sexta-feira, 18 de março de 2016

Córdoba (Espanha), sua catedral-mesquita e a linda herança moura de Al-Andalus

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Córdoba, sua catedral-mesquita e a linda herança moura de Al-Andalus

Jardim de laranjeiras da Catedral-Mesquita de Córdoba, Espanha.

"A catedral-mesquita por si só já faz valer a pena visitar Córdoba", disse-me certa vez uma amiga italiana. À época achei ligeiramente exagerado, até visitar. 

Catedral-Mesquita de Córdoba recentemente foi objeto de uma disputa entre o município e a Igreja Católica romana. A Igreja Católica perdeu. O município alegou que a catedral-mesquita não tem dono, é patrimônio da humanidade como reconhece a UNESCO. É muito mais do que um templo, é um pedaço de história de mais de mil anos diante dos seus olhos.

Córdoba era talvez o mais importante centro cultural e econômico da Europa por volta do ano 1000. Sob domínio árabe durante mais de meio milênio entre 711 a 1236, ela foi um epicentro de Al-Andalus, como se chamava a Ibéria naquele tempo. 

Você não ouve falar dessa glória porque o nosso ensino de História, repetindo como papagaio o europeu, é eurocêntrico e enviesado a favor de brancos e de cristãos, com rótulos bobos como "idade das trevas" e à inteira revelia dos grandes avanços intelectuais e tecnológicos que as demais civilizações produziam nesse período enquanto a a Europa estava mergulhada na pobreza.  

Mas muito daquele legado restou, e você pode conferir.
Deliciosas e bem cuidadas ruas da medina de Córdoba, seu centro histórico medieval.
Por volta do ano 1000. Entre os anos 756 e 1031 Córdoba (Qurtuba) foi o centro de um emirado e, depois, califado ibérico. Enquanto "emir" quer dizer príncipe ou rei e podem existir vários, "califa" é um título maior, como que o representante maior do Islã no mundo.  

Eu fui para passar um dia a partir de Málaga, outra cidade importante deste sul espanhol. Menos de 1:30h de trem as separam. Da estação, é fácil seguir a pé até o meião histórico de Córdoba, onde você começará a perder-se por aquelas ruelinhas brancas.

Não se engane: Córdoba hoje é uma cidade grande, com ruas largas, belas praças, muita gente, centros de compra, etc.  não espere visitar um vilarejo miúdo. Por toda ela, contudo, você verá as belas laranjeiras que os árabes trouxeram pra cá. 
Numa manhã fagueira debaixo dos laranjais da parte moderna de Córdoba.
Mas não perca muito tempo na parte moderna de Córdoba. Adentre logo por aquelas ruelinhas ali que te esperam.
O desenho da Córdoba medieval.
Nas ruelas da medieval medina é fácil se perder, mesmo com um mapa. Mas isso é parte da diversão. Tudo está muito bem conservado, e na maior parte do ano você verá lindos arranjos de flores decorando as janelas das casas aqui e ali.

Conforme adentra mais pra perto da Catedral-Mesquita (seu coração), as ruelas ficam mais badaladas com lojas, cafés, museus e restaurantes. É um bom sinal de que você está chegando perto.

Foi numa dessas que encontramos o Museu Casa Andaluz, uma casa antiga (do século XII) mantida toda em estilo árabe andaluz. É um espetáculo.
Briga entre donos de restaurantes vizinhos, um dizendo que o outro pôs mesas onde não devia. Rolou fita métrica, bate-boca, e só faltou nome de mãe e mão na cara.
Pátio de casa Andaluz do século XII.
Decoração.
Fonte d'água de estilo árabe, cujo estilo pode ser encontrado hoje pela Espanha, Portugal, e até pela América Latina.
Na varanda.
O chão. Estas são as mães das chamadas "pedras portuguesas" usadas para calçamento.
Já este senhor aí do busto merece um comentário mais adequado. Este proeminente filho de Córdoba entrou para a História como O Comentador, e também como pai do secularismo  desobrigação diante da religião, e sua separação do Estado  na Europa Ocidental. Ironicamente para nós estereotipadores de hoje, essa figura foi um árabe: Ibn Rushd, chamado de "Averroes" pelos falantes de latim.

Ibn Rushd (1126-1198 d.c.) resgatou Platão e Aristóteles ao mundo europeu ocidental, onde haviam sido esquecidos desde a queda de Roma. Além de produzir compêndios de física, astronomia e medicina, Ibn Rushd foi também quem deu a base filosófica de São Tomás de Aquino (1225-1274 d.c.) na discussão conjunta de filosofia e religião. 

Enquanto teólogos (islâmicos) mais dogmáticos diziam que a folha caiu porque Deus assim quis, Ibn Rushd argumentava que a folha caiu em seguimento às leis naturais que Deus criou. Não via qualquer incompatibilidade entre islã e ciência, mas criticava as posturas simplistas dos teólogos, preferindo a investigação filosófica e científica.

