sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Arequipa e a notável culinária peruana

Calma, não se trata de uma culinária de pombos. Esta é a praça central de Arequipa, sua Plaza de Armas, de arquitetura colonial espanhola. Arequipa é a segunda maior cidade do Peru (após a capital, Lima), e a cidade-natal de Mario Vargas Llosa, um dos Prêmio Nobel de literatura da América do Sul. Arequipa é também a melhor cidade do Peru em termos de gastronomia  os limeños que esperneem o quanto quiserem, mas é verdade.

Passei 3 dias aqui, o que me pareceu suficiente. Cheguei após a tortuosa viagem de ônibus desde Puno (ver Emoções de ônibus no interior do Peru), às margens do Lago Titicaca e da fronteira com a Bolívia (ver O Lago Titicaca e a Copacabana original, na Bolívia).

A culinária peruana, por sua vez, merece uma vida inteira. *Suspiro*. É a culinária mais impressionante da América do Sul (afora o Brasil, na minha humilde opinião). Pimentas, pescados, milhos de mil cores, etc. Comecemos devagarinho, pelo dia em que eu cheguei.
Milho roxo, pra quem achava que milho era de uma cor só. O milho é cultivado há milênios na região dos Andes, e foi daqui e do México que ele se espalhou para o mundo. Há dezenas de tipos e cores, embora no Brasil só conheçamos amarelo e branco. (Se a indústria de alimentos trabalhasse com a biodiversidade e não a pseudo-diversidade  corredores inteiros de supermercado com cereais matinais de "sabores" diferentes que, na verdade, são do mesmo milho de monocultura  teríamos uma alimentação melhor e mais conhecimento das coisas da natureza.)
Cesta com diversos tipos e cores naturais de milho no Peru. E essa é apenas uma pequena amostra.
Arequipa tem um centro histórico cujo coração é a Plaza de Armas, cercada por ruas antigas e que são a parte mais bela da cidade. Como é habitual na América hispânica, o desenho urbano é o das cidades históricas em forma de grade, com quarteirões quase idênticos e ruas que se cruzam — diferente de quando você navega Salvador ou Olinda, por exemplo, cheias de curvas e de ziguezagues. 

Fora daquele centro, são ruas comuns e deveras poluídas pelo tráfego de carros cujos escapamentos parecem ser dos Anos 70. Questões políticas de leniência com a indústria automotiva, alguém me sugeriu. Você também notará a abundância enorme de táxis (parece haver mais táxis que carros particulares na cidade). São baratos, mas há sempre aquele risco de enrolação, ainda mais num lugar como o Peru e turístico. Sugiro, portanto, hospedar-se no centro a uma distância que dê pra ir a pé à Plaza de Armas, que é onde tudo acontece.
A Basílica Catedral de Arequipa (1656), na Plaza de Armas.
Moças atravessando a rua aos jardins da praça. Agradabilíssima praça, segura, tranquila, muito arborizada, e agradável. Muito superior ao péssimo padrão de praças no Brasil, em geral inexistentes ou abandonadas. 
Fachada da Igreja da Companhia de Jesus ao entardecer em Arequipa. Tudo nos arredores da praça central.

Sabe quando você viaja, passa alguns dias numa cidade e elege o seu restaurante favorito ao qual fica voltando? Em Arequipa, isso não é necessário. São tantos os bons restaurantes que o que você lamenta não é não ter visto mais da cidade, mas não ter comido mais da cidade, não ter tido mais jantares em Arequipa.

A minha vivência gastronômica na cidade foi ascendente. Não começou muito bem. 

Iniciei, na primeira manhã  empolgadíssimo pra experimentar de tudo típico  com uma chicha morada de lanchonete em forma de smoothie (suco batido com gelo). A chicha é um refresco feito com aquele milho roxo mostrado acima, misturado a abacaxi e/ou limão para dar sabor. Todo site de divulgação automaticamente dirá que é "delicioso". Mentira. Se você já tomou suco grosso de milho verde (com gosto de milho) no Brasil, se decepcionará, pois a chicha é uma garapa rala e você nem sente gosto nenhum de milho, só um breve azedinho do limão ou abacaxi. Não é ruim, mas não espere se encantar.

(Tomei uma decente num restaurante uma vez, mas a da lanchonete em formato de smoothie foi artificialíssima, com gosto de refresco de rodoviária feito de pó.)
Meu smoothie de chicha morada em Arequipa. Lindo, não é? Mas só tinha cor. O gosto era quase de Tang Uva batido com gelo. Lembro-me de ter corrido urgentemente atrás de uma outra coisa pra trocar o gosto na boca.
Esta chicha morada foi num restaurante fino. Legal, mas, apesar da cor forte, o gosto não é. É uma garapa simples, não espere uma iguaria. 

No mesmo almoço em que tomei essa chicha morada fui apresentado ao ceviche, outro prato que é assinatura da culinária peruana. O ceviche é tradicionalmente consumido no almoço, não no jantar, pois se trata de peixe fresco, num caldo de limão, cebolas cortadas e pimentão ou pimentas. Em geral, é acompanhado de outros alimentos peruanos: a batata doce e grãos de milho amarelo-claro que aqui nos Andes é chamado de choclo.

Só tem um detalhe: o peixe vem cru. Parece óbvio pra quem já conhece o prato, mas não é. A suposição razoável mais básica num restaurante é que a comida virá cozida. Quando chegou o ceviche à mesa, minha mãe  sempre muito tranquila e serena em situações como essa  deu um revertério.

 "O peixe está cru?!", perguntou ela, chocada.
 "Si, señora, el pes en el ceviche es crudo."
 "Mas não estava especificado no cardápio que o peixe vem cru.", intervim eu.
 "Pero todos conocen el ceviche, señor."
 "Lamento dizer, mas não. Vocês têm cardápio em inglês. Claramente servem a estrangeiros. Tudo o que lhes custaria seria uma palavra entre parênteses, 'cru', especificando, e evitariam esse tipo de coisa."

Minha mãe, da cor da pimenta, já estava dizendo que levassem embora. (É ótimo ver senhoras fazendo essas coisas que gente jovem teria mais dificuldade de fazer.) 
 "Se le gustaría, lo cocinamos más, señora.
 '"Mais" não, porque está completamente cru. Eu só como peixe cozido.'

Levaram embora pra cozinhar. Vinte minutos depois, retorna o peixe tão cru quanto estava antes. O prato voltou igual.
 "Isso não está cozido", declarou ela estupefata. "Eu sei cozinhar peixe!", acrescentou, adicionando pimenta ao quiprocó.
 "Es que es cozido en el limón, señora, y no con el fuego"

Por mais solidariedade que eu tivesse com o garçom, isso é de chamar peixe cru marinado no limão de "cozido" é um chuncho sem tamanho.    

Minha mãe devolveu o peixe e pediu outra coisa, confirmando se desta vez a comida viria cozida. Eu comi o ceviche  e muitas outras vezes desde então. Não é dos meus pratos favoritos  você sente, basicamente, o gosto do limão. Tem mesmo gosto de peixe cru marinado. Mas, às vezes, cai bem. Só saibam o que estão pedindo. 
O fatídico ceviche.
A partir daí a coisa começou a melhorar. Experimentaríamos Papa à la Huancaína, batatas com molho de pimenta huancaína, uma pimenta alaranjada saborosa; o Chupe de Camarones característico de Arequipa, um prato de camarões no caldo cremoso apimentado; "torta" de quínoa, o grãos mais típico dos Andes; e muito mais. 

Como vocês já devem ter se dado conta, a culinária peruana é apimentada. Do mesmo jeito que temos as churrascarias e pizzarias, aqui há as Picanterías, especializadas em deliciosos pratos picantes.  Embora eu seja da Bahia, conheça bem o México, a Tailândia, e tenha morado na Indonésia e na Índia, terras onde a comida já começa apimentada desde o café da manhã, foi do Peru a pimenta mais violenta que já experimentei: Rocoto. Tem o inocente aspecto de um pimentãozinho vermelho gordinho, mas faz você cuspir fogo como um dragão. 

(Pra quem não sabe, todas as batatas e pimentas coloridas, assim como também os pimentões e os tomates, são nativos das Américas e eram desconhecidos do Velho Mundo. Em termos de pimentas, na África, Ásia e Europa eles só conheciam variedades de pimenta do reino, que são grãos nativos do sul da Índia).
Papa à là huancaína, batata num molho bem condimentado e picante. 
Torta de quínoa, uma entrada fria mas saborosa.
Chupe de camarones, um prato de camarões no molho cremoso picante, com pedaços de batatas e de um sabugo de milho dentro. De-li-ci-o-so. É típico de Arequipa.

Já no reino dos doces, você achará bastante sobremesa com leite e ovos. O tres leches, por exemplo, é muito comum aqui. Há a torta  um bolo simples, com uma parte molhada de leite condensado embaixo e uma cobertura de creme de leite em cima  e umas variedades que lembram uma mistura de bolo com pudim, todas ótimas. Mas esse eu comi tão rápido que nem tirei foto. Vai uma da internet. 

E o mais típico de Arequipa, que é o queso helado. Calma, não é queijo com açúcar. A ideia do nome é só porque se faz com a parte gorda do leite, como se fosse pra fazer queijo. Na prática, é um sorvete de creme daqueles bem amarelos e com gosto mesmo de creme. Delicioso. Às vezes ainda jogam uma canela por cima.
Torta tres leches.
O queso helado que comi num restaurante. Você acha facilmente na rua também. 
Vendedora de queso helado em Arequipa.
Mas, pra não dizer que eu não falei das flores, visite também o Monasterio de Santa Catalina de Siena em Arequipa. O nome é em homenagem à Santa Catarina que viveu em Siena, na Itália.

O lugar é lindo, com jardins, fontes, e caminhos em espaços azuis, vermelhos ou branco. É tão lindo quanto é horrorosa a ideia de imaginar ali centenas de mulheres trancafiadas e isoladas do mundo, quase sempre por imposição da família, além de meninas regularmente ameaçadas e impotentes diante de seus pais ("Ou se casa com fulano, ou vai para o convento!"). 

Inaugurou-se em 1579, e em seu apogeu juntou quase 500 ocupantes, entre monjas e donzelas serventes. Hoje ainda há pouco mais de uma dúzia, reclusas numa parte não visitável do mosteiro. A maior parte é acessível  e labiríntica. 
Monasterio de Santa Catalina. 
Corredores extensos, como numa verdadeira cidadela.
Branco.
Azul. Por toda parte, muitas flores e arquitetura de estilo mudéjar, que é o que comumente se chama de "colonial" espanhol ou português, e que consiste largamente no uso de elementos árabes  como esse pátios  com adições cristãs aqui e ali. 

Venha a Arequipa e delicie-se, com a língua e com os olhos.


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