sexta-feira, 27 de março de 2015

Na Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe


Era domingo de manhã cedo, e a massa já passava em procissão pelas ruas do centro da Cidade do México. Peregrinação à Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, o santuário cristão mais visitado em todo o mundo. São em média 20 milhões de pessoas por ano, acima dos 10-12 milhões que visitam Nossa Senhora Aparecida, no Brasil, e dos 5 milhões que vão à Basílica de São Pedro, no Vaticano. (Fora do cristianismo, há apenas dois santuários ainda mais visitados: o templo hindu Vishwanath em Varanasi, na Índia, aonde vão em média 22 milhões de pessoas ao ano, e que eu visitei nesta ocasião; e o templo japonês xintoísta Senso-Ji, em Tóquio, aonde vão 30 milhões a cada ano, também já por mim visitado aqui).

Uma visita ao México é incompleta sem uma ida à Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe. Ela é a cara do México, e é emblemática da simplicidade do povo mexicano e do cristianismo popular latino-americano. É também, é claro, vitrine do ouro tradicional católico enquanto o povo passa fome e do conservadorismo da Igreja. Mas é também retrato e palco da humildade e da franqueza de coração desse povo. Marx chamou a religião de "ópio" não como uma crítica, como costuma ser erroneamente interpretado fora de contexto, mas como um refúgio onde as pessoas podem encontrar a paz e o acalanto que lhes são negados na sociedade, que oprime e exclui. São mais de 50 milhões de mexicanos  quase metade da população do país  vivendo abaixo da linha da pobreza. O problema, portanto, não está na religião, mas nas desigualdades sociais e econômicas que fazem com que haja tantos excluídos.  

Digo abertamente, no entanto, que em lugar nenhum do mundo vi até hoje coração maior e maior calor humano que dentre os pobres da América Latina. Parece clichê, mas digo com sinceridade.

Os mexicanos em geral são muito amistosos, mas os mais pobres me pareceram sê-lo ainda mais. Ninguém me foi tão amável em minha estadia aqui quando os vendedores de rua, com quem eu puxava papo de repente. Como no Brasil, aqui no México há diferença entre os distintos senhores e senhoras endinheirados, que se crêem melhores que os outros, e o "povão". Estes últimos tendem a ser pessoas abertas e muito "dadas", como a gente mais simples no Brasil. 

Quando falo dessas diferenças sociais aos meus amigos europeus eles ficam confusos, sem entender essa coisa de pobre se comportar de um jeito e rico de outro, como se fossem duas culturas separadas. Mas é. Vocês como brasileiros vão entender, e quando vierem aqui ao México também não deixarão de notar.

Outra curiosidade é a importância fundamental da figura materna na sociedade mexicana (e latino-americana como um todo), ilustrada aqui por NS de Guadalupe. Talvez você não saiba, mas em outras culturas (ex. nos Estados Unidos) é comum se fazer considerações ou até brincadeira sobre a mãe alheia. Vá fazer isso a um latino-americano e você pode perder os dentes. Para constatar essa hiper-sensibilidade, basta reparar em como escutar alguém dizer "tua mãe" já soa como ofensa. Você já olha torto pra ouvir o que a pessoa vai falar. Aqui no México, alguns guias de viagem instruem os turistas estrangeiros a jamais dizerem "tú madre" em qualquer circunstância, pra evitar briga. É uma característica latino-americana. 
Senhor orando num altar a NS de Guadalupe na catedral da Cidade do México.

Aqui diz a lenda que, em 9 de dezembro de 1531, o índio Cuauhtlatoazin (depois batizado como Juan Diego, para facilitar eu digitar) fazia o seu caminho de casa perto da colina Tepeyac, próximo à cidade de Tenochtitlán, quando deparou-se com uma aparição. A mulher morena envolta num manto dizia ser a "Mãe de Deus", e o instruiu a ir solicitar ao bispo que construísse uma capela ali para aliviar as dores do povo. O bispo, no entanto, não acreditou na história de Juan Diego, a quem a Virgem voltou a aparecer. "Sou um homem sem importância", disse ele à Virgem, sugerindo-lhe que escolhesse outro mensageiro. Ela disse que não, que tinha de ser ele. 

