sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Nantes (França), a cidade de Júlio Verne

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La France. Finalmente eu estreio as minhas postagens em terras francesas. É curioso como na França existe um hiperfoco do turismo brasileiro  ou, pra ser mais justo, do turismo não-europeu em geral  em Paris apenas. O que se conhece das demais cidades francesas? Na Itália se vai a Veneza, Florença, Milão e outras além de Roma. Na Espanha as pessoas visitam Madrid mas também Barcelona, Sevilha, Granada, Bilbao e outras. Na Alemanha vão a Munique, Frankfurt. Na França, não. Quase que só Paris. O que se sabe de Marselha, Lyon ou Toulouse, respectivamente a segunda, terceira e quarta maiores cidades da França? Ou de Estrasburgo, a quinta, e Nantes, a sexta? Eu mesmo não conhecia praticamente nada.

Hora de mudar. Resolvi, portanto, começar pelo interior, por esta França que em nada fica devendo no glamour francês, mas que, seja por culpa das agências de viagem ou de quem for, é menos conhecida entre nós.
Praça no centro de Nantes.
Pra se orientar. Ali fica Nantes.

Nantes era (e ainda é) a principal cidade portuária francesa no Oceano Atlântico. Já se perguntou de onde saíam as navegações francesas que chegaram ao Canadá, ao Caribe, ao Brasil (que foi invadido pelos franceses no séc XVI), à África e à Ásia? Aqui fica o delta do Rio Loire, e o Atlântico está a apenas 50km. De Nantes saíam os navios franceses ao mundo afora, a comerciar mercadorias, traficar escravos, e que construiriam o império global francês dos séculos XVI ao XX.

Aqui também nasceu e viveu o célebre escritor Júlio Verne no século XIX, autor de obras como Viagem ao Centro da Terra (1864), Vinte Mil Léguas Submarinas (1870), e A Volta ao Mundo em 80 Dias (1873), entre muitos outros. Meu ídolo, portanto, já que ele adorava o tema de viagens pelo mundo. Ele versava sobre lugares até então muito pouco conhecidos pela população europeia, como a China ou a Amazônia.

Dizem que, aos 11 anos, Júlio Verne fugiu de casa e foi encontrado num navio que já estava desatracando para as Índias. Seu pai o "resgatou" a tempo e o fez prometer que ele a partir dali só viajaria "na sua imaginação". Pena ou não, Júlio Verne terminou se tornando um dos pais do gênero de ficção científica. Ele anteviu muitas invenções e descobertas, como a ida à lua e a invenção do submarino. Seu cânone principal são os 54 livros da série Viagens Extraordinárias (publicada entre 1863 e 1905).
Júlio Verne aos cerca de 50 anos de idade, em 1878. 

Nantes hoje ainda respira muito daquela época industrial do século XIX  felizmente num sentido muito mais figurativo e literário do que atmosférico (a cidade é limpa e agradável). Era a Revolução Industrial, as máquinas começavam a se fazer presentes na sociedade, e visionários como Júlio Verne anteviam um mundo de possibilidades. Foi nessa onda que depois veio também H.G. Wells na Inglaterra, autor de A Máquina do Tempo (1895). Daí surgiria o gênero de ficção Steampunk, onde máquinas a vapor são capazes de feitos incríveis, e obras consagradas como De Volta para o Futuro, que cita abundantemente o autor.

Aqui em Nantes, em homenagem ao seu prestigiado filho, há um curioso parque de diversões inspirado nessa ficção científica clássica e nas obras de Júlio Verne chamado Les Machines de L'île. Recomendo.

Há também, é claro, igrejas góticas francesas, um castelo medieval, e um centro repleto de ruas simpáticas e guloseimas regionais pra conhecer melhor.
Formiga mecânica no parque de diversão das máquinas. Engenheiros em geral ficarão fascinados pelas geringonças todas construídas aqui.

