sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Novo endereço!

Caros leitores,

Agradeço as visitas de todos vocês, e tenho a boa notícia de que chegou finalmente a hora de evoluir. O site agora se encontra num novo endereço, num formato que permite melhor navegação, organização e apresentação do conteúdo. "Remasterizei" todo o material que vocês já conhecem, com revisão de postagens mais antigas e fotos em maior qualidade. 

Vejo vocês a partir de hoje em http://maironpelomundo.com, com tudo reformulado. Já são mais de 40 países com viagens relatadas, e muitos outros por vir, até o fim do mundo.

Um forte abraço e vejo vocês por lá,
Mairon 

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Visitando Túnis, a movimentada e literata capital da Tunísia

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Túnis é uma zona, e não é das pequenas. Cá em quase todo este mundo árabe do norte da África impera uma energia social fortíssima. Esqueça aquela ocasional tranquilidade idílica que você encontra em cidades do sul da Europa; aqui no norte da África a natureza é parecida, mas o mundo humano é outro. Eu acho sempre interessante notar como dois mundos tão distintos aqui se encontraram, como um encontro das águas, uma "pororoca" cultural, que aqui apenas o Mar Mediterrâneo separa.

Agrave-se aí que Túnis acabou de terminar de ser o epicentro da Primavera Árabe na Tunísia, que o governante de 26 anos de "reinado" foi derrubado, e que o país encontra-se ainda em convulsão, entre tentativas de estabilizar a sociedade e facções terroristas que visam exatamente ao contrário.

Se por um lado isso traz instabilidade, por outro traz também excitação. É interessante notar o ânimo com que as pessoas aqui se socializam nas ruas, com aquela energia de quem vive tempos de transformação. Uma boa ilustração disso, eu sempre acho, são as vitrines de livraria; se no Brasil temos auto-ajuda, podres da política e biografias de celebridades ocupando as primeiras prateleiras, aqui os livros em destaque são sobre o lugar do jovem na sociedade, sobre Deus no mundo moderno, ou sobre outras transformações. Saquem abaixo na foto que tirei da vitrine de uma livraria no centro de Túnis.
"Vivendo no fim dos tempos", de Slavoj Zizek, um cientista político; "O futuro de Deus"; "O cérebro do jovem"; "Holacracia, o sistema administrativo revolucionário que abole a hierarquia", e por aí vai. São livros de vitrine da principal livraria do centro de Túnis, ilustrando o momento de transformação que esta sociedade vive.

Vê-se claramente que o atual espírito do país é o de uma sociedade em plena transformação — e com gostinho de "quero mais”.

A Tunísia — que foi colônia da França entre 1881 e 1956  talvez tenha sido quem melhor abraçou aquele academicismo humanista francês, aquela coisa do intelectual de óculos tomando uma xícara de café e falando de filosofia. Isso você raramente vê em outros países árabes como o Egito ou o Marrocos, mas vê com frequência aqui. Quatro-quintos dos tunisianos são alfabetizados (mais que na maioria dos outros países árabes), e eles aqui orgulham-se muito disto. Além disso, há uma promissora produção teatral, de filmes etc., de valor à produção cultural. Vi em Túnis vários cinemas pequenos, daqueles "alternativos" onde as pessoas ficam naquela roda de conversa depois do filme.

Vamos às minhas andanças pela cidade. Para introduzir vocês no clima, um videozinho feito na Av. Habib Bourguiba, a principal da cidade. 



O salão de café da manhã no meu hotel é uma saleta pequena de paredes todas brancas e poucos enfeites, e recebe o nome apropriado de Le Bunker [casamata, abrigo anti-bombas], o que me deu uma grande sensação de aconchego e proteção. Apesar dessa tensão, as duas senhoras árabes sem véu que arrumavam o bufê eram bastante simpáticas, e sorriam sem dificuldade. O menu era daqueles habituais de hotel, com pão, fatias de queijo, café, etc. (O café daqui não é mau.)

As ruas de Túnis me esperavam.

O centro de Túnis tem duas grandes áreas que se encontram. De um lado, a Av. Habib Bourguiba e suas imediações. Como vocês viram no vídeo, a avenida é ampla e bem limpa, mas isso é porque ali estão todas as lojas de marca (com seus seguranças às portas), os hoteis mais chiques, etc. As ruas transversais já revelam um ambiente totalmente diverso, de prédios "brancos" encardidos e lixo na rua (é onde meu hotel ficava). A outra grande área é a medina, o tradicional centro antigo com seus becos labirínticos repletos de lojas e barracas.