Juan Diego voltou então a insistir com o bispo, que pediu-lhe uma prova. À altura do dia 12 de dezembro, a Virgem apareceu mais uma vez a Juan Diego e disse-lhe que coletasse flores na colina e lhe trouxesse. Ele as coletou em seu manto e trouxe-as à Virgem, que as arranjou de uma certa forma. Juan Diego as envolveu novamente no manto e retornou ao bispo. Despejando-as no chão ao pé do bispo, viram marcada uma mancha gravada no manto  a imagem até hoje imortalizada de Nossa Senhora de Guadalupe, uma Maria de feições indígenas aqui também apelidada de La Vírgen Morena.   

Supostamente, o manto original de Juan Diego continua lá exposto na basílica  e eu vi. Se é uma obra de arte ou realmente um milagre, fica a critério de vocês escolher o que pensa. O indiscutível é que assim surgiu o culto à Santa María Guadalupe, da língua indígena náhuatl coatlallope, ou "aquela que esmaga a serpente". (Na tradição católica, Maria é co-redentora dos homens e aquela que pisa na serpente, símbolo do mal na simbologia bíblica). 
A colina Tepeyac hoje, lugar da capela original  que o bispo afinal mandou construir  e local de peregrinação ainda hoje.
Templo erigido mais tarde (1685-1709) à Nossa Senhora de Guadalupe, ainda nos tempos do México colonial.
Interior da igreja colonial.
Templo principal atual, redondo e com várias portas. Foi feito nos anos 1970 para acomodar melhor a quantidade de fiéis.
Área onde está exposto o que se diz ser o manto de Juan Diego com a imagem original de Nossa Senhora de Guadalupe. A esteira rolante é pra que ninguém fique parado admirando a imagem e impeça os outros de ver.
Imagem original no alto.
Com zoom.
Desde então o 12 de dezembro tornou-se dia santo, e daí feriado nacional, Dia de Nossa Senhora de Guadalupe. (Desnecessário dizer que há dezenas de milhares de mulheres no México com esse nome, sobretudo as nascidas nesse dia  às vezes apelidadas de "Lupe").

Fecho esta viagem ao México com esta visita icônica. Foi sem dúvida um país que eu fiquei muito satisfeito de inserir em meu currículo. Como diz uma amiga minha suíça que mudou-se para o México: "É difícil encontrar outro país tão rico em termos de cultura, história, e gastronomia ao mesmo tempo". Há outros, mas o México é de fato um peso pesado. Um dia ainda volto.



sexta-feira, 20 de março de 2015

Cidade do México, vulgo Tenochtitlán

Veja uma versão de melhor visualização deste post no novo site, em:


A Cidade do México hoje repousa sobre a antiga capital do império asteca, Tenochtitlán. Se você acha esse nome difícil, ainda não viu nada. Diz a lenda que o deus Huitzilopochtli deu uma visão à tribo Mexica (nunca havia se perguntado de onde vem o nome do país?), que buscassem um certo sinal e, ao encontrá-lo, ali fundariam uma grandiosa cidade. O tal sinal seria uma águia com uma cobra no bico pousada sobre um cacto  imagem hoje imortalizada no meio da bandeira mexicana.

Segundo esse mito de origem que ninguém sabe até que ponto foi verdade, os Mexica eram uma de várias tribos Náhuatl (a língua comum) que viviam numa terra ao norte chamada Aztlán. Daí vem o nome "azteca", que na verdade os indígenas não usavam, e que passou a ser corriqueiro só a partir do séc XIX, adotado por geógrafos europeus e daí popularizado. Diz-se que os Mexica foram a última tribo Náhuatl a emigrar de lá, e que vagaram por mais de 200 anos em busca do tal sinal. O encontraram numa pantanosa ilha do Lago Texcoco, onde fundaram Tenochtitlán no ano 1325.
Pintura do que era Tenochtitlán à época da chegada dos espanhóis em 1519. Este lago hoje em dia já não existe mais; foi todo soterrado durante a época colonial.