Eu, pessoalmente, me interessei mais pela narrativa cultural do que pela mecânica da coisa. Achei interessante sentir ali como devia ser aquela mutante visão de mundo do século industrial, a imaginar as coisas que as pessoas anteviam. Há, inclusive, um prédio que me lembrou muito a Fantástica Fábrica de Chocolates (1964).

Se você se interessar pelo autor, vá ao Museu Casa de Júlio Verne, que é interessante para conhecer mais de suas obras. Lá também você fica conhecendo mais da vida pessoal dele.
No museu Casa de Júlio Verne, onde ele viveu.
Com o jovem Júlio Verne, que olhava desejoso pelo que o mundo afora continha. Num banco de praça em Nantes, perto do museu. Eu, graças a Deus, consigo cedo ou tarde fazer todas as viagens que desejo.

Nantes, sendo na França, tem também é claro os tradicionais cafés de livraria, sempre cheios de charme, restaurantes de culinária regional, uma bela catedral, e  algo que você não sabe mas é obsessão entre os franceses  canoagem.

Fomos logo canoar no primeiro dia, eu e amigos de amigos. Os franceses, sempre que há um rio, fazem uma oportunidade de canoar. (Não me pergunte de onde vem essa paixão deles por isso).

Eu, nunca contei aqui, mas tenho uma história um tanto turbulenta com canoagem. Inclui virar a canoa num lago gélido num outono no Canadá, mas depois devidamente conto sobre esse episódio. Basta dizer, por agora, que eu sempre vou assentado com os joelhos para frente os pés pra trás, o que aqui me rendeu o título  dado pelo senhor francês que alugava as canoas  de "Le monsieur que vai como na belle époque da canoagem".

Os franceses podem às vezes ser meio pedantes, mas têm seu charme. O passeio pelo Rio Loire sai de um parque natural numa ilha no centro do rio, com um lindo jardim japonês, e é bastante agradável, com tranquilas vistas da cidade.
Rio Loire no centro de Nantes.
Preparado. (O colete salva-vidas era pra todos, antes que pensem que eu fiquei com medo de virar nesse rio. Comparado ao lago gelado do Canadá, nadar nessa água aí seria moleza, ainda que provavelmente desagradável devido à pouca limpeza, se comparado ao lago canadense).
Olha que vida dura, em Nantes.
A catedral gótica de Nantes.
No interior da catedral. As catedrais góticas francesas são das mais tradicionais da Europa, pois foi aqui na França medieval que esse estilo surgiu, no século XII.
Como noutras partes da Europa Ocidental, estas igrejas hoje são em grande medida pontos turísticos. Na França você verá que grande parte dos fiéis são imigrantes de países mais pobres.

Num aspecto menos sério, fiquei curioso de ver nas ruas de Nantes gravuras de jogos clássicos de video game. É. Zelda, Mario, pac-man e outros assim, do nada, nas paredes próximo aos nomes das ruas. Não sei se era algo temporário ou permanente. Se for a Nantes, confira. Há vários espalhados pelo centro da cidade.
Olha quem está ali. (Link, personagem da série Zelda, para os não-versados).
Mario na França.

Falarei mais das guloseimas regionais no próximo post, mas deixem-me mencionar aqui pelo menos o quiche, meu prato francês favorito. Não é exatamente um prato, mas uma torta salgada redonda, feita com massa, ovos e recheio. Há vários tipos. Uma maravilha. Não sou o mais entusiasta da culinária francesa (muito embutido de carne), mas não consigo vir aqui sem comer quiche.
Quiche francês. Coisa maravilhosa e que você acha aqui em qualquer padaria. Não venha à França para ir comer no McDonald's, s'il vous plaît.
A tal "bomba de chocolate", que já foi mais famosa no Brasil, é originalmente francesa, conhecida por aqui como éclair. (Não vá me pedir une bombe por aqui ou os franceses, cismados hoje em dia com terrorismo árabe, mandarão chamar a polícia, sobretudo se você tiver uma cara morena de barba como a minha). Mais sobre as guloseimas regionais no próximo post.