Nas imediações do meu hotel parecia que havia acabado de terminar o carnaval ou a micareta, de tanta imundície. Vejo as pessoas atirarem lixo na rua sem a menor cerimônia; calçadas e ruas ficam repletas de uma bagulhada que vai de garrafas plásticas a osso de galinha, e sacos pretos de lixo amontoados dão o resto do tom. Ali, ao anoitecer, gatos de rua fazem a festa. (Como os muçulmanos, em geral, veem os cães como animais impuros porque eles não se limpam, o que mais há pelas ruas e nas casas são gatos. Eles é que viram latas aqui nesta parte do mundo.)

Fui conhecer as ruas de mais comércio (o "meião" mesmo), e senti-me de repente na 25 de Março em São Paulo, não apenas com roupas, mas também sapatos esculhambadamente amontoados uns sobre os outros em pilhas sobre toalhas na calçada, com vendedores gritando isso e aquilo, e donas e homens pra lá e pra cá checando tudo.

Todos os prédios parecem velhos, do tempo da colonização francesa, brancos e encardidos, precisando de uma mão de cal.
O amplo (e limpo) boulevard da Av. Habib Bourguiba, artéria central de Túnis.
Calçadão no meio. Lá ao fundo a torre da Praça 14 de Janeiro de 2011, comentada no post da chegada à Tunísia.
Muitas cafeterias, bares de hotel, e lojas chiques na avenida (todos com seus devidos seguranças particulares). 
Conforme a avenida se aproxima do centrão, a muvuca aumenta. E uma estranha presença ali, a Catedral de São Vicente de Paula, levantada pelos franceses em 1897. Ela hoje vive fechada, com barras de ferro às portas. Nunca a vi aberta, mas soube que abre às sextas pela manhã.   
As ruas do centrão de Túnis.
Dois gatos de rua ali perto saboreiam uma deliciosa espinha de peixe.

Eu na verdade havia ido às imediações daquela torre da Praça 14 de Janeiro, onde teoricamente há um Centro de Informação Turística, mas a viagem foi perdida. Lá encontrei uma porta fechada, e do outro lado, à outra porta, um guardinha, daqueles preguiçosos, a quem você pergunta "Que horas abre?" e ele olha pra você com aquela cara de "Quem é esse aqui de repente". 

— "Bom dia, este é o Centro de Informação Turística, não?", perguntei ao guarda.
— "Bom dia. Tá fechado."
— "Que horas abre?"
— "Hoje não abre mais não."
— "E quando abre de novo?"
— "Não sei. Normalmente não tem aberto não.

*E me olha com aquela cara desinteressada, de quem esperava que eu me satisfizesse com as suas esclarecedoras respostas* 

Vi que aquilo não ia chegar a lugar algum e fui embora. Resolvi descobrir a cidade sem mapa, sem nada.

E, de fato, encontrei. Do outro lado da medina (onde me perdi diversas vezes), há a bela prefeitura de Túnis e a praça chamada de Kasbah, onde vi meninos jogando bola. 
A Praça da Vitória, que conecta a Av. Bourguiba à entrada da medina. Este arco pertencia às antigas muralhas da cidade. (Como no Brasil, você tem, é claro, o povo carregando coisa na rua, outros atravessando no meio dos carros, etc.)
A Praça da Vitória enfeitada com as bandeiras vermelhas da Tunísia, e muito movimento de gente na rua.
Os movimentados becos da medina. Perceba que aqui grande parte das mulheres, sobretudo as mais jovens, não usam véu.
O interior da medina é aquele labirinto comercial característico. Embora esta aqui não seja tão "medievalesca" quanto as de Marrakech ou Fez (no Marrocos), ela tem seus meandros onde você se perde. 
Medina de Túnis, com muito movimento de gente e tapetes à venda.
Loja de cerâmicas. 
Só que hoje em dia, naturalmente, aquelas artesanias se misturam aos produtos Made in China. 
O meu maior medo, confesso, era, andando juntinho como andamos nesses becos, pisar no vestido de uma daquelas senhoras e descobrí-la, criando um pandemônio tendo eu como epicentro na medina.
Quer muvuca, venha à medina.
...só que às vezes você entra por uns becos, perdido, e se mete numas áreas assim da medina.
Olha onde eu vim parar, perdido.
Como as ruas são estreitas e você não vê além dos prédios adjacentes, perder-se é quase garantido. Um dos poucos marcos que você ainda avista às vezes é o minarete da Mesquita Al-Zaytuna (não confundir com azeitona).

