sábado, 28 de fevereiro de 2015

Monumentos Mayas: Uxmal e os cenotes

Nas ruínas de Uxmal.

Uxmal, a mais bonita das ruínas mayas que visitei. Menos famosa que Chichén Itzá (aqui), pois fica mais longe de Cancún e assim recebe menos turistas, mas bem mais impressionante. Uxmal, que em maya quer significa "três vezes construída", foi uma cidade habitada entre 500-1100 DC. Ao final deste período sofreu uma forte invasão tolteca (outro povo indígena, do centro do México) e uma persistente crise de falta d'água. As ruínas, no entanto, ainda guardam a magnífica Pirâmide do Adivinho, um belo Palácio do Governador, e outras estruturas. De quebra, há um show de luz e som à noite que lhe permite ver a pirâmide à luz da lua e as estrelas. Impressionante. 

A minha jornada até Uxmal foi num destes grupos de turismo que saem numa van com um guia e o motorista. Eram quase todos mexicanos, exceto por duas peruanas. Estávamos, portanto, num ambiente hispanofônico. O nosso guia, Jorge, era uma mistura de Roberto Bolaños (o Chaves) e Agildo Ribeiro, o comediante. Era já um senhor de idade, risonho, com olhos de quem está atento a tudo o que você diz pra ver se pode ser convertido em uma piada. Aquele sorriso meio safado. E era meio pesado, daqueles cuja barriga é sustentada pelo cinto da calça.

O motorista era Guillermo, e atendia pelo apelido de "Memo". Era também já um senhor, moreno escuro gordo, com rosto meio de sapo e um beição caído e que permitia ver os dentes de baixo. Era simpático, apesar de muito feio. Os dois pareciam que já trabalhavam juntos há muito tempo, pois não paravam de fazer gozação um do outro. E o pior é que eram engraçados.

A nossa primeira parada foi num lugar onde haviam filmado a novela (mexicana, obviamente) Abismo de Pasion. Era, realmente, um abismo, de onde os antigos mayas tiravam água. Tal qual São Paulo, as cidades mayas tinham dificuldade de abastecimento hídrico. E da mesma forma que no Brasil alguns apelam a São Pedro, os mayas antigos oravam a Chaac, o deus da chuva. Só que, ao contrário dos paulistas, os mayas não tinham (e não têm) rios. Não há rios aqui na Península de Yucatán. Todo o suprimento de água doce depende de chuvas ou dos amplos lençóis freáticos da região, que chegam à superfície na forma de cenotes  como se chamam aqui os muitos olhos de água. É num desses cenotes que filmaram a tal novela Abismo de Pasion, uma bela área de caverna e água cristalina escondida em meio à floresta.
Um cenote, fonte onde brota água subterrânea, em meio à floresta maya. O contraste de cores é lindíssimo.
Garotada no cenote e mergulhadores. Pode parecer raso, mas a parte azul escura chega a 40m de profundidade, onde está o lençol freático.
Eu no Abismo de Pasion.

Jorge não aprendeu o meu nome, então começou me chamando de "do Nascimento", em alusão a Pelé. Depois aprendeu o meu último sobrenome (Lima), e nisso ficou. Engraçado foi quando chegamos numa região produtora de lima, e começou a história capciosa de quem queria comer lima. "Mas lima não se come; se chupa", anunciou ele às coroas do grupo, sorrindo de uma orelha a outra.  

Depois descobrimos que Jorge era diácono da igreja. "Eu me transformo completamente", disse ele. Disse que certa vez alguém disse a ele que jamais tomaria a comunhão em sua mão. "E o que é que tem o corpo de Cristo a ver com isso?", disse ele que respondeu. Uma senhora do nosso grupo concordou, rindo, que também não tomaria. De fato, era difícil imaginar aquele velho piadista celebrando missa. Mas ele sabia um monte de coisa sobre a Igreja, então não acho que era mentira. Logo quando demos partida ele havia feito o sinal da cruz e perguntado se éramos todos católicos. Eu nem abri a minha boca e todos já estavam respondendo em uníssono: "Si, claro!". "Como não!", disse uma senhora ao meu lado. Assim são os mexicanos: descontraídos mas tradicionais na religião. 