Deixem-me concluir este post com algo importante de Nantes, a parte menos bonita das navegações francesas. Há hoje aqui um Memorial à Abolição da Escravatura, que vale a pena visitar. Os franceses foram o terceiro povo a mais traficar escravos negros no Atlântico (atrás dos ingleses, os segundos, e dos portugueses, os que mais traficaram). Ao todo estimam-se 11 a 20 milhões de escravos traficados da África para as Américas, sem contar os muitos que morriam no caminho ou na própria África durante a captura.
As rotas principais do tráfico negreiro, por importância. Pra quem não sabe, quem mais recebeu escravos negros no mundo foi  de longe  o Brasil.

O museu é gratuito e bastante interessante. Há uma quantidade grande de depoimentos informativos, opiniões de autores da época, e dados sobre a História da escravatura e as rotas do tráfico. Saibam que, em alguns países da Ásia (e.g. Paquistão), a escravidão só veio a ser abolida no século XX.

Reproduzo aqui dois depoimentos que me chamaram a atenção:


"Pois eu vi as minhas irmãs serem trazidas e vendidas a diferentes donos, para que não tivéssemos nem a mais magra consolação de sermos companheiras de escravidão. Ao fim da venda, nossa mãe nos tomou nos braços, nos abraçou, chorou e suplicou-nos guardar um bom coração e sermos obedientes ao novo mestre. Foi um adeus muito triste: nós a partirmos cada uma para um lado, e nossa mãe a retornar pra casa sozinha Mary Prince, uma escrava nas ilhas das Bermudas (Caribe), 1831.


"Eu amo o cristianismo puro, pacífico e imparcial do Cristo: eis porque eu detestar esse cristianismo corrompido, esclavagista, injusto e hipócrita deste país onde açoitamos mulheres e roubamos crianças. Em verdade, eu não encontro a menor razão, exceto a da manipulação, para chamar de cristianismo a religião deste país Frederick Douglass, em 1845 nos Estados Unidos.
Mural com a palavra liberdade em várias línguas do mundo.

Continuamos na França no próximo post, inclusas aí as guloseimas de que falei. Deixo com vocês a recomendação de visitar Nantes, que agora vocês conhecem um pouco melhor.
Nantes do alto à noite.



sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Gouda (Holanda), a cidade do queijo


"No se confían. Políticos, no se confían.", ouvi a latino-americana dizer ao seu filho ao meu lado, crente que eu não estava entendendo. Certamente tomou-me por árabe, já que há muitos aqui e graças à minha barba. O garotinho havia avistado a contra-capa do livro de Noam Chomsky que eu lia à luz do sol à janela do trem.

Íamos de Amsterdã a Gouda, cidadezinha no interior da Holanda. Lá nasceu o queijo de mesmo nome, um dos mais famosos do mundo, e que eu resolvi ir conferir no local de origem. Este é também o primeiro post que faço sobre a Holanda, apesar de já morar aqui há 7 anos (!).
Entrada para a estação de trem na cidade de Gouda.

Comecemos corrigindo a sua provável pronúncia, que todos os estrangeiros erram (compreensivelmente). Gouda pronuncia-se Ráuda em holandês. O G em holandês tem esse estranho som de R gutural, bem raspado na garganta. Se você falar "Gôuda" (ou "Gudá", como dizem os francófonos), é possível que eles entendam, mas não é garantido. Coisas do holandês. Não é exatamente o idioma mais charmoso da Europa.

As cidadezinhas holandesas, por outro lado, conseguem ser bem amáveis. Todas se parecem muito, como você notará após visitar um punhado delas  quase sempre com seus canais pela cidade, casas de tijolinhos, calçadões para pedestres, praça central onde ficam a prefeitura e a igreja (ambas em estilo moderno-antigo, dos idos de 1500-1800), e mercados onde se vendem guloseimas holandesas, hortifruti, e quinquilharias em geral.

