sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Em Cusco, a antiga capital inca e o umbigo do mundo

Estátua do imperador Pachacúti (1438-1471) na praça principal da cidade de Cusco, a antiga capital inca.

O mundo estava acabando quando chegamos a Cusco. Ao final das oito horas de viagem de trem no Andean Explorer, a chuva engrossou tremendamente, até virar um daqueles acaba-mundo.

A estação de trem de Cusco é minúscula. Fora da grade, e em todos os arredores após a área restrita para desembarque, motoristas de táxi amontoavam-se irrequietos e gritando famintos em nossa direção tais quais zumbis de The Walking Dead.


Não havia outra opção senão render-se à sua sanha. Tentei, inutilmente, descobrir se haveria um ônibus ou alguma forma de transporte coletivo. Mas, estamos na América Latina, e uma de nossas muitas infelicidades é depender quase que exclusivamente de automóvel para se deslocar. Rendi-me a um taxista. A chuva era tamanha que explorar as ruas no exterior da estação  ainda por cima à noite  estava fora de cogitação. Sempre detesto tomar táxi em cidades que desconheço, pois invariavelmente enrolam, e desta vez não foi diferente.


Nas ruas, corredeiras de água da chuva pareciam transformar-se em verdadeiras torrentes com o volume e a inclinação íngreme das ruas 
 parecia que derrubariam até as suas pernas, se lhe encontrassem pela frente. Do lado de dentro, o taxista já falava de querer o pagamento antes de parar o carro. Reconheçamos: os táxis no Peru são baratíssimos, coisa de R$ 5 uma corrida. É a insegurança da malandragem que incomoda, e saber que você está nas mãos dele.

Paguei, e ele parou o carro para eu retirar a bagagem que tolamente deixei no porta-malas. Por sorte, não deu nada. Paguei a merreca de 7 soles em vez de 5 (praticamente o mesmo em reais), molhei-me até a alma, e buzinei à porta do albergue dizendo que tinha uma reserva.

A minha rua, seca no outro dia de manhã, como se nada tivesse acontecido.
Como você pode ver, Cusco é uma cidade pobre. Não se iluda com as fotos pitorescas que os sites de viagens lhe mostram  há, sim, aquele centrinho histórico bonitinho, mas o grosso da cidade é "popular" dessa forma aí. Cusco hoje é uma cidade de quase meio milhão de habitantes (pobres).

Algum tempo se passou desde que, nos idos de 1200, os incas chegaram aqui "fugidos" de um desastre natural nas margens do Lago Titicaca. Assim conta a origem mítica do Império Inca, que quatro irmãos e quatro irmãos deixaram aquela região após uma hecatombe climática e migraram para cá, para a cidade então chamada de Qusqu. O nome vem de qusqu wanka, ou "Pedra da Coruja", e a cidade já era habitada pelo povo Killke desde o ano 900. Há datação com carbono-14 de muralhas de 1100 aqui, portanto pré-inca. Algumas delas permanecem visitáveis, como a impressionante cidadela de Saksaywaman.

Ruínas de Saksaywaman, cidadela a 3.700m de altitude que os incas tomaram dos Killke no século XIII e construíram por cima. A maioria dessas edificações  inclusive com aquedutos que você vê na foto  são da época inca. 
Aqui ocorreu uma das últimas batalhas entre incas e conquistadores espanhóis. Cronistas da época falam em torres de pedra, terraços abertos para cerimônias e uso militar, e dezenas de amplos salões para estocagem de armas e suprimentos. Saksaywaman caiu em 1536, já após a varíola e o sarampo terem matado grandes números de gente e inclusive o imperador inca. (Caso você queira ler mais sobre descobertas mais recentes acerca das civilizações das Américas, veja aqui.)
Cusco caiu em 1537. Seu coração era a Awkaypata, que na época dos incas era a maior praça do mundo. Depois ela foi renomeada  de modo não muito original  Plaza de Armas, nome que carrega hoje como em outras dezenas de cidades da América Hispânica. E foi reduzida em tamanho porque os espanhóis acharam que aquela praça era grande demais. Hoje a Plaza de Armas tem apenas uma fração do tamanho da Awkaypata original.

Eram 190 x 167 metros recobertos de areia branca trazida das praias do Pacífico. Diariamente, homens passavam pra lá e pra cá "varrendo" a areia, isto é, ajeitando pra que fique rente e bonitinha. (Caso você ache que esse é um trabalho besta, lembre que no império inca todos tinham uma ocupação, e fique sabendo que eu vi imigrantes indianos fazendo isso no Catar em pleno século XXI. Eu, com a minha cara de pau, perguntei a um deles qual era o propósito daquilo. Ele olhou pra mim sem responder, e voltou a aplainar a areia. Veja aqui.)