Almoçamos e visitamos uma caverna antes de seguir a Uxmal. O almoço foi um dos mais básicos que já tive, numa das casas mais pobres que já visitei. Ficava à beira da pista. Era o que podia-se chamar de uma oca: uma casa de pau e palha, de um só vão, com duas aberturas e uma rede de dormir dentro. Ali se cozinhava e fazia tudo (exceto banheiro, no mato). A senhora, no entanto, era extremamente gentil, e fazia-nos umas tortilhas (ver aqui) com o automatismo de décadas de prática.
Interior da casa que visitamos, onde nos foi preparado o almoço.
Um almoço simples do interior aqui da região maya: tortilha de milho, frita, com uma pasta de feijão cozido por cima, a verdura que tiver, e frango desfiado. (As mesas plásticas da Coca-Cola, como é hábito, onipresentes nas zonas rurais  América Latina afora).
Interior das cavernas que visitamos.
Abertura para a floresta acima.
Na saída, ainda comi um copo de côco verde com limão, sal e pimenta  à maneira mexicana. O limão até que cai bem, mas o sal e a pimenta acabam com o côco. Ao menos tirei uma foto com a mocinha.  
Meu copo de côco ali ao lado. E sim, como eu disse no post sobre Chichén Itzá, os mayas são bem baixinhos. 

Retornando à van, acostei-me com Dona Imelda, que ia ao meu lado no fundão. Era a mãe da moça mais jovem do grupo, que por sua vez ia à frente, entre Jorge e Memo (tadinha). "Você dá conta aí da sogra, Lima", dizia-me Jorge lá da frente. Nem pensar, é óbvio. Dona Imelda estava longe de ser um pitel. 

Seguimos rumo até Kabáh, uma outra cidade maya em ruínas já nas proximidades de Uxmal. Kabah foi habitada do século III AC até pouco depois de 1000 DC. O mais notável são as paredes de templos revestidas de máscaras do deus Chaac, da chuva, que era narigudo. Vejam as protuberâncias.
Entrada de um antigo templo maya em Kabah. As protuberâncias na parede são narizes de máscaras do deus Chaac, o deus  maya da chuva. 
Meu momento Indiana Jones.
Estátua à entrada de casa da nobreza.
A grande Pirâmide do Adivinho, já em Uxmal.
De perto. Haja pernas pra subir essa escadaria!
Vista de outro ângulo.
É grande. São 35m de altura e 53m de largura na base.

Do alto dessa pirâmide o líder espiritual da cidade fazia as suas previsões e preces  e, é claro, acompanhava o movimento dos astros, parte muito importante da espiritualidade dos mayas. Não distante dali ficavam também as casas da nobreza, que é quem vivia em construções de pedra  o povão vivia em casas de madeira nos arredores, mais pra perto da floresta. 
Entradas para aposentos das classes altas, no centro da cidade de Uxmal. Percebam os motivos e símbolos na decoração das paredes. Quase sempre são referências aos vários deuses mayas. 
Palácio do Governador. Após essas escadarias havia um largo pátio de pedra, hoje coberto pela grama.

Não era à toa que o deus Chaac, da chuva, era um dos mais reverenciados. Acredita-se que antes do ano 1000 DC os mayas começaram a sofrer intensas e crescentes crises de abastecimento hídrico, e o resultado foi abandonar o que haviam construído e migrar para o interior do continente, fora da Península de Yucatán, para onde hoje estão Guatemala e Honduras na América Central. As populações mayas continuaram a existir, mas em números bem menores e sem o esplendor do seu período clássico. Quando aqui chegaram os espanhóis nos idos de 1500, os mayas já eram grupos menores, mais pobres, mas ainda assim guerreiros. Somente em 1697 (preste bem atenção, 200 anos depois) é que os espanhóis conquistaram a última das cidades-estado mayas independentes, Nojpetén, na atual Guatemala. 