Acresça-se a isso, é claro, o queijo. Ainda que o queijo holandês não seja tão mundialmente famoso quanto os italianos, franceses ou suíços, os holandeses comem queijo pra caramba, há muito tempo. O Gouda é o mais clássico daqui, normalmente vendido por idade: jong (jovem), jong belegen (jovem maduro), oud (envelhecido), entre algumas outras variações. O jovem é macio e suave; quanto mais velho, mais desidatrado, salgado, e de gosto mais forte.  
"Barraca" vendendo queijos na praça central do centro histórico de Gouda.
O queijo gouda normalmente é feito e vendido assim: em rodas.

A cidadezinha fica a menos de 1h de trem de Amsterdã e pode ser facilmente visitada num dia só, como eu fiz. Vale a pena. Aqui, além de visitar o Museu do Queijo Gouda pra aprender como ele surgiu e era tradicionalmente feito, você pode também conhecer mais sobre a história da Holanda na chamada Idade de Ouro holandesa dos séculos XVII e XVIII, ver a mais comprida catedral da Holanda com lindos vitrais, e recantos muito bonitinhos. Além de, é claro, comer queijo.

Da estação de trem são 5-10 minutos a pé até o centro histórico, antigamente murado, hoje sem muro, mas ainda cercado de canais  como uma cidade holandesa que se preze. Aqui na Holanda há canais por toda parte.

As cidades holandesas, em geral, souberam muito bem "pular" a Era do Automóvel. Passaram, em grande medida, da época pré-industrial para a época de bem-estar hoje aqui em que há ruas exclusivas pra pedestres, muitas ciclovias, e transporte coletivo de qualidade. Muito melhor. O resultado são cidades bonitas, tranquilas, e boas de se circular.
Rua típica com canal, no centro histórico de Gouda.
O outono chegando aqui e dando nova cor às folhas.
Cena típica do holandês, com três crianças na bicicleta. Estas bicicletas modificadas são comuns aqui. 

Mas passemos ao queijo. A primeira menção escrita ao queijo gouda é do ano 1184 (!). Queijo, de modo geral, é algo já feito há milênios pelas civilizações do Oriente Médio, da Índia, e da Europa. Basta adicionar um coagulante ao leite e, voilà. Aqui tradicionalmente usava-se ácido de estômago de  novilho. Enrolava-se os grumos de leite na própria pele das vísceras animais, como ainda fazem muitos camponeses Europa adentro.  

Entrei no Museu do Queijo pra aprender mais, no prédio onde costumava ser o centro oficial de pesagem dos produtos. Aqui as medidas eram padronizadas, e só podiam vender o que já tivesse recebido o selo de certificação. Os governantes, espertos já desde aquela época, aproveitavam então para coletar o imposto sobre as mercadorias. Se precisasse, o quartel de polícia ficava logo no andar de cima.
Prefeitura de Gouda, no meio da praça principal de seu centro histórico. Gouda, que era um povoado medieval, ganho status de cidade em 1272.
Exterior do waag, a casa oficial de pesagem dos produtos, também na praça central, em frente à prefeitura. Em 1667 foi introduzido o imposto sobre o queijo, e a cidade prosperou. (Em tese é sempre pra ser assim; uma pena que a lógica nem sempre funcione.)
O interior daquele prédio é hoje uma loja de lembranças e o Museu do Queijo Gouda. É claro que comprei um pra mim.
Feitura tradicional à época, quase sempre pela mulher.
Queijos gouda. Aquele espaço vazio ali é onde estava o que eu comprei. Aqui foi possível achar uns artesanais, já que hoje em dia pelo país  e Europa e mundo afora  se vendem os industrializados. Os holandeses também são obcecados por pimenta cominho, e adora metê-la (assim como outras especiarias e ervas) no queijo pra dar sabor. Aqueles pintados lá no alto da foto são esse caso.

O sabor lembra um pouco o queijo prato brasileiro, porém melhor.