Ela data do ano 698 d.C., de logo quando os árabes chegaram a esta região do norte da África. A entrada é normalmente restrita a muçulmanos, mas por fora é possível ver o seu minarete medieval.
Minarete da Mesquita de Al-Zaytouna. A mesquita foi fundada no ano 698, mas houve várias reformas conformes estes domínios árabes foram subjugados pelos turcos e, depois, pelos franceses. Esse minarete atual, que você vê, é do século XIX, remontando o estilo Almôada da Idade Média.

Finalmente, após muito me perder, cheguei ao outro lado da medina, onde fica a prefeitura e a praça Kasbah. Era hora do almoço, e eu estava sob aquele sol de meio-dia, crianças saídas da escola pelas ruas.
Prédio do governo com bandeiras da Tunísia.
A impressionante prefeitura ao fundo, e meninos jogando bola na praça.
Jardins debaixo do sol. Praça chamada de Kasbah, provavelmente a mais bonita da cidade.
Selfie com a prefeitura. Com a minha cara de árabe, todos achavam que eu era daqui. 
Eu acho engraçado que os brasileiros gostam de se sentir da mesma família da Europa e da América do Norte, como "ocidentais" (iludidos sem saber que a recíproca não é verdadeira, e que os europeus e norte-americanos consideram a América Latina uma terra tropical subdesenvolvida mais próxima da África do que da sua branca e culta "civilização ocidental"), e na real o Brasil se parece muito mais com isso aqui do que com a Europa. É tipo o empregado que acha que é parte da família dos patrões e ainda despreza os outros que são como ele.
  
A Tunísia pode não parecer, mas é a cara daquelas partes mais "populares" do Brasil.

Fui almoçar, saindo dessa solina e tentando não me perder fazendo o trajeto de volta pela medina, e acabei almoçando numa lanchonete que parecia aquelas de centro de cidade brasileira, com mesa plástica e uma moça que vem às vezes limpar com o pano.
O meu almoço com talheres plásticos no centro de Túnis, um tajine tunisiano, que nada tem a ver com o tajine marroquino. Este daqui é um gratinado de batata com azeite de oliva, azeitonas e especiarias. (Essa cobertura é de queijo com ovo.)
Embora não fizesse calor a esta época do ano, às vezes era bom se refugiar na tranquilidade do meu quarto de hotel — até sair de novo para bater perna no fim do dia.

Túnis praticamente "fecha" às primeiras horas do escurecer, como os centros de cidade no Brasil. Naquele finzinho de expediente os bares e lanchonetes já se enchem; embora as pessoas em geral não bebam álcool, proibido pelo islã, isso não impede os bares de estarem cheios, com as pessoas bebendo chá ou café.

Essas lanchonetes e bares são animados, mas não são como os espaços de classes média e alta do Brasil. São como os espaços de bairro, aquele ambiente carregado de testosterona, de rapazes que falam alto, andam gingando, com ar de quem toparia uma briga — tipo em qualquer bar de periferia no Brasil. Há mulheres, mas raramente. São ambientes essencialmente masculinos, e barulhentos, muitas vezes com a TV ligada passando jogo de algum campeonato europeu, que eles aqui assistem como se fosse deles. 

Na birosca perto do hotel onde eu fui "jantar", o cara abria pães  daqueles chatos, comuns em todo o mundo árabe, mas que a gente chama de pão sírio  e punha tudo dentro com a mão. Volta e meia, a limpava em "toalhas de papel" (com aspas porque, na prática, eram quadrados recortados daquele papel ao metro branco, que só arrasta a sujeira e não limpa nada). Ele parecia um DJ com uma velocidade quase automática de movimentos entre os ovos cozidos triturados, as azeitonas, e os pedaços de atum.  