Como era de se esperar para a época, mas infelizmente, os espanhóis queimaram quase todas as obras escritas dos mayas, que eram altamente pictográficas e cheios de desenhos que os espanhóis consideraram demoníacos. Sobraram apenas três códices, todos eles hoje guardados em museus europeus: Madrid, Paris, e Dresden (Alemanha). São os últimos livros pré-colombianos originais dos mayas. No mais, ficou o conhecimento passado de geração em geração (afinal, os mayas hoje ainda são milhões de indivíduos no sul do México e na América Central, e falam seus próprios idiomas  sim, são vários), e há os relatos dos freis que mandaram queimar a bibliografia maya. Seguem vivos, porém, para encontrarem seu devido lugar na cultura e na política dos estados modernos daquela região, e que até hoje tão pouca atenção dão a eles. O colonialismo acabou, mas não acabou. 

Esperemos que aqueles que sofrem de crise hídrica hoje levem a sério. Senão, a História já mostrou o que acontece.

Deixo vocês com algumas fotos de Kabáh ao entardecer e de Uxmal à noite.
Lado de trás da Pirâmide do Adivinho, em Uxmal, à noite.
Nas fotos não é possível ver as estrelas, mas essa é a parte mais impressionante. À luz da lua cheia também deve ser magnífico. As ruínas ganham todo um ar de misticismo.
Luzes sobre o corpo e a cabeça de Quetzalcoatl, a "serpente emplumada" divina dos indígenas da Mesoamérica.
O crepúsculo de um povo. Foram-se os mayas antigos, ficaram os mayas do presente. Nasceu a multiétnica civilização latino-americana, que ainda tem muitas contas a acertar.

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Na Terra dos Mayas (2): A Origem do Chocolate



sábado, 21 de fevereiro de 2015

Na Sapucaí vendo o maior espetáculo da Terra

Os colonizadores europeus feitos como carrancas num carro alegórico, no desfile campeão da Beija-Flor sobre a Guiné Equatorial.

 "Já estamos há três semanas sem tirar folga", disse-me a moça do café no aeroporto, uma negra jovem, bonita, de sorriso limpo, com a bandana preta do uniforme e aquela cara de "fazer o quê?".
 "E pode isso?"
 "Acho que não..."
Outros três, da periferia como ela, circulavam pra lá e pra cá enquanto ela me atendia. Dentre eles uma senhora pesada que suava no uniforme, calor do Rio de Janeiro no verão.
 "Uai, o dono impede vocês de tiraram as folgas e isso fica assim? Vocês não têm sindicato não?"
 "Acho que tem", respondeu-me a moça com aquele ar aéreo de quem não sabe muito do que está falando.

Substituíveis. Não é à toa que as empresas tanto gostam da chamada "flexibilização" das regras trabalhistas e dos contratos temporários sem vínculo.

Nesse dia eu fiquei triste em ver que essa sociedade de patrões e empregados foi o melhor que a espécie humana conseguiu fazer para si até agora. Mas é Carnaval, e como bons brasileiros a gente esquece esses assuntos sérios que a gente vê mas sobre os quais não reflete, e entra na folia. E neste caso não seria uma folia qualquer, mas o maior show da Terra: o Carnaval do Rio de Janeiro. Me oferece algum outro candidato à altura? 

Antes que alguém de outro estado reaja, deixem-me dizer que, como baiano, acho o carnaval de Salvador (ou de Recife) mais envolvente, mais participativo. Mas não é um show; é folia. Já o do Rio de Janeiro inclui um espetáculo a ser assistido, de preferência ao vivo, e para o qual não vi páreo em nenhum lugar do mundo.

Você pode não gostar de samba, ou de Carnaval, mas inegável a magnitude artística da coisa: compõe-se um samba, dança-se, elaboram-se coreografias específicas das várias alas, fazem-se fantasias e alegorias que combinem com o tema, e tudo isso contando uma história, o enredo. Quantas artes isso inclui? Se fosse francês ou norte-americano, eles estariam propagando isso de vento em popa mundo afora, e nós do "terceiro mundo" admirando. Mas santo de casa não faz milagre  ao menos pra parte da população. Não é vender o Brasil como sendo puramente a bunda da mulata, nem a mulher brasileira como objeto, mas valorizar a(s) arte(s) presente(s) ali no espetáculo, mesmo que essa não seja a sua praia.