Mas nem só do pão vive o homem, e nem de queijo. Então fui ver as demais atrações da cidade, como a Igreja de São João (Sint Janskerk) com seus lindos vitrais e o Museu de Gouda, um misturão de tudo que é coisa histórica da cidade. Como sempre, museus na Europa são normalmente acompanhados de charmosos cafés, e Gouda não foge à regra.

Uma observação. O norte da Holanda é em geral protestante, e o sul, católico. Há divergências e picuinhas entre os dois lados, como em todo país, embora isso hoje seja bem menos pronunciado do que já foi um dia. No entanto, você notará que das catedrais e grandes igrejas no norte da Holanda (e Gouda se enquadra aí), só sobraram as "cascas", pois os interiores foram quase todos removidos durante a Reforma Protestante do século XVI.

A Sint Janskerk ainda tem missa, pelo que eu entendi, mas seu interior já tem pouco cara de igreja católica  só o edifício em si é que permanece, com os seus lindos vitrais. É a mais comprida igreja da Holanda, com mais de 150m.
A igreja, espremida entre ruelas no centro histórico, é quase impossível de ser fotografada inteira por fora.
Interior, com a ilustre presença da avó de Chapeuzinho Vermelho, que ninguém sabia mas era holandesa.
Alguns vitrais.
Outros vitrais no interior.
O exterior é um charme. A poucos passos você chega ao pátio externo do Museu de Gouda, com as mesas e cadeiras do seu café, em meio às plantas, e com um canal pequeno passando perto. Ares completamente de outrora, fazendo você se sentir na Europa de séculos atrás.
Exterior, entre a igreja e o museu.
Entradas para jardins secretos.
Cafeteria do museu, no exterior.
Lugar bastante tranquilo e agradável.
Entrada do museu.
No interior do museu, esta interessante maquete mostrando Gouda em 1562. Vejam o esquema geral das cidades holandesas à época, com muita navegação. Por este rio que chega ao Rio Reno (que atravessa a Holanda) e ao porto de Roterdã, escoavam queijo e outras mercadorias para a Bélgica e a França. 
O museu tem algumas pinturas e vários objetos de época, como mobílias, vasos, etc. Não vou lhe dizer que achei lá muuuuito interessante no interior, mas se você já está aqui, vale a visita. 
O exterior do museu, pra mim, ganha o prêmio de charme.

Saindo dali, caminhei pela cidade. Havia tomado um belo café espresso, e o almoço foi asiático, pois holandês almoça sanduíche, e isso contraria os meus valores culturais.

O que comi e que foi holandês, já à tardinha, foi um delicioso stroopwafel feito na hora, um wafer (biscoito) típico com recheio de caramelo. Nham.
Comendo um stroopwafel em Gouda.

Ainda cheguei a tempo de jantar num japonês com uma amiga minha em Amsterdã. Falo mais sobre a Holanda noutras oportunidades. 

A visita a Gouda está recomendada. E se quiser o máximo da experiência, venha numa quinta-feira de manhã entre junho e agosto, no verão, quando eles aqui fazem o Mercado do Queijo e enchem a praça de rodelas amarelas. Quem sabe você leva uma pra casa.
A prefeitura de Gouda.
Pôr do sol que alcancei em Amsterdã, na estação.



sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Na Baía de Kotor, em Montenegro


A Baía de Kotor, também conhecida por "Boka", é um dos lugares mais lindos que já vi na Europa, e acho que o destino maior do pequeno país de Montenegro.

Calma, não se resume a esse cenário aí acima com ar de "Idade das Trevas". Montenegro é um país humilde, separado da Sérvia em 2006, pobre, sem luxos, sem nem moeda própria, onde as estruturas portanto estão assim mais "cruas" (o que tem seu lado positivo pela autenticidade...), mas ultra-barato e de lindas paisagens naturais. Abaixo a Baía propriamente dita, onde fica este antigo vilarejo de Kotor.