Claro que pegava o dinheiro também. O meu eu pedia sempre com pimenta.
Minha janta na rua no centro de Túnis, ali perto do hotel. Ali dentro é queijo.
No post seguinte eu relato a minha visita às antiguidades romanas em Túnis, e ao fatídico Museu Bardo, onde assassinaram dezenas de turistas em 2015. 

Por ora, deixo vocês com algumas fotos do centro de Túnis à noite (a parte moderna, é claro, que eu não ia me enfiar na medina de noite e acabar perdido por lá e tendo que dormir na rua com os gatos).
A Av. Habib Bourguiba e a torre da Praça 14 de Janeiro à noite. 
As ruas laterais à noite...
Doutor Ali Baba, ao seu dispor.
O portão da Praça da Vitória iluminado.

sábado, 10 de setembro de 2016

Afeição masculina no Mundo Árabe e na Índia: O reverso da medalha da segregação de gêneros?


Túnis, Tunísia. 
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Afeição masculina no Mundo Árabe e na Índia: O reverso da medalha da segregação de gêneros?

Quem viajar ao mundo árabe ou à Índia vai notar logo duas coisas de cara. A primeira, conhecida, é a separação entre homens e mulheres no mundo público. Verá poucas mulheres recepcionando clientes em lojas, em restaurantes, ou em qualquer instância onde haja contato com estranhos; e verá pouca interação entre homens e mulheres, de fato. Os grupelhos na rua são caracteristicamente de mulheres de um lado, e homens do outro.

A outra coisa que lhe chamará muito a atenção, como ocidental do século XXI, é a proximidade física que existe entre os homens aqui. A afeição a que você assiste entre aqueles homens de outro modo tão machões é chocante: rapazes sentados no colo um do outro, senhores andando de mãos dadas ou até mesmo com os dedos mindinhos entrelaçados na rua, e homens estranhos beijando-se no rosto. Tudo isso eu vi ao vivo quotidianamente.


Um latino-americano típico que veja essas cenas achará logo que são todos gays  mas aí o seu cérebro dará um nó, pois esses homens árabes ou indianos conservadores claramente não são homossexuais. Muitas vezes são inclusive homofóbicos. Como pode isso? 

Índia.
Se é estranho ou chocante, o é apenas porque estamos usando o prisma errado, acostumados que estamos com as sociedades latinas. Associamos afeição a sexualidade, e tendemos a crer (erroneamente) que todas as pessoas do mundo se comportam de acordo com os mesmos parâmetros. Na cultura árabe, toque é sinal de amizade e reciprocidade. Distância entre homens é vista como sinal de desdém, como se você se achasse superior àquele outro.

Nós nem nos damos conta de que no próprio Ocidente as coisas já foram muito diferentes do que são hoje.


No Brasil, como em todas as sociedades latinas, hoje há flerte constante entre homens e mulheres, contato social intenso entre os gêneros, e afeição em público num nível que você não vê em nenhuma outra parte do mundo. 


No Mundo Árabe ou na Índia, em contraste, isso é praticamente vetado, só ousado pelos mais jovens em privado ou às escondidas. Caminhei com amigos da Índia e via as mulheres rapidamente se agruparem e os homens andarem entre si; em festas, fiquei surpreso ao ver que os homens iam para um lado, e as mulheres para outro. Por outro lado, se você for homem, provavelmente os seus amigos indianos ou árabes o agarrarão de um jeito que provavelmente o deixará desconfortável. Os homens aqui no mundo árabe pedem licença a você no ônibus com uma mão demorada no seu ombro que mais parece um ato de carinho  no Brasil, certamente seria sentido como um flerte.  


Mulheres entre si, homens entre si.
E aí eu fico a me perguntar até que ponto essa maior afeição masculina não é o reverso da medalha da segregação de gêneros. A mim parece coincidência demais que ela seja tão comum exatamente nas culturas onde essa afeição pública e quotidiana é coibida entre homens e mulheres. Alguns psicólogos dizem que afetividade precisa ser expressada, e se não vai de uma forma, vai de outra. É algo sobre os indianos e árabes que a maior parte dos ocidentais não conhece.

A você aí que já está glorificando a sociedade latina e vendo o comportamento deles, árabes ou indianos, como "válvula de escape" por não fazerem isso entre homem e mulher, lembre-se da homofobia incrível dos homens latinos, do machismo, e questione a sua pressuposição de que tal afeição deve existir apenas entre homens e mulheres. Afinal, se duas mulheres podem se cumprimentar aos beijos, por que não o poderiam fazer também os homens?  