De quebra, é provavelmente o único evento de grande porte a tratar (e valorizar) as culturas africanas e indígenas, que mundo afora  e no próprio Brasil  são muitas vezes tratadas como não-cultura, ou no máximo como algo menor. Onde mais você tem elaborações artísticas desse porte sobre a cultura dos indígenas Caruanas, do Pará (que você possivelmente nunca nem soube que existiam), ou sobre o povo de Luanda ou da Guiné Equatorial? É que vivemos num mundo onde saber detalhes da Toscana ou do sul da França são sinais de sofisticação e haute culture; saber das culturas do nosso próprio país ou dos africanos, não. Ó Deus!
Releitura dos padrões de beleza com uma Branca de Neve negra e pesada, na comissão de frente da União da Ilha.

Então eu fui. Há como comprar ingressos direto pelo site da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA). Na chegada nem houve muita fila, mas é preciso chegar cedo se quiser pegar lugar na frente das arquibancadas, mais perto das escolas. Acho que quase metade dos presentes eram estrangeiros. No início, a Globo não mostra, mas canta-se o hino nacional. Daí vêm as escolas e o tempo passa numa rapidez que você nem percebe. Virar a noite é fácil, com o samba tocando, a bateria passando ali a 10m de você, e o ritmo atingindo uma parte mais basal e profunda do seu ser do que alcançam as sinfonias de Beethoven.   
Na arquibancada.
Caso você seja crítico da roubalheira que rola por trás da festa, seja mesmo, mas lembre-se de sê-lo também quanto ao financiamento de TODOS os megaeventos mundo afora, inclusive aqueles financiados por milionários que brincam de cassino com a economia global. 

A ética da coisa é toda discutível, mas a estética é um primor. E ao vivo a coisa ganha outra dimensão. Se pela TV é bonito, ao vivo é um espetáculo! É pra se ver pelo menos uma vez antes de morrer. E se você tiver um outro show de tamanha estatura em qualquer outro lugar do mundo a sugerir, por favor me sugira e eu irei lá conferir!
Desfile da Portela.
A águia redentora da Portela, e a ala das baianas vestidas de bolo, celebrando os 450 anos do Rio de Janeiro.
Abre-alas da Beija-Flor, com um preto velho e um Baobá, celebrando a Guiné Equatorial.
Desfile da Imperatriz.
Nelson Mandela. 
Patinadores, no desfile da Unidos da Tijuca sobre a Suíça.
Avenida cheia!
E aquele arco no final, que tantas noites vi pela TV, agora visto ao vivo.

E aqui um breve trecho que filmei do desfile da campeã Beija-Flor, com direito a Neguinho fazendo seu tradicional gingado.




Ao ir embora, numa outra cafeteria do mesmo aeroporto do Rio de Janeiro, caí na besteira de pedir um strudel de banana. Violei a minha própria indicação de evitar comer coisas que não são tradicionais da região  tipo bolo na Índia, café no Japão, e strudel austríaco no Brasil. O negócio estava um verdadeiro abacaxi, gelado e duro, com aquele gosto de massa fria e banana que pernoitou na geladeira. 

Fui ao balcão pedir que por favor esquentassem.

  "Ah, isso se come é frio mesmo", me disse a moça em tom informativo.
 "Nããão, minha filha. Eu moro na Europa, eu sei que do que tô falando, isso vem é quentinho", respondi eu dando uma inusitada carteirada com o meu cartão de residente da Holanda. 
 "Eu acho isso horrível", se meteu uma outra funcionária de repente, fazendo cara de nojo pro strudel.
 "Porque gelado é horrível mesmo. Se você esquentar eu lhe dou até um pedaço pra você ver como fica melhor", pedi.