Aqui me meti para esta viagem relâmpago a Montenegro.
A Baía de Kotor.
Montenegro hoje é um país independente, mas fala a mesma língua serbo-croata dos vizinhos. Era o Principado da Montanha Negra (Crna Gora [Tsrnagóra] na língua local), chamado de Monte Negro pelos mercadores venezianos ao longo dos séculos. Compuseram a antiga Iugoslávia a partir de 1918, até se tornarem independentes mais uma vez, em 2006.

Os montenegrinos são cristãos ortodoxos como os sérvios, e estão ainda fora da União Europeia. Usam o euro informalmente  não tem moeda própria, mas tampouco participam formalmente do Eurogrupo ou das reuniões que definem política monetária europeia. Enfim, usam o euro "na xêpa", por praticidade.

As relações comerciais e diplomáticas com a vizinha Croácia continuam abaladas desde a Guerra dos Bálcãs dos anos 1990 (quando os montenegrinos atacaram Dubrovnik a canhão). Então embora Kotor fique apenas a 2h de distância daquela linda cidade croata, não há serviços de ferries, apenas ônibus. Você irá concordar comigo que é um desperdício. A viagem de barco de lá até aqui, por essas águas e vistas para as montanhas ao fundo, deve ser fascinante.
Esta é a vista que se tem do ônibus, no momento em que ele precisa atravessar o mar numa balsa, já em Montenegro.
Por um lado, a rodovia espremida entre as montanhas e o mar engarrafa fácil. Por outro, você viaja margeando o mar com lindas vistas. 

Quem não tem cão, caça com gato. Na ausência de um ferry, tomamos então o ônibus, eu e e minha amiga turca, e chegamos à ambiciosa rodoviária de Kotor, um deslumbre da arquitetura iugoslava.
Rodoviária de Kotor. Lembra as do interior do Brasil, onde compra-se a passagem por uma janelinha na parede do lado de fora.

Nossa primeira meta foi achar a casa onde havíamos feito uma reserva. "Casa" porque, como na Croácia, o mais comum aqui é alugarem quartos em casas de família  não há muitos hoteis ou albergues comerciais. Havíamos planejado chegar antes, mas subestimamos a quantidade de gente viajando de Dubrovnik pra cá e lotando os ônibus (no verão, compre com antecipação de um dia ou dois!). Chegamos então já no final da tarde, e dentro de algumas horas escureceria.

Kotor é pequena, mas você pode se perder. Perder-se dentro de seu centro histórico murado é uma coisa, é charmoso, é perder-se no tempo antigo. Já perder-se na parte "moderna" tem menos graça, é perder-se na época iugoslava de prédios quadrados de concreto velho.
Primeiras vistas de Kotor, após desembarcar. Aquela montanha lá ao fundo tem uma presença imponente-íssima quando você está Ao Vivo. 
Vista para a marina na baía.
Prédio velho com ar de fábrica abandonada. Deve ser.
Ruas por onde perdemo-nos depois, com a noite a cair.
Mas a alegria de estar perdido. Pelo menos havia vistas bonitas para a baía.
Homem quase sempre evita pedir informação, então foi a minha amiga turca quem insistiu que deveríamos começar a perguntar às pessoas. 

Não que houvesse muita gente nas ruas. Vimos alguns garotos jogando bola (que seguramente não saberiam uma única frase de inglês), e avistamos algumas pessoas em suas varandas. Encontramos um homem que disse-nos que estávamos na rua errada, que a rua procurada (elas não tinham placa com o nome escrito) era a rua de baixo. E "baixo" aqui inclui literalmente o eixo da altura, como você pode ver pelas fotos.

Até que finalmente alguém na varanda do segundo andar numa rua conhecia a acomodação que estávamos procurando, os "Quartos de Nensi". (Eu sei, nome de brega se fosse no Brasil, mas respeito com a mulher, que era mãe de família).

Nensi  provavelmente originalmente "Nancy", mas com a grafia adaptada, como fazemos com Uólace e outros no Brasil  morava no final da rua. O morador que nos ajudou tratou então de usar o método mais clássico para chamá-la: deu um gritão da sua varanda. "Nensi! Neeensiiiiiii!", e acrescentou alguma coisa em serbo-croata que eu não compreendi.  