Ainda hoje você vê nos arredores da Plaza de Armas de Cusco as bases dos edifícios de pedra, cujos blocos  originalmente unidos sem cimento  são tão juntos que os espanhóis da época diziam que "não entra nem um alfinete". 


Hoje, é claro, você vê igrejas e mansões coloniais. À época dos incas, veria veria placas de ouro polido à frente de arcadas de pedra, reluzindo ao sol junto com a areia branca, que juntos deveriam produzir um verdadeiro esplendor de luz. (O ouro, é claro, foi levado pelos espanhóis e hoje decora as igrejas e palácios de época na Europa e nas Américas.) 

Casas no centro de Cusco com as fundações de pedra do tempo dos incas.
Em Cusco o que você mais vê são as camadas sobrepostas dos vários períodos de sua história. Este era Qurikancha, o Templo do Sol, sobre o qual foi erguido uma igreja e mosteiro dominicanos.
A Plaza de Armas de Cusco hoje.
Awkaypata era "o umbigo do mundo", diziam os incas. Era o coração da capital e do mundo tanto no sentido geográfico quanto cosmológico. Daqui saíam 4 estradas, uma para cada uma das 4 regiões do império, e aqui se encontravam também os muitos "fios" de energia (zeq'e) ligando lugares sagrados da região (wak'a), e formando uma teia invisível que tinha esta praça principal de Cusco como o seu centro. (Ver 4 características fundamentais da sociedade inca e de que você provavelmente nunca ouviu falar.)

Você hoje acha uma abundância imensa é de agências de turismo nessa praça principal. Passeios pelo Vale Sagrado dos Incas, viagens a Machu Picchu, trilhas, etc. Às portas das lojas, nos arredores da praça, você vê várias moças e rapazes devidamente com suas pranchetas e folhetos olhando pra um lado e pro outro à busca de turistas.


Numa dessas, num dia melado e chuvoso, é que eu tomei o city tour. Acho que vale a pena, pois há muito conhecimento cultural e histórico que um bom guia pode lhe passar  do contrário, você irá apenas olhar pedras. 


O meu guia foi Gabriel, o senhor dos anéis. Um peruano baixinho de gel no cabelo e uns 5 ou mais anéis nos dedos. Caminhamos com ele pela estátua dourada do imperador Pachacúti, o nono inca e responsável pela edificação de muito de Cusco, na praça principal, e dali fomos ao convento dominicano erigido sobre as bases de construções incas.  

Pátio central do Mosteiro Dominicano em Cusco, erigido sobre o templo inca Qurikancha, ao deus sol.
Edificações do tempo dos incas. Perceba mesmo como ali não passa nem um alfinete entre um bloco e outro. E sem cimento. Os incas construíam em sistema de macho-e-fêmea, ou seja, blocos com pontas e blocos com aberturas, que se encaixavam uns aos outros para dar estabilidade. Deixavam também uma breve folga para que a construção resistisse ao chacoalhar de terremotos. A construção é tão boa que está aí assim conservada até hoje.
Gabriel explicando-nos esse desenho da cosmologia inca feito por um cronista indígena convertido, em 1613, exposto no Templo do Sol. Não vou entrar em detalhes da cosmologia inca porque ela é complexa e eu nem a entendo tão bem assim, inclusive porque ela não divide o cosmos em simples dimensões espaciais paralelas, mas em dimensões de tempo-espaço diferentes. É o conceito de pacha na língua quíchua. A ilustração feita por Joan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui Salcamaygua consta em sua obra Relación de Antiguedades deste Reino del Pirú (1613). (Sim, a ortografia espanhola mudou com o tempo.) 

Ao contrário do que você provavelmente pensa, no entanto, o deus sol (inti) não é o principal na religião tradicional inca, e sim Viraqocha, deus criador. As concepções, com o tempo e a catequização, foram sendo ajustadas ao deus criador bíblico e às ideias católicas de céu e inferno. Hoje, há uma bela estátua branca do Cristo Redentor numa das colinas de Cusco  chamado popularmente de Cuscovado. (É sério. Eles adoram fazer esse trocadilho especialmente com brasileiros.)

O Cuscovado lá em cima, naturalmente bem menor que o carioca.

Foi com Gabriel que eu também fui a Sachsaywaman, após comprar uma charmosa capa plástica de chuva pelo equivalente a dois reais na praça. O meu charme foi registrado por um fotógrafo enquanto caminhávamos pela rua, e posto junto com outras paisagens do Peru para eu comprar. Comprei, é claro.

Dali eu iria, no dia seguinte, àquelas paisagens ali: conhecer o famoso Vale Sagrado dos Incas e, a seguir, a lendária Machu Picchu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário