sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Santiago do Chile: Comes & bebes, poesia, política e os bairros boêmios

(Continuação de Santiago do Chile: Cerros, charme, tango e "café con piernas")

Na cozinha do albergue, a senhora que parecia ser mãe de um dos rapazes que administravam o lugar nos servia um café da manhã de frutas frescas, pão, manteiga, (nes)café, e ovos mexidos, que em espanhol recebem a curiosa alcunha de huevos revueltos. Tomei café com a minha mãe, que me acompanhou nesta viagem, e um par de canadenses e australianos que me apresentaram a horrível vegemite, uma pasta salgada que lá na Austrália eles passam no pão. Fiquei com os meus ovos revoltos.

Verdade seja dita, a culinária chilena não me deixou lá grandes impressões. Há um certo foco em frutos do mar (compreensivelmente para um país rente à costa como o Chile), mas nada muito especial ou que lhe chame muito a atenção. Há peixe ao molho, como se acha em qualquer hotel mundo afora, sopa de ostras, essas coisas.

O que você não pode sair sem experimentar é o mote con huesillos, que você encontra facilmente em qualquer lugar da rua. Minha mãe sintetizou a mistura como: um copo de chá mate, milho de lata, e metades de pêssegos em calda, tudo misturado. Na real, são grãos de trigo, e não há chá mate, mas sim um caldo doce com canela  mas o gosto é mesmo de Chá Mate Leão, daquele que você compra já no copo pra beber.  
Gosto de chá mate com milho de lata e pêssegos em calda. É gostoso, mas se você tomar demais enjoa.
Vendedor de mote con huesillos na rua. São tão onipresentes nas ruas daqui quanto pipoqueiro no Brasil.

Uma outra tradição chilena são as empanadas, mas você terá que saber onde comprá-las. Não caia na besteira de achar que todas são boas. É igual pastel no Brasil, só que as empanadas têm mais massa, e muitas vezes não são fritas, mas sim assadas. Comi uma que tinha gosto de nada, e textura de sola de sapato. Mas há outras boas. Os recheios são diversos. 
A minha primeira empanada no Chile. Não tinha gosto de nada, só massa, mas depois achei umas que não eram más. Não deixei propina (gorjeta em espanhol) para o tio.

Mas eu falei que agora iríamos aos bairros boêmios. Estamos falando sobretudo de Lastarria e Bellavista. Santiago, em geral, tem ruas bastante agradáveis, como sugeri no post anterior. Mas se o centro for muito movimentado ou comercial para o seu gosto, ou se você preferir um clima mais jovem, bonito, de barzinhos e vida noturna, é cá pra esses bairros que deve vir. Só tive foi, como noutras partes do Chile, dificuldade em pagar com cartão de crédito estrangeiro, então é melhor se preparar para usar dinheiro em espécie.

Lastarria me pareceu um bairro mais posh, alta classe, elegante com luxo, aonde vão os que têm dinheiro. Bellavista é mais descolado e estudantil. No entanto, ambos são bonitos e agradáveis para passear. É também onde você pode encontrar bons restaurantes.

Tomamos em Lastarria um pisco sour, o característico coquetel do Chile e do Peru feito com pisco (um destilado transparente de uva, sem sabor da fruta), suco de limão e claras de ovo batidas. Não gostei muito da ideia de beber clara de ovo, mas no fim das contas o drink é saboroso. (Dizem que no Peru eles usam mais claras, mas sobre o Peru falaremos depois). 

Já para chegar a Bellavista é necessário cruzar o Rio Mapocho, que se outrora fez Pedro de Valdivia considerar este um bom lugar para fundar Santiago em 1541, hoje não passa infelizmente de um córrego barrento e tristemente degradado.