E, além do mais, as coisas já foram muito diferentes cá no Ocidente. Quer ver? Veja abaixo essas fotos "chocantes" do que era o normal das coisas há um século atrás. Fico a me perguntar, inevitavelmente, se a diminuição da segregação de gênero no Ocidente foi quem levou, também, a um distanciamento entre os homens. 


Quis apresentar esse lado do Mundo Árabe e da Índia a vocês, e deixo a pergunta no ar.





Quem no Ocidente se aventuraria a tirar uma foto assim hoje?

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

De volta ao mundo árabe: Bem vindos à Tunísia, norte da África

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PRÓLOGO
A Tunísia, ex-colônia francesa no norte da África, foi a pioneira da Primavera Árabe. Em 16 de dezembro de 2010, o vendedor de rua Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo num protesto de último recurso contra as injustiças que sentia no país. Democracia falha, repressão governamental, abusos de autoridade, combinados a desemprego, altos preços de alimentos e más condições de vida. Mohamed era da minha idade, e faleceu em poucas semanas. Foi o estopim para explodirem as frustrações de um povo.

O ditador Zine El Abidine Ben Ali governava desde 1987 sob a rótulo de "presidente", eternamente reeleito em eleições fraudulentas num sistema político sem liberdades. Os tunisianos não aguentavam mais; após o ato do vendedor de rua, sindicatos organizaram greves gerais; estudantes, trabalhadores e desempregados ocuparam as ruas da capital Túnis e outras cidades contra esse sistema que não os representava e os abandonava; e tudo o que Ben Ali conseguiu produzir foi um "pedido de calma" na televisão.


Ben Ali, numa jogada de marketing político que saiu pela culatra, se fez fotografar 
 mui bem vestido  ao lado do vendedor de rua Mohamed Bouazizi todo queimado no hospital, antes de este falecer. Os tunisianos viram naquilo um emblema da sua situação: um ditador que ia muito bem, obrigado, ao lado de uma população queimada, flagelada.


Foram 28 dias de paralisações e protestos. Embora a mídia ocidental tenha focado apenas o papel das redes sociais (puxando a brasa para a sua sardinha), sindicatos e associações profissionais e estudantis foram essenciais para dar "poder de fogo" à resistência civil. Repressão policial e toques de recolher não os detiveram. Em 14 de janeiro de 2011, Ben Ali fugiu do país com a família. Exilou-se na Arábia Saudita, esse eterno refúgio de ditadores, onde está até hoje. (Ele teria cogitado a França, que nunca se preocupou o suficiente com democracia nas suas ex-colônias contanto que continuasse a fazer comércio, mas o então presidente francês Nicolas Sarkozy percebeu que "pegaria mal", e recusou abrigo.)


A revolução levou a uma convulsão na Tunísia e por todo o mundo árabe 
 o que viemos a apelidar de Primavera Árabe. Egito, Líbia, Síria e Yemen iniciaram revoluções similares para dar fim aos reinados de seus presidentes eternos, e que já preparavam filhos ou genros para a sucessão. Nos dois primeiros, Hosni Mubarak (Egito) e Muammar Qadaffi (Líbia) foram depostos. Nos dois outros, guerras civis eclodiram, interesses estrangeiros misturaram-se aos internos, e elas seguem até hoje gerando a pior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial.


A Tunísia fez em 2014 uma nova Constituição, garantidora de novas liberdades civis e políticas, mas nem por isso sua convulsão social desapareceu. Movimentos dos mais diversos emergiram para tentar obter o poder, de grupos liberais a organizações terroristas fundamentalistas. Em 18 de março de 2015, 22 turistas foram assassinados no Museu Bardo, o mais importante da capital Túnis, por terroristas querendo desestabilizar o país. Em 26 de junho de 2015, 78 pessoas foram metralhadas num resort de luxo próximo a Sousse, cidade costeira mais a sul. E em 24 de novembro de 2015, um homem-bomba do Estado Islâmico tentou explodir o novo presidente (sem sucesso), levando consigo 13 vítimas. A Tunísia segue tentando se encontrar.


Foi pra lá que eu fui.

