sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Visitando Tiwanaku e conhecendo os Andes de ANTES dos Incas

Este sítio que você está vendo remonta a antes dos incas. Tiwanaku (ou Tiahuanaco), esta cidade hoje em ruínas, era um importante centro religioso e político nos Andes desde 800 a.C, até aproximadamente 800 d.C. A maioria dos ícones e traços culturais apreciados nos incas e pelos incas séculos depois já estavam presentes aqui, e foram se formando gradualmente (ou seja, os incas tinham história, viu gente! Eles também tiveram outras civilizações que os precederam e de quem aprenderam, como qualquer outro povo).

Tiwanaku era um desses antepassados mais importantes. Às margens do Lago Titicaca no altiplano de 3.800m de altitude que hoje se estende entre a Bolívia e o Peru, entre um braço da Cordilheira dos Andes e outro, há esta área seca e de vegetação rasteira que lhe lembrará o Deserto de Sonora mostrado em Breaking Bad e noutras produções sobre a fronteira entre o México e os Estados Unidos. Você assiste a indivíduos caminhando à beira da estrada sem saber aonde raios se dirigem debaixo daquele sol frio pela altitude e seco.

À época do auge de Tiwanaku, o Lago Titicaca chegava até mais perto daqui e havia agricultura abundante. Hoje, ele está a mais quilômetros e distância e o ambiente sofre crescente desertificação. Eu vim ver o que restou de Tiwanaku e o estado em que se encontra, numa viagem bate-e-volta a partir de La Paz.
Vista da estrada não muito distante de La Paz, no caminho para Tiwanaku.

"Seu nome é tradicional quíchua? [a língua que falavam os incas]", perguntei eu ao nosso guia Vladimir, que pareceu perdido na ironia. Vladimir, apesar do nome, tinha feições indígenas características, como aquelas maçãs salientes de Evo Morales no rosto moreno. Tinha um cabelo preto de Drácula penteado pra cima, e uma cara de permanente insatisfação  não a de aborrecimento, mas aquela de como quem teve que trabalhar o dia inteiro apesar de uma constipação e não conseguia ver graça em nada. De quebra, Vladimir tinha o hábito de falar sem querer ser interrompido por um longo tempo, tipo aqueles professores que dão aula sem atentar se os alunos estão acompanhando ou não. Apesar disso, falava português bem e sabia bastante coisa  embora desse umas viajadas às vezes.

O povo mais antigo de quem se tem notícias aqui foram os Chiripa, cultura que dominou esta região ao sul do Lago Titicaca por volta de 1400 - 850 AC. Eles àquela altura já cultivavam batatas (nativas desta região do mundo) e quínoa, o grão supernutritivo característico dos Andes. Além disso, já faziam centros cerimoniais em formato de amplas praças retangulares, como fariam séculos depois a cultura de Tiwanaku e, mais tarde, os incas.

A seguir aos Chiripas vieram os centros de Tiwanaku e Wari, duas culturas distintas mas que se comunicavam e conviviam. Tiwanaku propriamente dita, essa que estou visitando, era o centro religioso e referencial de uma série de vilarejos que pertenciam a essa cultura. Nas palavras de alguns estudiosos, era uma espécie de Vaticano para onde as pessoas peregrinavam regularmente.

Havia lâmpadas onde o fogo queimava em banha de lhama, em vez de óleo, e os sacerdotes muitas vezes faziam rituais "entorpecidos" por ervas ou suor de rã. Numa descrição de entorpecente mais extremo que já ouvi na vida, Vladirmir contou-nos que aqui os sacerdotes punham certas rãs venenosas para suar num pote de cerâmica com o fogo embaixo, e deixavam que aquele suor cheio de compostos bioquímicos alucinógenos secasse na forma de cristais que depois seriam fumados num cachimbo. Que Breaking Bad que nada, estes cristais daqui é que deviam proporcionar uma viagem alucinante. 

(Em "defesa" dos andinos, caso alguém os veja como loucões, eles  como outros indígenas e povos tradicionais no mundo todo  distinguem o uso ritualístico de uso recreativo dessas ervas e outros recursos entorpecentes. Na visão deles, aqueles psicotrópicos são elementos de expansão da consciência a serem usados com responsabilidade, dentro de um certo contexto cerimonial e espiritual, e não na doida.)