Nos indicou sorridente qual era a casa de Nensi. Simpático, o homem. Lá Nensi nos avistou da varanda do seu sobrado de dois ou três andares.

 "Cadê o carro de vocês?", gritou ela da varanda após se identificar, uma mulher de seus 45 anos com ar de quem resolve as coisas.
 "Aqui", e apontei pra as minhas pernas, sem conseguir segurar a risada diante da pergunta dela.

Nensi nos recepcionou num lugar agradável. Dava contar de regular duas crianças suas que brincavam por ali enquanto nos mostrava as instalações. Acertamos tudo a tempo do blecaute.
Vista maravilhosa que tínhamos da vizinhança durante o blecaute.
Fomos audaciosos e visitamos o centro histórico já no caminho até aqui, antes mesmo de achar a casa. Caso contrário, estaríamos fadados a vê-lo na escuridão. Na verdade, fizemos ambos, pois não resisti nem à fome e nem à tentação de caminhar pelo centro histórico no escuro. Loucura, loucura, loucura.

O caminho até lá foi à base de luz de celular, acrescida de uma ou outra luz de emergência de alguns prédios, impedindo o breu total. 

Na bela praça com árvores ainda fora do centro histórico havia algumas luzes acesas a gerador (pela preparação, me pareceu cotidiano este tipo de blecaute aqui), e lá algumas famílias se aglomeravam, em relativa tranquilidade. Já no interior das muralhas, o breu pelas ruelas antigas, lojas e restaurantes era completo a não ser pela luz de velas.

Não deixei de sentir certo dó. Percebe-se que Montenegro quer ser como a costa da Croácia, mas nota-se a falta de recur$os. Quer desenvolver o turismo, e falta de dotes naturais e históricos não há, mas há uma clara pobreza de infraestrutura. Lamentei pelas pessoas, algumas visivelmente esforçadas.
Famílias que haviam ido passear, aguardando na praça a luz voltar.
Vendedoras a luz de velas numa loja no centro histórico. Fiquei até com dó de tirar esta foto.
Estas são mesas de um restaurante numa praça do centro histórico. Jantar a luz de velas nas lamparinas. O mais impressionante eram os garçons, continuando a servir numa boa.

E, no meio da minha pizza, a luz voltou. Uma pizza barata e meio chinfrim, diga-se de passagem, mas tampouco quis esperar muito aqui. Encheu o estômago e não estava má.

Kotor tem um centro histórico muito bonito, com muralhas antigas, igrejas tanto católicas quanto cristãs ortodoxas, música ao vivo nas suas calçadas de pedra, e  havendo luz  recantos charmosos pra se ver. Tem um clima menos badalado que Dubrovnik, embora possua a mesma estética e arquitetura em casas de pedra vistas na costa da Croácia.  
Quando por aqui passamos antes do anoitecer.
Praças no interior das muralhas, no centro histórico.
É possível subir e caminhas naquelas outras muralhas lá nas montanhas também, onde há postos de observação e capelas. Pra quem tiver pernas. São vários quilômetros. Ficou pra uma outra vez.
Montanhas de Montenegro ao fundo.
Ruelas boas de se andar no centro histórico, com vista para as montanhas atrás.
Interior de uma igreja ortodoxa. Os cristãos ortodoxos, religião dominante no leste europeu, têm ritos distintos dos católicos romanos, e não seguem Roma. Eles preservam os ritos do jeito que eram no primeiro milênio, e celebram em grego. Não há bancos; em geral assiste-se à celebração de pé. 
Altar. Eles também tem uma preferência tradicional por imagens bi-dimensionais, em vez das estátuas e estatuetas comuns em igrejas católicas.

No dia seguinte, Nensi nos deu uma carona à rodoviária, de onde tomaríamos o ônibus de volta a Dubrovnik. Desta vez estávamos preparados, e chegamos com antecipação. O ônibus não é desconfortável, e vão muitos jovens turistas. 

