apenas aqueles do mesmo sangue de Maomé deveriam liderar. Outros diziam que a escolha de um líder era por mérito, não por consangüinidade. O mataram. Parte dos muçulmanos escolheu seguir seu filho Hussein como sucessor, mas depois mataram também a ele e a sua família (incluso aí o seu recém-nascido de seis meses, retratado flechado na imagem inicial do post). Pronto, a divisão estava consumada.   

A partir de então os dois grupos iriam desenvolver a religião de maneiras distintas ao longo dos séculos, interpretando o mesmo Alcorão de maneiras diferentes. Além do mais, você talvez não saiba, mas a grande maioria do que manda a chamada Lei Islâmica, a sharia, tão adorada pelos fundamentalistas, com regras para o dia-dia, que manda as mulheres vestirem-se assim e assado, etc., não vem diretamente do Alcorão, mas de hadiths, dizeres atribuídos ao profeta, e de regras instituídas depois. E essas variaram e variam até hoje. E aí, meus caros, o que nunca faltou foi espaço para fulano legislar em nome de Deus como lhe for oportuno  como a Igreja também fez e faz. 

Por exemplo, no tempo de Maomé as mulheres não usavam véu. Aisha, a sua esposa favorita, após a morte de Maomé liderava guerreiros de cima do seu camelo. Só que, 24 anos após a morte do profeta, ela perdeu na chamada Batalha do Camelo (ano 656). Aí o vencedor convenientemente lembrou uma série de coisas que Maomé supostamente havia dito contra as mulheres. Uns séculos depois, já somavam mais de 600 mil as frases que esses homens de arguta memória atribuíam ao profeta para fazer disso lei. Não preciso dizer mais nada.  

Basicamente, os sunitas consideram certos hadiths que os xiitas descartam, e vice-versa. Os xiitas, na prática, veneram santos como os católicos, fazem visita, peregrinação e doação às suas tumbas, fazem retratos de Ali e de Maomé, e não veem problema nenhum nisso. Os sunitas, por sua vez, rejeitam todas essas práticas, e dizem que os xiitas são hereges. Pronto, acho que você já entendeu o cerne da coisa.
Outra representação de Ali, numa tapeçaria na cidade de Isfahan, cá no Irã. Ele é tido pelos xiitas como o segundo homem mais importante do Islã, depois de Maomé. Não é à toa que às vezes parece que de cada dois iranianos, um se chama Ali.  




sexta-feira, 10 de julho de 2015

Belezas e estranhezas dos comes e bebes no Irã


Este post vai para aqueles que planejam aventurar-se no Irã, e para os que simplesmente estão curiosos pra saber o que, afinal, se come e bebe por aqui.

Não vou falar muito de "culinária iraniana", pois seria pretensioso demais. Eu entendo pouco da gastronomia persa, e não comi na casa de nenhum iraniano (exceto na de um certo músico no dia em que visitei Persépolis, mas é um serviço pra turistas). Restaurantes aqui são raros e, quando existem, são normalmente para turista. Então é difícil dizer até que ponto os iranianos realmente comem no dia-dia o que eu comi.

O que eu posso lhe dizer com certeza é o tipo de coisa que você, visitante, vai encontrar nas ruas aqui e por onde passar. Prepare-se, pois há tanto belezas quanto estranhezas.
Na lanchonete fast-food.

O cardápio, é claro, é a primeira estranheza. Dificuldade deste nível eu só havia tido no Japão. Os iranianos são mais comunicativos, então embora não falem muito inglês, dá pra você trocar umas palavras básicas  enquanto que os japoneses normalmente se fecham lá em sua concha e você fica a ver navios. Por outro lado, pelo menos lá no Japão dava para entender o preço, enquanto que aqui você terá que aprender os numerais arábicos orientais (ver aqui), ou ficar perguntando "E esse aqui, quanto custa?" e a pessoa lhe mostrar nos dedos das mãos, como se você fosse retardado.  