Havia pontes que ligavam a ilha à terra firme, como vocês podem ver na ilustração. Além disso, nos arredores os Mexica aproveitavam-se do lodo nutritivo para fazer agricultura sobre terraços flutuantes entrecortados por canais. Ali plantavam milho, feijão, abóboras, tomates, goiabas, abacates e outros  todos esses, portanto, eram desconhecidos do resto do mundo. No centro de Tenochtitlán ficava o Templo Mayor (em espanhol), e enormes praças abertas onde ocorria o comércio e a vida diária. A cidade era mais populosa que qualquer cidade da Europa à época.
Uma ilustração em 3D do que seria a vida em Tlatelolco e Tenochtitlán, as duas cidades-estado que coexistiam na ilha.
Temos o depoimento ocular de Bernal Diaz de Castillo, acompanhante de Hernán Cortés, que publicou o livro História Verdadera de la Conquista de Nueva España em 1568. Vou deixar no original espanhol, pois dá pra entender: 


"Y después de bien mirado y considerado todo lo que habíamos visto, tornamos a ver la Gran Plaza y la multitud de gente que en ella había, unos comprando y otros vendiendo, que solamente el rumor y el zumbido de las voces y palabras que allí había sonaba más que de una légua. Y entre nosotros hubo soldados que habían estado en muchas partes del mundo, y en Constantinopla, y en toda Itália y Roma, y dijeron que plaza tan compasada y con tanto concierto y tamaña y llena de tanta gente no la habían visto".

Imagine aquela cena social vibrante, com circulação de produtos que vinham desde o norte da América até de partes da América do Sul, como o império inca (na região do Equador e do Peru). Jades, pedras outras, pérolas, pigmentos, alimentos, e algodão, que também é nativo daqui. Há quatro espécies principais de algodão no mundo, mas hoje 90% do usado é a espécie mexicana. O algodão aqui foi domesticado e cultivado desde pelo menos 3.500 AC, portanto milênios antes de os persas e indianos fazerem o mesmo com suas espécies nativas. Já os europeus só tomariam conhecimento do que é algodão a partir das campanhas de Alexandre, o Grande, na Ásia em 300 AC, mas seriamente mesmo só ao ele ser trazido da Pérsia pelos árabes na idade média sob o nome de al-qutn.

Os Mexica aqui se assentaram para o que viria a ser um império. Eles se tornaram a tribo mais forte da região e compuseram uma "tripla aliança" com outras duas cidades Náhuatl: as vizinhas Texcoco e Tlacopan. Daí Império Asteca, isto é, de tribos que teriam vindo de Aztlán. Eles gradualmente conquistaram supremacia na região através de guerras e extorsão de tributos. Tomavam também escravos, que poderiam ser usados para os seus notórios sacrifícios humanos que tanto chocaram os espanhóis. O típico sacrifício aos deuses era feito do alto dos templos, onde a pessoa era deitada numa mesa de pedra, aberta com uma faca de pedra afiada, e tinha seu coração arrancado à mão  o corpo deixado rolar escadaria abaixo.
Representação do Templo Mayor de Tenochtitlán, com recorte para ver o interior. Ele foi sete vezes aumentado; cada novo imperador que chegava, expandia-o. As duas torres-santuário no alto da pirâmide eram aos deuses Tláloc, da chuva, e Huitzilopochtli, da guerra. 
Ruínas do templo mayor de Tenochtitlán. Hoje é um museu muito interessante, com artefatos que restaram, e as ruínas. 
Até o início do séc XX isto tudo estava soterrado. Acreditava-se que o Templo Mayor repousava debaixo da catedral metropolitana, vista ali ao fundo. Os arqueólogos então descobriram que ele estava perto, mas não debaixo. Desapropriaram-se casas que haviam sido construídas em cima e abriu-se o sítio arqueológico, onde as investigações continuam.
Os espanhóis puseram tudo abaixo. Mas não se iluda achando, como se normalmente pensa, que eles conquistaram os astecas devido a uma superioridade tecnológica. Primeiro: na prática o grosso do exército do conquistador Hernán Cortés eram índios de outras cidades, oprimidas pelos Mexica. Foi, portanto, um levante. Segundo: estima-se que doenças contagiosas até então ausentes nesta parte do mundo dizimaram 90-95% da população das Américas nas primeiras décadas do séc XVI. Repare novamente nos números. Só uma epidemia de varíola em 1520-1521 matou metade da população de Tenochtitlán, estimada em 200-300 mil à época. Estima-se que, na região central do México, numa questão de 60 anos 80% da população indígena morreu vítima de doenças contagiosas. Terceiro: imagine que quem restava dessas ondas de morte deviam ficar desorientados, e as estruturas sociais, econômicas e políticas, altamente danificadas.

