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Estátua do imperador Pachacúti (1438-1471) na praça principal da cidade de Cusco, a antiga capital inca. |
O mundo estava acabando quando chegamos a Cusco. Ao final das oito horas de viagem de trem no Andean Explorer, a chuva engrossou tremendamente, até virar um daqueles acaba-mundo.
A estação de trem de Cusco é minúscula. Fora da grade, e em todos os arredores após a área restrita para desembarque, motoristas de táxi amontoavam-se irrequietos e gritando famintos em nossa direção tais quais zumbis de The Walking Dead.
Não havia outra opção senão render-se à sua sanha. Tentei, inutilmente, descobrir se haveria um ônibus ou alguma forma de transporte coletivo. Mas, estamos na América Latina, e uma de nossas muitas infelicidades é depender quase que exclusivamente de automóvel para se deslocar. Rendi-me a um taxista. A chuva era tamanha que explorar as ruas no exterior da estação — ainda por cima à noite — estava fora de cogitação. Sempre detesto tomar táxi em cidades que desconheço, pois invariavelmente enrolam, e desta vez não foi diferente.
Nas ruas, corredeiras de água da chuva pareciam transformar-se em verdadeiras torrentes com o volume e a inclinação íngreme das ruas — parecia que derrubariam até as suas pernas, se lhe encontrassem pela frente. Do lado de dentro, o taxista já falava de querer o pagamento antes de parar o carro. Reconheçamos: os táxis no Peru são baratíssimos, coisa de R$ 5 uma corrida. É a insegurança da malandragem que incomoda, e saber que você está nas mãos dele.
Paguei, e ele parou o carro para eu retirar a bagagem que tolamente deixei no porta-malas. Por sorte, não deu nada. Paguei a merreca de 7 soles em vez de 5 (praticamente o mesmo em reais), molhei-me até a alma, e buzinei à porta do albergue dizendo que tinha uma reserva.
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A minha rua, seca no outro dia de manhã, como se nada tivesse acontecido. |
Algum tempo se passou desde que, nos idos de 1200, os incas chegaram aqui "fugidos" de um desastre natural nas margens do Lago Titicaca. Assim conta a origem mítica do Império Inca, que quatro irmãos e quatro irmãos deixaram aquela região após uma hecatombe climática e migraram para cá, para a cidade então chamada de Qusqu. O nome vem de qusqu wanka, ou "Pedra da Coruja", e a cidade já era habitada pelo povo Killke desde o ano 900. Há datação com carbono-14 de muralhas de 1100 aqui, portanto pré-inca. Algumas delas permanecem visitáveis, como a impressionante cidadela de Saksaywaman.
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Aqui ocorreu uma das últimas batalhas entre incas e conquistadores espanhóis. Cronistas da época falam em torres de pedra, terraços abertos para cerimônias e uso militar, e dezenas de amplos salões para estocagem de armas e suprimentos. Saksaywaman caiu em 1536, já após a varíola e o sarampo terem matado grandes números de gente e inclusive o imperador inca. (Caso você queira ler mais sobre descobertas mais recentes acerca das civilizações das Américas, veja aqui.) |
Eram 190 x 167 metros recobertos de areia branca trazida das praias do Pacífico. Diariamente, homens passavam pra lá e pra cá "varrendo" a areia, isto é, ajeitando pra que fique rente e bonitinha. (Caso você ache que esse é um trabalho besta, lembre que no império inca todos tinham uma ocupação, e fique sabendo que eu vi imigrantes indianos fazendo isso no Catar em pleno século XXI. Eu, com a minha cara de pau, perguntei a um deles qual era o propósito daquilo. Ele olhou pra mim sem responder, e voltou a aplainar a areia. Veja aqui.)
Ainda hoje você vê nos arredores da Plaza de Armas de Cusco as bases dos edifícios de pedra, cujos blocos — originalmente unidos sem cimento — são tão juntos que os espanhóis da época diziam que "não entra nem um alfinete".
Hoje, é claro, você vê igrejas e mansões coloniais. À época dos incas, veria veria placas de ouro polido à frente de arcadas de pedra, reluzindo ao sol junto com a areia branca, que juntos deveriam produzir um verdadeiro esplendor de luz. (O ouro, é claro, foi levado pelos espanhóis e hoje decora as igrejas e palácios de época na Europa e nas Américas.)
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Casas no centro de Cusco com as fundações de pedra do tempo dos incas. |
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Em Cusco o que você mais vê são as camadas sobrepostas dos vários períodos de sua história. Este era Qurikancha, o Templo do Sol, sobre o qual foi erguido uma igreja e mosteiro dominicanos. |
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A Plaza de Armas de Cusco hoje. |
Você hoje acha uma abundância imensa é de agências de turismo nessa praça principal. Passeios pelo Vale Sagrado dos Incas, viagens a Machu Picchu, trilhas, etc. Às portas das lojas, nos arredores da praça, você vê várias moças e rapazes devidamente com suas pranchetas e folhetos olhando pra um lado e pro outro à busca de turistas.
Numa dessas, num dia melado e chuvoso, é que eu tomei o city tour. Acho que vale a pena, pois há muito conhecimento cultural e histórico que um bom guia pode lhe passar — do contrário, você irá apenas olhar pedras.
O meu guia foi Gabriel, o senhor dos anéis. Um peruano baixinho de gel no cabelo e uns 5 ou mais anéis nos dedos. Caminhamos com ele pela estátua dourada do imperador Pachacúti, o nono inca e responsável pela edificação de muito de Cusco, na praça principal, e dali fomos ao convento dominicano erigido sobre as bases de construções incas.
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Pátio central do Mosteiro Dominicano em Cusco, erigido sobre o templo inca Qurikancha, ao deus sol. |
Ao contrário do que você provavelmente pensa, no entanto, o deus sol (inti) não é o principal na religião tradicional inca, e sim Viraqocha, deus criador. As concepções, com o tempo e a catequização, foram sendo ajustadas ao deus criador bíblico e às ideias católicas de céu e inferno. Hoje, há uma bela estátua branca do Cristo Redentor numa das colinas de Cusco — chamado popularmente de Cuscovado. (É sério. Eles adoram fazer esse trocadilho especialmente com brasileiros.)
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O Cuscovado lá em cima, naturalmente bem menor que o carioca. |
Foi com Gabriel que eu também fui a Sachsaywaman, após comprar uma charmosa capa plástica de chuva pelo equivalente a dois reais na praça. O meu charme foi registrado por um fotógrafo enquanto caminhávamos pela rua, e posto junto com outras paisagens do Peru para eu comprar. Comprei, é claro.
Dali eu iria, no dia seguinte, àquelas paisagens ali: conhecer o famoso Vale Sagrado dos Incas e, a seguir, a lendária Machu Picchu.
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