Centro da capital Túnis, com bandeiras da Tunísia penduradas por toda parte. 
Localização da Tunísia no norte da África, ali próximo à Itália. Todo este norte da África são países árabes. (Caso você não saiba bem o que é ser árabe, ou acha que árabe é só quem nasce na Arábia Saudita, leia aqui.)

Já no aeroporto de Barcelona começou o bafafá. A companhia aérea havia liberado o embarque, mas não o acesso ao avião. As pessoas começaram a se acumular bem no fim de uma escada rolante que descia, esperando uma porta abrir. Bem no fim da escada rolante parou um senhor tunisiano já idoso e meio alheio, criando um congestionamento. É então que, do alto da escada, um coroa francês gordo e de camisão branco, com ar cínico de empresário ou político, soltou um “Que imbecil” pra todo mundo ouvir. Não prestou. 

Ao meu lado, uma moça tunisiana daquele ar confiante de quem não leva desaforo pra casa levanta a voz para o coroa francês. “Quem é que o senhor está chamando de imbecil? É o senhor mesmo, aí da camisa branca”. O francês, mais adiante no bolo, dava de costas e fingia que não estava ouvindo. “Fala as coisas mas agora perdeu a voz.", prosseguiu a moça. "Vai pra lá pra não ter que pagar imposto e ainda insulta os tunisianos.” 

Eu estava logo atrás dessa moça. Um rapaz tunisiano ao seu lado também se identificou com a queixa, embora não tivesse levantado a voz. “Você ouviu o que ele disse?”, comentou ela com o rapaz. “Ele nem chegou ainda no país e já começou a nos insultar.”.

Retive-me ali no bolo com um sorriso de canto de boca, me apercebendo da tensão reinante ainda presente entre estes países. Ah, Europa, sobretudo a pedante França, ainda tem muito a colher do que plantou.

Voamos.

A Praça 14 de Janeiro de 2011, no centro da capital Túnis. (Antes ela era chamada 7 de Novembro, o dia em que Ben Ali subiu ao poder em 1987.)

O aeroporto de Túnis tinha aquele cheiro de cimento, do tipo de lugar “estamos em obras”, misturado com cigarro. A mudança de Europa para mundo árabe era evidente e gritante apesar da distância tão curta de Mar Mediterrâneo que os separam.


Foi talvez a imigração mais rápida que eu já fiz na vida. O policial árabe recebeu meu passaporte, não disse uma palavra, e em menos de um minuto o devolveu com o carimbo de entrada. Nenhuma pergunta, e não respondeu nem ao meu bonjour (como no Marrocos, só que pra lá vão muitos turistas e por isso a fila pode ser bastante longa.) Aqui na Tunísia poucos turistas aventuram-se hoje em dia.


O visual melhorou significativamente depois da alfândega. Uma decoração árabe glamourosa enfeitava o hall principal do aeroporto, como se estivéssemos num palácio. (Não era nada representativo do que eu veria na Tunísia nos próximos dias.)

Hall principal do aeroporto de Túnis, Tunísia.
A ida do aeroporto para a cidade em países em desenvolvimento é a parte que eu mais detesto. Ao contrário do que ocorre em lugares desenvolvidos, geralmente não há transporte coletivo bom, e você fica nas mãos de táxis caros e/ou enrolões  como no Brasil.

Aqui em Túnis não pague mais que 4 ou 5 dinares tunisianos (uns 7 reais) pela corrida até o centro. É perto e barato, mas eles tentam cobrar o dobro ou o triplo aos turistas. Fui para o andar do embarque, pegar algum taxista que estivesse despejando passageiro, em vez dos treteiros que já ficam ali na botija no andar de chegadas abordando turistas. Eu, apesar da minha cara de árabe, tinha uma mochila enorme nas costas que não negava o que eu era.


Básico nestes países, gente: nunca entre num táxi sem antes negociar o preço. Após um que insistiu em querer me levar no taxímetro (certamente para me fazer um city tour não requisitado pelo caminho mais longo) "pois era a lei" (sim, eu sei o quanto que a lei é respeitada aqui...), eu achei um taxista que topou me levar por 5 dinares. Ele fez um "sim" breve com a cabeça sem dizer nada, aquele olhar suspeito e desconfiado de sequestrador que acabou de concordar em entregar o refém antes de receber a mala de dinheiro. Um pagodão árabe tocava solto no som do carro enquanto trafegávamos as avenidas da nublada e feia Túnis neste final de inverno. Embora sempre imaginem o mundo árabe torridamente quente, aqui não fazia mais que uns 18 graus.