Assim não é de se surpreender que em 1521 Tenochtitlán tenha caído nas mãos de Cortés. Ele havia sido recebido como convidado de honra pelo imperador asteca Montezuma II, mas, durante uma confusão entre seus homens e o povo, e aproveitando-se que estava infiltrado no palácio, fez o imperador refém e a cidade foi atacada. Em meio ao caos, Montezuma acabou morto por uma pedrada na cabeça. Foi o apocalipse do império asteca -- embora não do povo Náhuatl, que formou o grosso do que viriam a ser os mexicanos, só que agora sob domínio espanhol. Nueva España seria o nome da região do México pelos próximos séculos.  
Ilustração do imperador asteca com seus adereços de jade. No Museu Nacional de Antropologia, na Cidade do México.
Com o tempo a Cidade do México expandiu-se, o Lago Texcoco foi inteiramente suprimido, e gradualmente a cidade foi retomando a sua história de grande centro populacional. São hoje 20 milhões de habitantes, 1/6 dos 120 milhões no país. Como no restante da América Latina, as riquezas do país passaram às mãos de uma classe aristocrata. Uma distribuição de terras extremamente desigual, que persiste até hoje, levou ao mesmo êxodo rural experimentado no Brasil e ao inchaço da cidade, hoje rodeada de favelas que o narcotráfico infesta (vejam quantas semelhanças). Discriminação racial, religiosa, e injustiças econômicas tornaram-se a norma e, apesar de proibidas por lei, continuam a ser a realidade social do país.
Favelas na periferia da Cidade do México. A coisa se estende por quilômetros, como nas grandes metrópoles brasileiras. As cores podem ser diferentes, mas a realidade social, não.

Hoje a Cidade do México lembra São Paulo: em tamanho, população, clima, cosmopolitismo, ausência de litoral, jeitão da cidade. Só que 
 permitam-me  creio ser mais interessante ao visitante. Há riqueza histórica por toda parte; mais museus que Paris ou Londres (a Cidade do México é, na verdade, a cidade com mais museus em todo o mundo); belas áreas coloniais que lhe fazem sentir-se transportado a alguma cidadezinha do interior, como Coyoacán; e, de quebra, tem um sistema de transportes melhor, e por um terço do preço da passagem. (Pelo equivalente a R$ 1 você anda em 12 linhas de metrô que cobrem um total de 226km, contra os 74km das cinco linhas do metrô de São Paulo).

E como é andar na cidade? Na verdade, a minha sensação ficou longe  longíssima  da imagem perigosa que pintam da Cidade do México. Tráfico e crime existem, como em outras metrópoles latino-americanas, mas aqui não me pareceram tão à mostra quanto no Brasil. Eu aqui me senti mais seguro e à vontade do que em Salvador ou no Rio de Janeiro, por exemplo. E eu não fiquei só em áreas de turista: me meti aonde o povão vai mesmo.

Assim foi um dia para almoçar, no centro da cidade. Muitos turistas, e até mesmo mexicanos, têm medo da chamada "vingança de Montezuma", apelido da diarréia que acomete os desafortunados aqui. Mas eu comi na rua diariamente e não tive problema nenhum. Andei por ruas lotadas de gente  à là 25 de Março em SP , bodegas e galerias de produtos populares de quinta, dessas mesmas que têm no Brasil. As diferenças são poucas: o bafafá é em espanhol em vez de em português, e a televisão, sempre ligada, em vez de estar passando a programação da Globo, passa clipes de música pop latina com morenas de biquíni.
Calçadão no centro da Cidade do México.
Adoro a simplicidade e certos toques de franqueza nas coisas aqui do México, como nessa chamada de emprego.
Esse tio em cima do cubo ficava observando a venda de roupas (de altíssima qualidade) na mala aberta daquele carro, pra ninguém sair levando sem pagar.
Tio com megafone fazendo anúncios da loja ao povo.
Galeria onde entrei, com produtos de luxo. Não é preciso entender muito espanhol pra sacar o significado de "farderas" e "rateros". (Pra quem estiver interessado, 5.000 pesos mexicanos equivalem a quase 1.000 reais).
Moça na galeria anunciando no megafone, lendo do papel. 

Foi nessa galeria que eu acabei almoçando. O corredor do andar de cima era repleto de restaurantes de altíssima sofisticação. A música dos clips latinos na televisão (alta) dava o pano de fundo enquanto imigrantes chineses misturavam-se aos mexicanos chamando quem passava. Entregavam pedacinhos de papel onde estava impresso o cardápio de cada lugar. E para assaltar-lhe o nariz, aquele cheiro de tortilha e carne fritando por todos os lados, e a fumaça subindo. Achar algo vegetariano foi pancada, mas achei uma sopa de lentilha e um engasga-gato de ovos mexidos no molho de pimenta verde, pra comer com arroz. R$ 5,50 com a bebida incluída (um refresco ralo tipo Tang de uva).
Escada para o andar de cima. Acabei comendo mesmo nesse El Taco de Dios. Tacos são tortilhas de milho com coisas em cima, como descrevi aqui. Os motivos religiosos, como aqui é o México, estão por toda parte.
A minha farta mesa de almoço, e o jeitão do andar de cima da galeria popular. A sopa de lentilha acabou vindo com cubos de mortadela que o carinha não avisou que viriam, e que eu tive que tirar. Acho que ele ficou pasmo de me ver tirar "o melhor" da sopa. 
Meu engasga-gato ali de ovos e nachos fritos, com arroz, limão e pimenta para acompanhar. O gosto desse molho verde era meio azedinho e picante.

Essa realidade é ilustrativa do centrão da Cidade do México, cujo coração é a praça chamada de Zócalo, onde fica uma imensa bandeira mexicana hasteada, a Catedral Metropolitana, e o Palácio Nacional. Esta parte da cidade, embora humilde, é repleta de prédios antigos e está bem conservada.
Catedral Metropolitana na Cidade do México.
Bandeira mexicana no Zócalo, com o Palácio Nacional ao fundo. (No interior do palácio estão muitos murais de Diego Rivera, que você pode ver aqui).

Mas pra não pensarem que a Cidade do México é só muvuca, há muitas outras partes mais tranquilas na cidade  e todas em geral bem organizadas. É o caso do Bosque de Chapultepec, o maior parque urbano da América Latina. É lindo. Lá está o castelo onde viveram os governantes do México em sua época monárquica no século XIX. A colina onde ele fica também é conhecida como Morro do Chapulín, que na língua Náhuatl quer dizer um tipo de gafanhoto. (Sim, daí o Chapolim Colorado do Roberto Bolaños ter antenas igual ao inseto).
Vista da Cidade do México, do Bosque de Chapultepec.
Castelo imperial, lá no alto, no meio do parque.
Paseo de la Reforma, uma das principais avenidas da cidade, que corta o parque.
No bosque também está o imenso Museu Nacional de Antropologia, riquíssimo. É onde estão guardados muitos artefatos originais de culturas pré-hispânicas de todo o México.