Atravesse-o e do outro lado estará na fuzarca estudantil de Bellavista, com a Universidad Católica ali perto e bares e restaurantes por toda parte. 
O charmoso bairro Lastarria.
O pisco sour. Saboroso! 
Para chegar a Bellavista é preciso cruzar o Rio Mapucho, hoje neste estado tão deplorável. Cabe até gente acampando no que costumava ser o leito do rio.  
Bellavista. 
Este é o agradável Pátio Bellavista, pra brasileiro que gosta de shopping.
Toparia? Eu acho engraçado é que inclui coca light.
Ruas em Bellavista.
Grande atmosfera jovem estudantil em muitas ruas.
Numa dessas sentamos-nos e, apesar de não ser conhecedor (ou grande fã) de vinhos, decidi gastar uma nota num Casillero del Diablo, vinho chileno mundialmente conhecido. Mais por gaiatice que qualquer outra coisa. Já esses pasteizinhos eram a entrada do jantar.  
Minha janta: um peixe grelhado com molho, legumes e arroz. Como eu disse, a comida aqui pode ser boa, mas sem uma personalidade muito característica. Já a minha mãe pediu uma sopa de ostras de que se arrependeu. 
Sopa de ostras.
Em Bellavista também fica uma das muitas casas do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1971. Ele tinha o hábito de dar nome às suas casas: La Chascona ("a de cabelos embaraçados", devido à esposa que morava com ele aqui em Bellavista), La Sebastiana (na cidade costeira de Valparaíso, próxima de Santiago), e Isla Negra, na ilha homônima na costa chilena. Esta última era a maior, enquanto que as outras eram pousios menores, que ele próprio construiu ao seu gosto.

"Pablo Neruda" era o pseudônimo de Neftalí Reyes, e que ele depois adotou como o seu nome legal. A inspiração foi um escrito checo, Jan Neruda, de quem gostava. (Não sei de onde veio o "Pablo"). Gabriel García Márquez dizia que Pablo Neruda foi o maior poeta do século XX em qualquer idioma.

Era um romântico ("Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras", dizia), e como outros românticos antes dele, passou depois a uma fase social, questionadora. 

"Quero apenas cinco coisas.. 
Primeiro é o amor sem fim 

A segunda é ver o outono 

A terceira é o grave inverno 
Em quarto lugar o verão 
A quinta coisa são teus olhos 
Não quero dormir sem teus olhos. 
Não quero ser... sem que me olhes. 
Abro mão da primavera para que continues me olhando."
 Pablo Neruda

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"É Proibido



É proibido chorar sem aprender, 
Levantar-se um dia sem saber o que fazer 
Ter medo de suas lembranças. 

É proibido não rir dos problemas 
Não lutar pelo que se quer, 
Abandonar tudo por medo, 

Não transformar sonhos em realidade. 
É proibido não demonstrar amor 
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor. 

É proibido deixar os amigos 
Não tentar compreender o que viveram juntos 
Chamá-los somente quando necessita deles. 

É proibido não ser você mesmo diante das pessoas, 
Fingir que elas não te importam, 
Ser gentil só para que se lembrem de você, 
Esquecer aqueles que gostam de você. 

É proibido não fazer as coisas por si mesmo, 
Não crer em Deus e fazer seu destino, 
Ter medo da vida e de seus compromissos, 
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro. 

É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar, 
Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se desencontraram, 
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente. 


É proibido não tentar compreender as pessoas, 
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua, 

Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte. 


É proibido não criar sua história, 
Deixar de dar graças a Deus por sua vida, 
Não ter um momento para quem necessita de você, 
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira. 

É proibido não buscar a felicidade, 
Não viver sua vida com uma atitude positiva, 
Não pensar que podemos ser melhores, 
Não sentir que sem você este mundo não seria igual."


— Pablo Neruda


O Chile já havia recebido antes um outro Prêmio Nobel de Literatura, para Gabriela Mistral (1889-1957), a primeira pessoa a ser laureada com ele na América Latina (em 1945). Este era o pseudônimo de Lucila de Maria del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, uma professora primária que depois integrou-se ao ministério da educação e tornou-se diplomata chilena.

"Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu. Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu. Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu. Sê tu aquele que afasta as pedras do caminho."  Gabriela Mistral

Ao receber seu Prêmio Nobel, Gabriela foi congratulada por Harry Truman, presidente dos Estados Unidos à época. Quebrando o protocolo, Gabriela o questionou quanto ao apoio norte-americano ao ditador dominicano Rafael Trujillo: "Senhor presidente, não lhe parece uma vergonha que siga governando na República Dominicana um ditador tão cruel e sanguinário quanto Trujillo?". O presidente norte-americano apenas sorriu. Gabriela prosseguiu: "Eu queria pedir-lhe algo, senhor presidente. Um país tão rico como aquele que você dirige deveria ajudar aos meus indiozinhos na América Latina que são tão pobres, que têm fome, e que não têm escola". Truman pôs-se novamente a sorrir, sem responder.