A Summa Theologica de Tomás de Aquino um século depois diria quase a mesma coisa aos dogmáticos cristãos, dando início à tradição escolástica e às primeiras universidades da Europa. Estas foram um desdobramento histórico das escolas medievais islâmicas de ciência e filosofia, mas a soberba Europa cristã sempre teve muita dificuldade em admitir suas heranças árabes. (No Brasil, estudei filosofia na UFMG e ouvi falarem de Aristóteles e São Tomás de Aquino sem qualquer menção substancial ao trabalho de Ibn Rushd.) 
Ibn Rushd (Averroes), filósofo cordobês do século XII. Comentador de Aristóteles, responsável por dar continuidade à filosofia da Antiga Grécia na Europa Ocidental, foi o percursor da teologia de São Tomás de Aquino.

Saindo dali, era hora de lanchar algo, e de comer uma bela tortilla de patatas, onipresente por todas as bodegas espanholas dignas do nome. Trata-se de um dos pratos mais comuns na Espanha: uma "torta" de batata em pedacinhos com ovo, cebola e manteiga. Simples, mas bem feita pode ser deliciosa. Eles aqui na Espanha a comem até dentro do pão. (Não se surpreenda ao ver vendendo "sanduíche de tortilla de patatas".)
Comendo tortillas de patatas na Espanha.
Aí por essa porta fica um agradável pátio com chão de pedra, estilo praça de alimentação, mas carregado de estilo. Bom lugar para comer. Há várias opções, banheiro público, e às vezes até música ao vivo.

Finalmente, vamos à Catedral-Mesquita. Basta seguir os fluxos maiores de pessoas e saberá onde ela se encontra (ver nem sempre é possível nestas ruas estreitas). 

Há primeiro uma ampla muralha externa, com jardins de laranjeiras, e depois o prédio propriamente dito onde o emir Abd al-Rahman I em 784 resolveu construir uma mesquita. Ela a seguir passaria por contínuas expansões nas mãos de seus descendentes. A dimensão atual que você vê foi completada em 987. 

Há um espantosamente amplo interior com uma floresta de quase mil colunas de mármore, ônix e granito. Por cima delas, arcadas em vermelho e branco dão o tom. O sentimento no lugar é quieto e sereno, com uma breve sensação de que você está sozinho em algum lugar secreto.
Torre de entrada ao perímetro da Catedral-Mesquita. (As figuras católicas foram, naturalmente, pintadas apenas após a conquista de Córdoba pelos cristãos em 1236.)
Vista para os jardins e, mais adiante, a Catedral-Mesquita no interior.
A floresta de colunas de pedra no interior da Catedral-Mesquita.
Há outras pessoas, mas há uma perene sensação de tranquilo aconchego e solidão no lugar. Como se a qualquer momento aquelas outras pessoas pudessem de repente desaparecer por detrás das colunas e revelar que você, na verdade, estava sozinho ali. 
As formas repetidas fazem às vezes você sentir-se numa casa de espelhos, mas sem reflexos. 
Até que, navegando por aquele vasto interior, você encontra alguns elementos diferentes, como esta série de magníficos arcos.
Mesmo após a queda de Córdoba para monarcas católicos em 1236, a mesquita não foi derrubada. Adicionaram, no entanto, uma série de capelas  e no século XVI até uma catedral inteira foi construída em seu interior, mas a mesquita é tão grande que você nem percebe até chegar ao seu centro. Daí o nome de Catedral-Mesquita.    

Carlos V, neto de Isabel de Castella e Fernando de Aragão e imperador que ordenou o trabalho de construção da catedral, depois se arrependeu. "Vocês desmancharam algo único no mundo pra fazer algo que se encontra em qualquer cidade", teria comentado. 

Talvez ele tivesse razão, mas também acho que foi um pouco caprichoso depois. A catedral que fizeram no interior é também digna de admiração (e, a esta altura, não deixa de ilustrar essa mistura de cristandade e islã no passado espanhol). 
Isto tudo fica no meio da mesquita.
Você caminha até o centro e, de repente, ta-da! Eis uma nave de igreja bem ali.
Há assentos e tudo o mais no interior.
Além de belíssimas esculturas em madeira negra.
Permita-se um tempo razoável lá dentro de toda a estrutura para sentir o lugar. Dentro daquele imenso espaço há uma série de cantos e recantos a serem apreciados.

Quando saí, já era final da tarde. O sol bem amarelo caía sobre as muralhas e chão de pedra ali dos arredores. 

Caso você estivesse procurando por aquele rio e aquela ponte presentes no mapa medieval de Córdoba que pus acima, saiba que eles continuam aqui. E lindos. Ficam atrás da Catedral-Mesquita. A ponte data dos tempos romanos, embora obviamente sofrendo alterações e reformas ao longo dos séculos.
Ponte de pedra sobre o Rio Guadalquivir em Córdoba.
Portal romano remanescente, com a cúpula da Catedral-Mesquita ali atrás.

Era hora de partir. Ziguezagueei perdidamente de volta pelas ruelas da medina, parando aqui e ali para apreciar praças aprazíveis e para comer um doce quando me foi sugerido. As pracetas são ótimas, mas o doce  um bombom de amendoim que dizem ser mui típico daqui  eu achei esfarelento e meio sem graça. 
O doce sem graça. Parecia uma paçoca seca.
As agradáveis pracetas.
Quando a noite caiu, eu já estava de volta à cidade moderna. Acontecia de ser Black Friday, e as lojas estavam em frenesi. Entrei nos formigueiros que estavam as lojas e ainda descolei sapato novo antes de voltar a Málaga. Verão nas minhas fotos em Granada, minha próxima parada.

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