quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ao Oráculo de Delfos

Qual a probabilidade de você estar no interior da Grécia, procurando o Oráculo de Delfos, e se deparar com uma mercearia com adesivo de campanha de Lula e alguém de Piripiri, do interior do Piauí?

Pois bem. Era uma bela manhã de sábado quando íamos eu e Krystallenia de carro pela estrada, adentrando a Grécia. Café gelado no copo plástico dela, daqueles de milkshake do Bob's, e eu só apreciando a paisagem: terra seca e montanhosa, com plantações de oliveiras aqui e ali. Destino: as ruínas do antigo Oráculo de Delfos, que fez profecias a muitos na Antiguidade, de Nero a Sócrates, à beira do Monte Parnaso.
Paisagem árida e montanhosa do interior da Grécia.

São algumas horas de Atenas, que fica no litoral. À beira da estrada, várias igrejinhas em miniatura estilo caixa do correio, que os gregos colocam em memória a algum amigo ou familiar que tenha morrido ali naquele ponto da estrada (meio agourento, depois que você entende). Paramos pra almoçar em Aráhova, uma cidade bem bonitinha em meio às montanhas.
Ruelas em Aráhova.
Vista de Aráhova, cidadezinha nas montanhas.
Escadaria em Aráhova. O sobe e desce são parte constante do estar na Grécia.

Foi aí que eu almocei o meu prato de hilópita com flor de abobrinha. Hilópita é o nome que os gregos dão àquele macarrão-parafuso, que eles comem muito; e a flor de abobrinha eles usam pra embrulhar legumes, arroz, e às vezes carne moída. A flor não tem muito gosto, mas ajuda a fazer uns embrulhadinhos que eles passam no azeite.

É depois do almoço, fazendo a digestão, que eu me deparo com adesivo de Lula, estrela do PT e essa coisa toda. Pensei até que fosse a flor de abobrinha me dando barato. Saca só.
Adesivos de campanha de Lula numa mercearia em Aráhova, no interior da Grécia. (A propósito, camisa comprada com o Seu Nikolai).

Entrei na loja pra saber qual era a daquilo ali. Lá dentro um tzio grego, desses já de cabelo branco com a camisa de botão aberta até a metade do peito, sentado com aquela cara de cansado da vida. Vejo mais coisa, foto de Pelé e tal. Aponto pra mim mesmo: "Brasil", já que eu não falava grego e nem ele, provavelmente, inglês. Ele acorda logo, fala qualquer coisa em grego, pega o telefone, e diz algo a Krystallenia.

 Ele tá dizendo pra a gente subir pra ir tomar um café lá em cima.
 ? Opa!

Já fui subindo, e acabou que a esposa dele é de Piripiri, interior do Piauí. Ela já uma senhora de seus 50 anos, morando lá há 20. As filhas do casal, Ephistasía (vulgo "Êphi"; e a outra eu esqueci), nos receberam e sentamos toos pra papear com café passado no pano e leite Ninho. A tia na verdade desceu o cacete nos gregos. "Tudo preguiçoso. Dá meio-dia e o fulano na repartição já está olhando pro relógio pra ver se ainda te atende. Daí só reabre 3h da tarde porque tem a siesta. E ficam reclamando. Lá no Brasil quando a coisa aperta a gente pelo menos se vira, dá um jeito; aqui eles ficam naquele marasmo". As opiniões divergem, mas é uma visão comum da Grécia (e dos outros países mediterrâneos) também nos países do norte da Europa.

Perguntei da semelhança entre os gregos e brasileiros, do calor humano e tal. "É verdade, mas os homens aqui só pensam em dinheiro. Lá a gente se diverte com o que tem, vai prum forró, arrasta-pé... Aqui fica tudo preocupado com dinheiro, com o fim do mês, em ganhar mais." Claro que não dá pra levar a opinião da tia como veredito final, mas serve pra dar uma perspectiva.

E falando em "veredito", vamos à razão da viagem: era chegada a hora de seguir ao Oráculo de Delfos. Pra quem não conhece, durante aproximadamente 1000 anos (ca 700 AC - 389 DC) havia um templo de Apolo nesta região, com uma chama que nunca se deixava apagar, e onde gente de todo o mundo greco-romano vinha ouvir palavras de sabedoria ou alguma profecia do seu futuro. A coisa é impressionante. A pítia, uma sacerdotisa na função de oráculo, falava sobre sua vida e seu futuro. Havia todo o preparo de iniciação; e, morrendo uma pítia, se selecionava outra dentre as aspirantes, exigindo-se delas que tivessem uma vida sóbria e bom caráter.

A lista de consulentes, entre os milhares, inclui nomes modestos como os de Sócrates, Nero, Cícero, e Alexandre o Grande.
Quadro Sacerdotisa de Delphi (1894) do pintor inglês John Collier, atualmente numa galeria de arte em Adelaide, na Austrália. O quadro ilustra como era a sacerdotisa, embora os vapores do chão sejam algo disputado entre os estudiosos. Alguns sugerem indícios de que podia haver gases subterrâneos induzindo um transe. Outros contestam, dizendo que não há evidências arqueológicas disso no chão, e citando fontes bibliográficas da Antiguidade que sugerem que não havia transe algum, e que a sacerdotisa falava lúcida.

A peregrinação começava com a ida até Delfos (ou Delphi em grego), uma área montanhosa perto do Monte Parnaso, onde segundo a mitologia viviam o deus Apolo e as musas.
Região do Santuário de Delfos, Grécia.
Templo lateral semi-restaurado no Santuário de Delfos. Nas colunas é possível ver as partes novas, mais claras.
Ruínas do templo principal de Apolo em Delfos. Era aí que os peregrinos, após serem recebidos e preparados pelos assistentes do templo, eram apresentados à sacerdotisa, trazendo-lhe ramos de louro como oferenda.

As primeiras menções ao Oráculo são do século VIII antes de Cristo. Entre as muitas previsões, há algumas bem notáveis.

Em 440 AC Sócrates tinha seus 30 anos e foi lá. Não tinha nenhuma fama de filósofo ainda. Em Delfos é que ele aprendeu a máxima "Conhece-te a ti mesmo", que ficava escrita na entrada do templo (junto com "Nada em excesso"). A pítia disse a Sócrates que no mundo não havia ninguém mais sábio que ele, ao que ele respondeu dizendo que "então todos são ignorantes", e que a única diferença é que ele pelo menos estava ciente da ignorância dele.

Já no século seguinte, Felipe II da Macedônia, o pai de Alexandre o Grande, também iria visitar o Oráculo. Ouviu que aquele que montasse o seu corcel negro (um enorme cavalo negro que Felipe II tinha e que ninguém, nem ele mesmo, montava) conquistaria o mundo. Não deu outra: só Alexandre conseguiu montar o enorme cavalo, que recebeu o nome de Bucéfalo (Bous + cephalos = "cabeça de boi", pelo tamanho), e que ele levou consigo por sua campanha na Ásia. Bucéfalo é um dos animais mais bem documentados da antiguidade, e há até uma tumba onde ele morreu, lá no atual Paquistão.

Há uma engraçada de Nero, que, já imperador de Roma, foi ao Oráculo no ano 67 DC, e foi expulso pela pítia. "Tua presença aqui ultraja o deus que viestes procurar. Vai embora, matricida! O número 73 marcará a hora da tua queda!". Nero, de fato, havia matado a mãe alguns anos antes. Sentindo-se ofendido, mandou queimar a sacertodisa viva. Achou que ia reinar muito, até os 73 anos de idade, mas interpretou errado: morreu no ano seguinte assassinado por Galba, que tinha 73 anos, e que tomou-lhe o trono.

E há muitas outras. O nome "Pitágoras", por exemplo, vem de Pítia + Ágoras ("fala"), pois diz-se que a sacerdotisa anunciou à mãe dele que o seu filho seria um homem de grande sabedoria e benefício à humanidade. A Cícero, credita-se que ela tenha dito "Faça da sua própria natureza, e não dos conselhos dos outros, a guia da sua vida", muito antes de ele se tornar notável pela sua oratória. E durou até o ano 389, quando o imperador Teodósio ordenou o fechamento de todos os templos não-cristãos. Pra quem lê inglês, pode ver mais procurando por "List of Oracular Statements" na Wikipedia.

Nos dias de hoje, diria-se que essa sacerdotisa de Apolo era uma espécie de médium espiritual, como ocorre em muitas culturas (os pretos-velhos africanos, os pajés ou xamãs indígenas, os profetas bíblicos, ou o próprio Maomé recebendo revelações na montanha). A própria palavra "profeta", do grego, significa "aquele que fala por outro".

Acreditai no que quiserdes, mas fazeis bem em não julgar sem conhecer. Já advertiu Sócrates: "a verdadeira sabedoria vem a cada um de nós quando nos damos conta de o quão pouco nós entendemos a vida, nós mesmos, e o mundo ao nosso redor". 2400 anos depois, a reflexão continua atual.
Anfiteatro no Santuário de Delfos, Grécia.

Próxima parada: Ilhas gregas! Hora de singrar os mares.

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