Levemente hesitante, a moça pegou o pratinho e levou pra dentro, dizendo que ia perguntar ao gerente e pedir pra esquentar. Daí a dois minutos ela volta dizendo que não tinha microondas, com ar apologético. 

 "Deixa pra lá então", respondi sossegado. "Não tem problema não. Mas diga ao gerente que isso se serve quente. Se ele teve a ideia de vender strudel aqui, ele devia saber disso".
 "O gerente é aquele ali", apontou ela um rapaz que verificava algo no caixa, um homem branco que supervisionava mulheres negras. "Mas esse é o folguista, só está aqui hoje. Esse é legal. O bom seria você falar com o outro".
 "Ele devia ter vindo aqui ontem", enfiou de novo a outra moça mais despachada, falando sobre mim à colega e fazendo aquela cara de quem havia engolido muito sapo do gerente e queria ver ele tomar.
Tive que sorrir.
 "Avise a ele. Eu vou levar o meu pra esquentar em casa. Uma hora coma quentinho também, pra você ver como é melhor", e me despedi. 

As moças sorriram aquele sorriso carioca gostoso. Eu levei o meu espresso, o strudel de banana, e a simpatia.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O Básico da Comida Mexicana

Veja uma versão de melhor visualização deste post no novo site, em:


Comida mexicana. Desconhecida por muitos brasileiros, ou conhecida somente em suas versões fast-food americanizadas. Mas o México tem uma cozinha rica, bem temperada, apimentada  e infelizmente pra mim, bastante centrada em carne. Mas eu sobrevivi. Comi chili (pimenta) a valer, ardi a boca e partes outras que eu não vou dizer, e descobri muita coisa saborosa, que comparto agora aqui com vocês.

Foram várias semanas no México comendo muita comida callejera (de rua), vendo tias e tios amassando a massa de milho pra fazer tortillas na hora, e sentindo o cheiro  nem sempre bem vindo  de comida fritando e assando. Contudo, não posso dizer que vi (ou comi) de tudo, pois o México é um país grande, com 31 estados e diferenças regionais. Apesar disso, parece haver uma alma na comida mexicana que é a mesma.

Tudo aqui começa a partir da tortilha (tortilla), uma rodela fina de massa feita a partir de milho (que você pode ver as senhoras fazendo na foto acima). Os indígenas da região domesticaram o milho há mais de 10.000 anos, e a feitura das tortilhas é uma prática quase tão milenar quanto. É tão básico quanto é o pão para os europeus.
Senhora mexicana com a massa de milho pra fazer tortilhas. Uma vez feitas as rodelas de massa, elas são postas na chapa quente para assar. 
Se posta para fritar, essa mesma massa faz os nachos, chips de milho, tipo Doritos. Aqui no México eles são quase onipresentes como entrada de cortesia, acompanhados de abacate (chamado em espanhol de aguacate) amassado, feijão, limão e pimenta. 

A propósito, eu preciso dizer que os mexicanos adicionam limão e pimenta a tudo, inclusive frutas. Comi côco verde com limão e pimenta (horrível, mata todo o gosto do côco), e quase me aventurei a comer manga com limão e pimenta, mas gosto muito de manga pra cometer tal sacrilégio.  

Já o abacate, pra quem não sabe, é comido quase em todo o mundo como se fosse uma verdura: na salada, no sanduíche, com sal, temperos etc. Uma influência mexicana. Quando eu digo aos meus amigos estrangeiros que no Brasil a gente o come como uma fruta, com açúcar ou batido com leite, as pessoas ficam espantadas. Grande parte do mundo o come como fazem aqui no México: com tomates picados e um pouquinho de sal e limão, no que os mexicanos chamam de guacamole

Acompanhando também está o feijão, que aqui lhe é sempre apresentado como um purê, muitas vezes com queijo branco ralado em cima. O feijão, pra quem não sabe, também é planta nativa das Américas e que os índios já usavam há eras, assim como a pimenta  então percebam o quanto de influência indígena há na culinária mexicana.
Conjunto tradicional de entradas: nachos com feijão e acompanhamentos. Entradas de cortesia num restaurante mexicano. Bastante comum. Neste caso não houve o abacate, mas estão ali as pimentas: no México frequentemente vêm duas, uma verde e uma vermelha. 