Mas não perca seu tempo (e apetite) nesses fast-foods ocidentalizados do Irã. Parece que o programa iraniano de ir comer fora é sempre nesses lugares, pois há uma escassez incompreensível de restaurantes decentes na rua. No entanto, o menu  em todo o país  parece ser sempre o mesmo nestes lugares: batata frita melada de gordura, hambúrgueres, e uma pizza grossa, cheia de coisa por cima e sem gosto de nada. Evite. Eu só comi neles mesmo quando estava passando fome.

Se quiser alguma coisa rápida, o que presta (embora nem sempre) são os sucos feitos na hora. Quer dizer, normalmente há uma fila de liqüidificadores no balcão, já com fruta dentro (ou já o suco), e ele só dá aquela (re)batida e vira pra você no copo. Vá no melão. Tomei uns maravilhosos. Só às vezes é que enchiam de gelo e eu acabava tomando gelo batido com um pouco de fruta  não muito diferente do que ocorre no Brasil. Mas pelo olho você determina.
Casa de sucos e vitaminas na rua, em Teerã.
Tomando um belo suco de melão cantaloupe batido, em Isfahan.
Já este aqui foi um copo de vitamina de banana com uma bola de sorvete dentro.

Esqueça café  ou traga sachês de casa na viagem. Nas grandes cidades, sobretudo em Teerã (a capital), é possível achar cafeterias à moda europeia nas áreas de classe mais alta, mas não é o comum. Nos cafés da manhã de hotel, por exemplo, havia nada, "chafé" aguado, ou uns sachês malignos "3 em 1" que diziam conter café, leite em pó e açúcar (ver aqui). É um negócio que você só toma por falta de opção mesmo

Dizem que a Pérsia era tradicional por seu café, como ainda é hoje a Turquia, mas os ingleses, quando estiveram por aqui querendo fazer da Pérsia colônia no século XIX, trataram de estimular as pessoas a beberem chá, que é o que eles (os ingleses) tinham para vender. Resultado é que, hoje, chá preto é o que você avista por toda parte.

Apesar de eu não ser o maior fã de chá, em alguns lugares ele vem bem bonitinho, e dá um ar de charme. 
Bandeja de chá no Irã. Na rua, obviamente, não é assim, mas em restaurantes você é servido desta maneira. Isso amarelo nos pauzinhos são cristais de açúcar, para você dissolver na bebida se quiser.

Bebidas alcoólicas, obviamente, são banidas. Você só vai achar no contrabando, ou na casa de algumas pessoas. O Islã proíbe o consumo de álcool, já que é um entorpecente, e aqui estamos numa república islâmica, afinal. Então, apesar de toda a conversa sobre vinho em Shiraz, não espere encontrar.

Se quiser uma bebida local, experimente a Zam Zam Cola. Zamzam, pra quem não sabe, é o nome do poço sagrado em Meca que, tradicionalmente, se crê ter sido criado por Deus para dar beber a Ismael, filho de Abraão. Os muçulmanos a tem como uma água milagrosa. Beber um pouco de água do poço Zamzam é parte da peregrinação a Meca que todo muçulmano deve fazer ao menos uma vez na vida. Tal como a água benta para os cristãos ou a água do Rio Ganges para os hindus, há também versões enfrascadas de água do zamzam que os muçulmanos às vezes guardam em casa e usam pra vários tipos de coisa. Só que, neste caso, a servem também como bebida, o que é sempre considerado uma muito especial.  

Me surpreendi em ver os iranianos usarem o nome do poço para fins comerciais. Mas está aí.    
Zam zam cola. Aquele conhecido gosto de imitação. (Não, não acho que seja produzida com água do poço; mais fácil ser de poça).

Já se você quiser algo sólido, recomendo o delicioso falafel, tradicional em todo o Oriente Médio. Existe no Brasil, e é normalmente feito de grão-de-bico prensado com ervas e frito, mas o aqui do Irã é melhor. 

Normalmente eles vendem no pão, numa espécie de imitação do big mac  com ketchup, maionese e picles. Contudo, se você pedir sem o pão eles lhe vendem, e você come na mão. 

No mais, se quiser outros engana-estômago, abuse das frutas secas que aqui eles têm em abundância. Só prepare-se porque aqui, ao contrário do Brasil (onde a coisa chega cristaliza de tanto açúcar que botam), eles usam só mesmo a fruta, então às vezes é um pouco azedo. (Outras vezes é azedo pra ***alho). 
Falafel.
Meu jantar numa destas noites. Falafel no pão com alface, tomate, ketchup, maionese e molho de pimenta. Estava bom.
Frutas secas pra comprar ao peso na rua. 
Damascos, ameixas de várias cores, maçãs, pêras, e outras.