Eu chegava à principal cidade hoje nestas terras que um dia abrigaram a antiga Cartago, depois foram a província Africa Proconsularis do Império Romano, e desde o século VII é terra dos árabes, que levaram a filosofia clássica e as ciências à Europa medieval através da Espanha e Portugal, mas que aqui viriam a ser subjugados mais tarde pelo Império Turco Otomano e, depois, pela França em 1881 até esta província imperial se tornar independente como o país Tunísia em 1956. A desgraça aqui reina e não é sem razão.

Dinheiro tunisiano, em árabe e francês. 1 dinar é aproximadamente 1,50 real.
A Avenida Habib Bouguiba no centro de Túnis, batizada com o nome do líder da independência tunisiana. Esta sinceramente é a única avenida bonita no centro da cidade. As onipresentes bandeiras celebram os 60 anos de independência do país. As barricadas policiais, contudo, são uma constante, limitando o tráfego e o acesso em áreas sensíveis. 
O meu hotel é muito bem localizado, perto do Ministério do Interior, no centro. Cheguei suspeitíssimo com um mochilão nas costas para atravessar a barricada policial que circundava toda a quadra do meu hotel  o táxi pôde me deixar apenas a uma distância dali. A sensação maravilhosa de chamar a atenção das pessoas e dos policiais armados com fuzis que protegiam a área. Senti-me numa zona de guerra. Eles foram corteses, apesar da tensão reinante. Um ar frio e fedido dava o contexto naquele dia nublado no centro da cidade. 

No hotel, passei por um detector de metais que agregaram à porta de entrada. Ele inevitavelmente apitou. Dirigi-me ao balcão da recepção, onde um coroa e um rapaz uniformizados me atenderam  aquele clima e "ânimo" de repartição pública em expediente após o almoço.


Ganhei um drinque de cortesia (obviamente não-alcoólico, já que os muçulmanos em tese não devem beber). Era um "suco" verde-claro num cálice. Em meio àqueles homens sisudos e com caras sérias de poucos amigos, imaginei se aquilo fosse um "boa noite Cinderela”. Eu estaria lascado, inteiramente ao Deus dará. Não foi, mas era um tang de limão horrível com gelo, do tipo que eu dispensaria ou largaria depois de uns goles, mas que tive infelizmente que terminar para não fazer uma desfeita logo na chegada.

Os homens árabes são caracteristicamente volúveis, muito passionais, e passavam facilmente duma cara amarrada a uma explosão de alegria quando viam no meu passaporte que eu era brasileiro. Eu curiosamente ganhava um segundo aperto de mão  se o primeiro havia sido mera formalidade, o segundo era genuíno.


"Eu sei uma palavra em português: peitos", disse-me empolgado o rapaz mais jovem da recepção, com aquela cara malandra de homem adolescente que quer ganhar sua aprovação. Eu sorri. 


Feito o check-in, outro funcionário aproximou-se da minha bagagem e eu recusei, pois não gosto de serviçalismo pra coisas que eu mesmo posso fazer. Mas ele queria era inspecionar a mochila pra ver se não havia bomba. 

Foi todo desculposo, fez questão de pôr o meu mochilão  que vai em bagageiro de ônibus e veio no porão do avião  em cima de uma cadeira antes de olhar. E a olhada foi aquele quase faz de conta, de ver assim por cima, pegar uma coisa ou outra, e pronto, já deu. (Ainda bem, porque se ele me fizesse revirar todas as cuecas e outras peças de roupa ali na recepção do hotel…). 

Terminei o meu "boa noite Cinderela", peguei a minha bagagem e subi no elevador para o quarto. (Sim, tinha elevador. Eu fiquei num hotel de respeito.)

A vista da minha janela para o centro de Túnis. As áreas "modernas" das cidades árabes, quando não são bem feitas (como a parte mais nova de Marrakech), são horríveis. Casas brancas dominam o horizonte, mas estão em geral sujas devido à pobreza, e são despretensiosas, todas quase iguais. E você aí falando mal do Brasil...

A partir daqui é que eu nos dias seguintes visitaria esta capital Túnis.