Não sei se é pela bandeira, mas aqui no México há quase um capricho estético com as pimentas verde e vermelha à mesa. Sempre me perguntam qual arde mais, mas isso varia muito. Nada melhor que ir alternando. Já o "queijo" cheddar derretido por cima e o ketchup são adições norte-americanas que você pouco verá por aqui  só em fast-foods. ("Queijo" entre aspas porque, como qualquer suíço ou francês vai lhe dizer, cheddar não é queijo, aquilo é uma pasta industrial com corantes e sabores artificiais). 

O mais legal são os pratos "divorciados", que vêm metade com molho de pimenta verde e metade com molho de pimenta vermelho. Aí abaixo estão os huevos divorciados. (Da primeira vez eu pensei que é porque separariam a clara da gema).
Ovos divorciados.
Esses ovos com (massa de) feijão são bem típicos no café da manhã mexicano. Mas o divórcio não precisa ser de ovos, pode ser também de enchiladas, tortilhas enroladas com algum recheio dentro  como panquecas ou canellonis  e cobertas com molho. O recheio é quase sempre carne de boi, frango ou porco, mas deu pra achar algumas exceções, como os papadzules abaixo, que são com ovos dentro e belos molhos por cima.
Papadzules, enchiladas com ovos e molhos por cima --- aqui sem divórcio. 

A tortilha, como você já deve ter percebido, é a base de tudo. Os burritos são elas enroladas sem molho. As quesadillas são elas dobradas com queijo dentro. E os tacos, que você verá por toda parte na rua, são elas geralmente com carne desfiada e alguns outros acompanhamentos tipo tomate e pimenta. Já as tortas nada tem a ver com bolo; são sanduíches, daqueles com gosto de sanduíche de trailer, que Burger King e McDonald's jamais conseguirão reproduzir. 

É uma dureza pra vegetarianos, dos países mais difíceis em que já estive. Uma opção é o nopal, um cacto comestível e com gosto de chuchu, só que mais duro. (Vejam que vida difícil a dos vegetarianos às vezes é). Ele é mais escuro  cor de cacto. É uma outra espécie do mesmo gênero da palma, cacto encontrado na culinária do interior do Nordeste brasileiro. O gosto é o mesmo. (Se você identificar alguma diferença, ou tem um paladar épico ou boa imaginação).
Nopal cortado com guacamole por cima.

Como você deve imaginar, aqui no México se come muito de mão. Arroz é acompanhamento ocasional, e em porções pequenas. Mesmo com os pratos principais, é comum vir junto uma cestinha ou vasilha de tortilhas pra você ir montando e comendo, usando o prato principal e os acompanhamentos como recheios. Elas vêm quentinhas e frequentemente envolvidas num pano (da primeira vez ignorei o pano enrolado lá sem ver o que tinha dentro  não cometa esse mesmo erro). Você se acostuma a comer a comida de mão com as tortilhas, e regado a muito limão e pimenta. 
Beringela recheada com queijo, nopal, molho de tomate por cima, arroz, champignon temperado, massa de feijão com um nacho em cima, tortilhas pra pegar, limão e pimentas.

É, às vezes a vida de vegetariano não é tão difícil.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Na Terra dos Mayas (2): A Origem do Chocolate

Sementes de cacau, das quais se faz o xocolatl, também conhecido como chocolate.

Antes de ganhar o mundo, o chocolate já era sensação entre as civilizações indígenas da Mesoamérica (da América Central ao México). Embora ele seja nativo da Amazônia, foi aqui que se desenvolveu como tal. Há evidências de uso desde 1900 AC, sempre como uma bebida. Os astecas, de quem os espanhóis aprenderam, o chamavam xocolatl, ou "água amarga". A razão é que os índios não usavam açúcar, e tampouco o diluíam com leite. Ao contrário, o usavam bem concentrado: juntavam as sementes moídas a água e adicionavam especiarias, sobretudo chili, pimenta, algo que os europeus também não conheciam.