Mas vamos afinal ao que interessa: comida de verdade. 

Aqui no Irã eles tomam muita sopa. Não tenho hábito, mas elas às vezes vieram a calhar. Há umas variações com iogurte dentro, brancas, e outras verdes, com folhas azedinhas de videira ou outra planta. São frequentemente servidas com pão, um pão chato típico cá do Oriente Médio  lembrando o que no Brasil é conhecido como pão sírio.
Pão com sopa no Irã.

As mesas, como vocês podem ver, são quase sempre bem decoradas. Os têxteis persas podem ser lindíssimos, desde os famosos tapetes até as toalhas de mesa. Só que também muito comum é não comer na mesa, mas sim em pequenas plataformas elevadas do chão onde você se senta como se estivesse sobre um tapete.  
Apesar da ilusão de ótica, isso está acima do chão. É mais bonito do que confortável, verdade seja dita. Ao menos pra quem não está acostumado. Você precisa se encurvar todo pra alcançar a comida, e ainda dá cãibra nas pernas.
Ali temos, primeiro, um pratinho de iogurte, que em todo o Oriente Médio se consome sem açúcar e junto com a comida. A amiga turca que me acompanhou nesta viagem, por exemplo, não resiste a um prato de iogurte com arroz. (Ela costuma dizer que "os europeus não entendem iogurte", quando os vê o comerem com açúcar ou coisas doces). 

Aquele prato ali que parece uma sobrecoxa de frango é beringela cozida no caldo e com uvas. Eles aqui fazem pratos saborosíssimos com frutas no tempero. Ainda que pouquíssimos iranianos sejam vegetarianos e o turismo seja mínimo aqui, provei comidas vegetarianas muito boas. Não há lá muita diversidade (cai sempre no arroz com legumes refogados no tempero), mas é saboroso.
Deliciosos bolinhos de arroz temperado, com passas, enrolados em folhas de videira (uva).
Comendo um creme de berinjela bem temperado. (Aquilo branco em cima é acelga, pra decorar).
Arroz, beringelas de tomates no caldo, uma salada com iogurte, e um aqui mais à direita um creme de legumes com temperos e hummus (pasta de grão-de-bico) por cima. Gostoso!

O arroz por si só já é gostoso. E eles aqui costumam temperá-lo com açafrão, que é a especiaria mais cara do planeta. São estigmas e pistilos, pedaços das flores de uma certa planta. Há variedades cujo grama custa mais do que o de ouro. Então, até pelo charme de sua cor amarela, parece que põem açafrão em tudo. É usado tradicionalmente há 4.000 anos, e figurava até no tratado botânico do Rei Assurbanipal, da Assíria no século VII AC. Hoje 90% da produção vem do Irã. Tem um sabor especial, difícil de descrever. 
Açafrão (à esquerda) à venda numa casa de especiarias. 
Açafrão com arroz doce, de sobremesa, com amêndoas em pedaços e canela em pó. 

Pra terminar, um prato de tal estranheza que eu jamais havia visto: sobremesa com frango.

Eu ia pedir, pois me parecia um inocente pudim amarelo feito de iogurte e açafrão, quando um dos meus amigos iranianos com quem estava, sabendo-me vegetariano, sugeriu que podia conter frango. Eu dei risada, crente que ele estava me zoando. Só que não. O outro foi e perguntou à funcionária, que confirmou que havia mesmo frango. Fique besta. 

Trata-se do khoresht e-mast, uma sobremesa tradicional da cidade de Isfahan, feita com iogurte, açafrão, casca de laranja, frango e açúcar. (Não me perguntem o que é que o frango faz ali. Parece jogo dos sete erros).
Ei-la.

Depois deste post tão colorido, tão cheio de sabores, permitam-me, vou almoçar. Volto na semana que vem com o post final do Irã, contando da minha estadia em Isfahan, na minha opinião a mais bela cidade do país.