Na passagem há assentos marcados, mas no ônibus eles não estão numerados, então de nada adianta. Isto é, a menos que você seja dos números 1 e 2 ou 3 e 4, logo na frente. Por prudência, eu e minha amiga fomos pra uma das fileiras seguintes. Um inocente casal jovem norte-americano sentou-se lá tranquilamente, não antevendo a chegada de uma senhora russa encrenqueira, com ar daquelas coroas  que gostam de confusão. 

Ela chegou, olhou o casal sentado ali, olhou de novo pro bilhete, caminhou um pouco pelo corredor, voltou, e finalmente interpelou o casal: 
 "Esse lugar é meu", disse ela categórica num inglês carregado de sotaque mas fluente. 
 "A gente procurou mas não viu números nos assentos", replicou o casal, com aquele ar casual que os jovens norte-americanos geralmente têm. 
 "Eu pedi claramente quando comprei a passagem que queria este lugar".     
 "Ok, a gente pode passar pra um dos assentos mais atrás", responderam os norte-americanos em tom conciliador.
 "Eu fiquei chocada quando vi que havia gente aqui", continuou a senhora russa (vi pelo passaporte que ela segurava) enquanto os jovens pegavam suas coisas. "Eu caí pra trás!", continuou ela dramática, "sem entender como alguém poderia fazer uma coisa tão deseducada."  

Eu, logo atrás, e a minha amiga turca nos olhamos sem dizer nada. Os jovens, já sem paciência com a inticação (procure a palavra no dicionário), saíram o mais rápido que puderam antes que ouvissem mais. "Divirta-se com o seu assento", disse o rapaz ao sair, já sem paciência. A coroa russa ainda prosseguiu resmungando um pouco até se aquietar.

E assim concluíamos a nossa brevíssima passagem por Montenegro. Voltamos a Dubrovnik para ainda mais um dia antes de deixarmos este (re)canto da Europa.
Uma das várias praças com restaurantes à noite no centro histórico de Kotor. A bandeira de Montenegro é essa em vermelho e amarelo.

EPÍLOGO

Havíamos deixado as nossas bagagens em Dubrovnik com o Seu Ljubo, dono da casa onde havíamos ficado. Como indiquei no post anterior (Dubrovnik, uma das mais belas cidades da Europa), ele era uma figura sui generis, notável pelo seu ar de cansaço e lentidão, como se estivesse sempre sonolento demais.

Quando perguntamos se poderíamos deixar as nossas bagagens na casa dele, a resposta levou cinco segundos de expectativa até vir, um sim breve feito com o balançar da cabeça. Ao voltar lá, temíamos que ele não estivesse em casa, ou que estivesse dormindo, ainda que fosse dia. Dito e feito, mas o acordamos. Ele chegou descalço, ainda mais dormindo que acordado (embora esse parecesse, realmente, ser o seu normal). Pegamos as nossas coisas e nos despedimos.

Dali tínhamos uma noite ainda de reserva num outro lugar, até pegar um voo na madrugada do dia seguinte. Só assim pra você ver as ruas de Dubrovnik quietas: às quatro da manhã. E, mesmo assim, ainda ouvirá batidas de música eletrônicas e zoações de galera na rua ao longe.

O lugar onde nos hospedamos para esse dia final na Croácia foi ótimo, no interior das muralhas. Teve seu custo (como qualquer lugar no interior das muralhas), mas teve seu lado bom. Ficamos no alto de uma escadaria estreita, com o charme da cidade. No interior, não vimos viv'alma. Um rádio velho que ligamos na recepção tocava Fly me to the Moon, de Frank Sinatra, e ali olhávamos o burburinho lá no alto, ao sabor de limoncello que eu havia trazido de Nápoli na bagagem.   
Alto onde nos hospedamos para esse finzinho em Dubrovnik.
As escadarias quietas, à noite.
Ruas quietas de Dubrovnik na madrugada. Assim nos despedimos, eu e ela.
E aqui dissemos o "Até mais ver".