E falando em religião, o Viracocha, representação do deus-criador para as sociedades andinas, já pode ser visto aqui muito antes de os incas o representarem.
Representação do deus-criador andino Viracocha, no alto da Porta do Sol, em Tiwanaku.
A Porta do Sol de Tiwanaku, uma vez quebrada mas reencontrada no século XIX e reconstituída. Diz a lenda que o sol raia exatamente através dessa porta apenas no solstício de inverno, entre 20 e 22 de junho. Só que, a maior parte dos turistas que viram a noite aí na data para assistir ao raiar do sol de manhã não sabe, mas a porta foi mudada de lugar na sua reconstituição para atender a essa interpretação. O significado original da Porta do Sol na verdade permanece desconhecido.  
Na escadaria e portal de entrada à praça cerimonial de Tiwanaku. Estilo muito semelhante ao que você encontrará em Cusco feito mais tarde pelos incas.
Muralhas com aquedutos e aquelas bicas que você vê ali. O estilo chamado de "macho-e-fêmea", de encaixar pedras umas às outras para deixá-las assim tão próximas  a ponto de os conquistadores espanhóis dizerem à época que não cabia sequer um alfinete entre elas  será visto, novamente, nas edificações dos incas.

Mas talvez o que mais chame a atenção sejam as cabeças. A parte central funda que você vê na praça cerimonial da primeira foto tem as suas paredes revestidas de cabeças, todas elas diferentes umas das outras. Não se sabe o significado dessa peculiar forma de decoração, embora muitas hipóteses tenham sido levantadas. De acordo com a explicação formal da UNESCO, representam a exibição que faziam de cabeças cortadas dos inimigos derrotados (Máscara da Morte de Câncer, alguém aí?). 
Cabeças de pedra decorando as paredes do templo, em Tiwanaku.
Vladimir, o guia, nos explicou que uma grande seca deu fim à civilização de Tiwanaku  até aí isso é corroborado por estudos arqueológicos. O Lago Titicaca já foi muito maior que atualmente. Desde a última Era Glacial ele já regrediu várias vezes. Há depósitos de conchas onde hoje só há terra. Não se sabe onde as pessoas dali foram, mas dada a continuação de tantos traços culturais presentes aqui, é evidente que os sobreviventes dispersaram-se pelos Andes. Vladimir, num belo momento de ufanismo boliviano, explicou-nos: "Os sacerdotes fugiram para as montanhas; os nobres foram para o altiplano, e se tornaram os senhores Aymaras [etnia principal do altiplano boliviano]; e os guerreiros foram para o norte, e voltam depois como o império inca". Eis a historiografia de Vladimir, que basicamente identificava a Bolívia como o berço original do poderoso Império Inca.  

(Aqui entre parênteses, ainda me lembro risonho de como eu perguntava a Vladimir sobre souvenirs típicos da Bolívia e ele citava tudo: "O café boliviano, o chocolate boliviano, o queijo boliviano... dizia ele sério olhando para o banco de trás do carro.)

Vladimir foi mais longe, e chegou a dizer  sempre com a cara seríssima  que Tiwanaku teve também contato com Atlântida e com os lemurianos, povo de um suposto continente ancestral que, de acordo com alguns esotéricos e autores de ocultismo, ficava no Oceano Pacífico. (Não era da cabeça só dele, eu depois pesquisei e descobri que há mesmo livros que teorizam essas coisas.) Eu olhava para Vladimir acompanhando a sua explicação histórica até ele de repente começar nessas viagens.  
O chamado Monolito Frade, estimado pelos arqueólogos ter mais de 1.000 anos. Esse nome foi dado pelos primeiros missionários espanhóis do século XVI aqui. 

Além de serem mais antigas, estas ruínas são bastante simples e pequenas se comparadas ao que iremos encontrar no Peru, então recomendo mesmo que você visite a Bolívia antes.

Daqui retornaríamos a La Paz para depois seguir à última cidade boliviana, às margens do Lago Titicaca, antes de cruzá-lo para adentrar o Peru.


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