A cidade tem, portanto, muita cultura e charme. Há os bairros mais achegados aos turistas, como Polanco, Condesa, Roma, e a Zona Rosa (onde vi mais lojas do Starbucks que no Brasil inteiro). Contudo, a mim nada cativou mais que o próprio povo mexicano em suas expressões. 

O metrô, por exemplo, é definitivamente o mais animado que já tomei em todo o mundo. É um verdadeiro picadeiro, embora às vezes lamentável pela condição precária de tantas pessoas. Há um fluxo constante de músicos, artistas outros, vendedores de bugigangas (desde chiclete até vassouras e cópias do Código Penal Federal), anões, cegos, aleijados que "andam" arrastando-se pelo chão com as mãos, idosos, ou rapazes pobres fazendo loucuras em troca de dinheiro  um que vi fazia um show de quebrar cacos de vidro no chão com o antebraço. Era cada coisa que desafiava a criatividade.
Idosa pedinte que desceu comigo no metrô.

Enfim, uma cidade de muita personalidade, desde que a tal águia resolveu assentar-se num cacto para comer aqui. Precisa ser visitada.

Volto com o post final desta estadia no México na próxima semana.
No centro. Cidade perigosíssima!
Palácio de Belas Artes, à noite. É tipo os centros culturais Banco do Brasil de Rio ou São Paulo.
Avenida Paseo de la Reforma, já depois do Bosque Chapultepec.
À noite.
No centro, com a Torre Latinoamericana ao fundo.

sábado, 14 de março de 2015

Coyoacán, Leon Trótsky, Frida Kahlo e os muralistas


Frida Kahlo (1907-1954) é seguramente um dos ícones mais conhecidos da cultura mexicana. No entanto, tal como a ponta de um iceberg, ela pertence a algo muito maior e que nem sempre se vê. Esse algo maior, que talvez tenha passado despercebido a quem a conhece apenas pelo filme americano Frida (2002), é todo o movimento artístico e político que teve lugar no México em princípio e meados do século XX.

Uma das expressões mais notáveis desse movimento foi o muralismo mexicano. Pra dar um pouquinho de contexto histórico, vale saber que o México tornou-se independente da Espanha em 1821. Daí seguiram-se governos elitistas locais, alternados entre liberais e conservadores, até o general mão-de-ferro Porfírio Díaz tomar o poder em 1876. Ele governaria pelos próximos 35 anos, até 1911, sob o lema — pasmem  Ordem e Progresso. Não é mera coincidência que a nascente república brasileira a essa época, também muito conservadora e militarista, tenha adotado esse mesmo lema positivista. Pra quem é curioso, esse lema é uma forma abreviada daquele do pensador positivista francês do séc XIX Auguste Comte, que dizia "O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim". Que pena que tenham esquecido o amor.

Ao contrário do nosso Getúlio Vargas, que viria depois, Porfírio Diaz não tinha nada de "pai dos pobres". Ele levou adiante um governo de forte industrialização, abertura a empresas dos EUA e Inglaterra, mas reproduzindo as altíssimas desigualdades sociais do México colônia: mais concentração de terras e dinheiro nas mãos da aristocracia tradicional mexicana, e repressão aos movimentos populares que surgiam de tempos em tempos. Enfim, foi um governo de modernização conservadora.

Até que em 1910 o povo não aguentou mais e explodiu a famosa Revolução Mexicana. Alguns dos seus líderes permanecem como ícones dos movimentos sociais até hoje, como Emiliano Zapata e Pancho Villa. Iniciou-se uma guerra civil que se estendeu até 1920. Foi uma cacofonia de demandas reprimidas de vários setores sociais, dos camponeses à igreja. Zapata, em particular, era líder dos campesinos do sul que haviam sido excluídos e humilhados pelas políticas pró-aristocracia de Porfírio Diaz, e agora reivindicavam seus direitos com a força das armas. (Ainda hoje, no estado mexicano de Chiapas, no sul, há um movimento campesino e indígena chamado Exército Zapatista de Liberação Nacional, que opera uma espécie de governo guerrilheiro paralelo).

Porfírio caiu (depois morreu em 1915), e fez-se uma nova Constituição Mexicana em 1917 que perdura até hoje, com reconhecimento formal da natureza mestiça do país, estado laico, fim dos privilégios legais à Igreja Católica, etc. Estabeleceu-se então um governo de linha socialista (embora não comunista), e é aí que Frida Kahlo e os muralistas entram em cena.    
Pinturas revolucionárias de Diego Rivera, da década de 1920, no interior da Secretaria de Educação Pública, na Cidade do México. Foram feitas a convite do novo governo socialista. Permanecem até hoje.

Diego Rivera foi um dos maiores nomes do muralismo mexicano. Era também ao mesmo tempo marido e mentor de Frida Kahlo. Eles eram conhecidos como "o elefante e a pomba". Ela, pequena, embora irascível; ele, 21 anos mais velho que ela, e enorme (pesava 150kg). Ele, de quebra, admitia brincando que parecia um sapo. Mas era um gênio. Seu nome completo era Diego María de la Concepción Juan Nepomuceno Estanislao de la Rivera y Barrientos Acosta y Rodríguez, portanto vulgo Diego Rivera. Ele pintou uma infinidade de murais com motivos revolucionários ou indígenas, muitos deles a pedido do novo governo socialista mexicano, e que podem ser vistos ainda hoje  embora o governo mexicano dessas últimas décadas esteja longe de ser socialista.

Não dá pra visitar a Cidade do México sem ver a Secretaria de Educação Pública e o Palácio Nacional, onde se encontram muitos desses murais dos anos 1920.
O povo varrendo e passando a faca nos ricos e nos militares, que governavam o país até então.
Os ricos com dinheiro no prato em vez de comida. Já o povo, atrás, conhecendo abundância. 
Figura de Emiliano Zapata e o lema da luta campesina: "Terra e Liberdade".
Levante do operariado. Percebam que Diego desenhou Frida Kahlo ali no meio, de vermelho.
Paródia do hinduísmo e do budismo: vejam nas mãos a foice e o martelo, símbolos do comunismo (por representarem um o trabalhador rural, e o outro o trabalhador industrial), e a estrela na testa.
Vida comunitária. Pintura ao redor das portas na Secretaria de Educação Pública. Fica um primor!
Às vezes os murais de Diego Rivera são tão densos e detalhados que você pode ficar uma hora ali parado tentando atentar para cada detalhe.
Ele às vezes inseria personagens específicos na pintura, como faziam os pintores renascentistas que inseriam pessoas ilustres da sua época. Aqui vejam Karl Marx lá em cima, barbudo, instruindo os guerrilheiros.
Mural ilustrando a vida indígena no México antes da chegada dos espanhóis.
Varanda com murais de Diego Rivera no Palácio Nacional, na Cidade do México.
Posando com um dos murais.

Eu achei a arte de Diego Rivera fascinante, não apenas pela beleza e pelo nível de detalhamento e riqueza, mas também pela sua crítica social e política, e por retratar tão bem a realidade mexicana de sua época (não mudou muito de lá pra cá, diga-se de passagem). Precisávamos de um pintor desses no Brasil.
Frida Kahlo e Diego Rivera em 1932. 
Frida Kahlo, embora envolvida em todo esse movimento, não era exatamente muralista. Sua especialidade eram seus auto-retratos. Pintava-os muitas vezes com enfeites surreais ao redor, o que fazia perguntarem-lhe se ela pintava seus sonhos. "Eu nunca pintei sonhos", respondeu ela certa vez, "eu só pintei a minha realidade". Frida sofreu um acidente quando era adolescente e quebrou a um sem-fim de ossos, além de ter tido o útero perfurado, o que nunca lhe permitiu ser mãe. Quando engravidou, teve aborto espontâneo. Assim sempre viveu uma vida assaltada por suas frustrações e por emoções fortes. Esse tema da maternidade não realizada também é recorrente em suas obras.
Auto-retrato de Frida Kahlo, com um colar de espinhos.
Não me peçam pra dar uma legenda a este quadro. Sei lá o que é isso! Surrealismo puro. (Mas, se a gente olhar um pouco, dá pra perceber ao menos que há o dia de um lado e a noite do outro. O resto fica aí por sua imaginação).

A influência indígena fica evidente em pinturas como esta última, como também no uso de cores tão vivas  costume das culturas pré-hispânicas, que também pintavam seus muros.

Frida e Diego viveram numa parte da Cidade do México chamada Coyoacán, onde ela também nasceu. (Caso o sobrenome Kahlo lhe pareça estranho, é húngaro, de seu avô paterno). Coyoacán é ainda hoje uma parte muito mimosa da capital mexicana. Tem um ar de colônia, de vilarejo, com a igreja no meio, bancos e jardins na praça, e casas coloniais. Hoje, é claro, tornou-se turístico, mas não perdeu o seu espírito completamente.

Lá está ainda hoje a casa onde viveram Frida e Diego, hoje transformada em museu. "A casa azul" guarda recordações dos dois e segue decorada da maneira que estava à época em que eles viviam aqui. A obsessão de Frida pela maternidade não realizada fica mais uma vez visível em alguns quadros que decoravam o ambiente.
Quarto de Diego Rivera e Frida Kahlo, preservado do jeito que era.
Jardim no interior da "casa azul". Sim, é grande.
Frente da casa, hoje museu.
Mas nos anos 1930 Coyoacán recebeu mais um morador ilustre: Leon Trótsky, um dos mentores da Revolução Russa de 1917, que depois da morte de Lênin passou a ser perseguido por Stálin (rivalidades internas) e que agora havia sido abjurado do partido soviético e forçado a fugir em exílio. Depois de alguns anos na Turquia, na França e na Noruega, de onde foi sendo seguidamente expulso depois de breves períodos, ele veio finalmente ao México (em 1936), onde seus amigos Diego Rivera e Frida Kahlo intervieram junto ao governo mexicano para acolhê-lo.

Trótsky viveu um tempo na Casa Azul com Frida e Diego antes de mudar-se para uma residência própria em 1939, onde viria a ser assassinado a mando de Stálin em 1940. A casa hoje também é museu, e segue guardada do jeito que era quando ele vivia lá.   
Leon Trótsky e Diego Rivera.
Sala da casa onde viveu Trótsky no México.
Graffiti na esquina da rua onde fica a casa de Trótsky, hoje museu, em Coyoacán.
Frida morreria em 1954 aos 47 anos, vítima de embolia pulmonar causada por pneumonia --- se suspeita que tenha sido, na verdade, overdose de analgésicos. Diego ainda viveria três anos mais, até falecer de parada cardíaca em 1957, na Cidade do México. As cinzas de Frida seguem na Casa Azul, aqui em Coyoacán. 

Com tantos personagens ilustres, Coyoacán é uma visita obrigatória cá na Cidade do México. Deixo vocês com mais imagens de lá, e com a música Burn it blue ("queime-a azul"), cantada por Caetano Veloso e a magnífica cantora mexicana Lila Downs, para o encerramento do filme Frida. Uma referência indireta à casa azul, do jeito dramático que caracterizou Frida. 

Burn it blue, por Caetano Veloso e Lila Downs.

No bairro de Coyoacán, na Cidade do México.