Eu provei o chocolate à maneira dos mayas, e é brabo. Você toma como uma bebida quente num copinho de cerâmica. (Os astecas o tomavam frio). Tem um gosto ligeiramente amargo, de chocolate concentrado, mais o sabor das ervas que eles misturam (tipo ervas finas de tempero) e a pimenta pegando. (Perceba que é a pimenta mesmo, não é molho de pimenta de supermercado).
Chocolate à maneira maya. Ali na superfície é o óleo natural das sementes de cacau, que são 50% lipídios.

É interessante, mas não vou negar que fiz o que os espanhóis fizeram: adicionei açúcar e canela (esta é da Ásia, e os índios não conheciam). Aí sim, ficou maravilhoso. Não senti nenhuma falta do leite. A pimenta, no fim das contas, foi bem vinda pra dar aquela emoção.

Os Mayas o chamam Chocoh Ha'. Tal qual os demais indígenas da região, eles têm o chocolate como uma dádiva dos deuses, uma bebida para cerimônias e ocasionais especiais. 
Pintura maya antiga na qual um homem de autoridade, talvez governante ou sacerdote, diz ao homem comum que não vá com muita sede ao pote. Aqueles desenhos em marrom ali entre um e o outro são hieróglifos mayas, a sua escrita. 
Representação atual de cerimônia maya, feita por mayas, em língua maya. Ali é possível ver o fruto do cacau tomando um incenso. (Pra incensar eles usaram pedaços de madeiras aromáticas).

Em alguns casos, a pessoa embriagava-se com chocolate antes de ser sacrificada. O sacrifício, lembremos, era para os indígenas da Mesoamérica como uma honra aos deuses. Irrigar a terra com sangue humano, de modo simbólico, era a maior oferenda a ser feita. Com o alto teor de teobromina no chocolate concentrado, a pessoa entrava em transe. 

Mas o chocolate era também apreciado como afrodisíaco, sem tais exageros sacrificiais. Em 1519, o grupo do conquistador espanhol Hernán Cortés descreveu Montezuma, imperador asteca, consumindo chocolate. Fica aí para a imaginação, e pra quem quiser usar chocolate com esses fins.


"De tempos em tempos elas serviam a ele, em taças de puro ouro, uma certa bebida feita de cacau. Dizia-se que dava ao indivíduo poder sobre as mulheres, mas isso eu jamais vi. Eu as vi trazerem mais de cinquenta vasilhas com cacau, e ele tomar uma parte, as mulheres servido-lhe com grande reverência."  Crônicas de Bernal Díaz de Castillo. 

O chocolate logo espalhou-se pela Europa como a segunda bebida exótica preferida da nobreza (atrás do café). Isso, no entanto, teve consequências nefastas, pois logo milhões de índios morreriam de doenças europeias e os europeus, por sua vez, fariam grandes plantações de cacau, nas Américas como na África, movida a trabalho escravo negro para alimentar os mercados chiques da nobre Europa. Até então o chocolate era apreciado como bebida. Só no século XIX é que suíços como Henri Nestlé e Rodolphe Lindt inventariam processos industriais para fazer o chocolate sólido, em tablete, comum desde então.   

De lá pra cá o processo de produção do chocolate mudou um pouco, mas não muito. Hoje, quase metade do cacau que abastece o mundo é plantado na Costa do Marfim  e a África Ocidental como um todo responde por quase dois terços da produção mundial. No entanto, continuam pobres. A sofisticação, a agregação de valor e o dinheiro grande continuam em bolsos europeus. 

Neste vídeo abaixo, do ano passado, cultivadores de cacau na Costa do Marfim experimentam chocolate pela primeira vez na vida. Eles dizem não fazer a mínima ideia de o que é que se faz com as sementes que eles vendem. As legendas estão em inglês, áudio em holandês, francês e línguas locais africanas. Vale a pena, mesmo não entendendo, pra você ver que o que eles não entendem é muito mais sintomático das desigualdades mundiais que persistem hoje.