Gabriela abraçou fortemente a causa indigenista e dos pobres da zona rural, apontando a exploração das elites governantes e dos países ricos sobre as massas da América Latina. 

«[...] la capacidad productiva y exportadora de América Latina enriqueció a sus oligarquías y al capital inglés y después norteamericano asociado con ellos y consolidó y reafirmó el dominio del latifundio sobre el espacio agrícola latinoamericano. [...] Pero todo significó al mismo tiempo un crecimiento económico empobrecedor para las mayorías rurales»  Gabriela Mistral
Um simbólico mural à professora Gabriela Mistral na cidade de Santiago. Ao passar, transforma a realidade daqueles.

Gabriela, falecida em 1957, não sabia que dali a algumas décadas o seu próprio país viria a cair vítima de mais uma ditadura sanguinária como aquela de Trujillo. 

Pablo Neruda viveu até 1973, ano do golpe militar. Neruda, por ser de esquerda, teve a sua casa invadida e seus livros, queimados. Ele faleceria naquele ano, apenas dois após receber seu prêmio Nobel de literatura, oficialmente por "complicações de saúde", mas suspeita-se que na verdade por envenenamento, já que os militares não queriam uma oposição intelectual daquele peso contra o regime que se instalava. Os chilenos foram proibidos de ir às ruas lamentar a morte de Pablo Neruda, mas o fizeram mesmo assim. (Em novembro de 2015, o governo chileno formalmente declarou que é "altamente provável" que Pablo Neruda tenha sido envenenado).

Em 1970 o Chile elegia democraticamente Salvador Allende, político marxista que aprofundou reformas socioeconômicas em benefício da maioria da população. O desemprego caiu a 3,8%. Allende deu seguimento à reforma agrária que já vinha em curso e, finalmente, nacionalizou as enormes reservas de cobre e demais recursos minerais do país. Foi a gota d'água para os capitalistas estrangeiros. 

Houve queda no investimento privado, fuga de capitais  ou seja, gente de dinheiro tirando-o do país , e surgiu uma crescente campanha midiática e de investidores estrangeiros contra o governo. Como em outras partes da América Latina, os Estados Unidos opuseram-se abertamente a essa repentina autonomia que contrariava os seus interesses nacionais. Documentos da CIA revelam que a meta era impedir Allende de governar. Segundo um desses documentos, o Presidente Richard Nixon  que veria-se envolvido mais tarde no caso Watergate  teria dito para "fazer a economia chilena gritar".     

Não demorou para forças conservadores recorrerem aos militares, como já havia ocorrido no Brasil. Neste caso aqui, entrou em cena o General Augusto Pinochet.
Aos interessados nesse episódio triste da história latino-americana, recomendo o livro La Conjura, que tem como capa esta magnífica foto. Allende, de óculos à frente; Pinochet, como um espectro ali atrás.

A mídia tratou de retratar Allende como um ditador soviético, e entre agosto e setembro de 1973 os militares tomaram o poder. O palácio presidencial La Moneda foi bombardeado pelas próprias forças armadas do país e com o próprio presidente dentro  algo inacreditável. Após um pronunciamento no rádio dizendo que não abandonaria o palácio, a versão oficial reza que Salvador Allende se suicidou, embora o tema seja controverso.

Seja como for, Pinochet governaria a mãos de ferro de 1973 a 1990, ano da reabertura democrática no Chile. As indústrias extrativas foram "devidamente" desnacionalizadas e voltaram a ser abertas ao capital estrangeiro. Mais de mil chilenos foram executados já no primeiro ano de governo. Mais de dois mil outros "desapareceram", como ocorrido nas ditaduras do Brasil e da Argentina. Como sempre, os EUA voltaram a demonstrar sobejo apoio ao novo Chile, como faz ainda hoje com regimes repressivos no Egito ou na Arábia Saudita. Pinochet viria a morrer em 2006.

Não deixe por nada neste mundo de visitar o ótimo Museo de la Memoria y Derechos Humanos em Santiago. É a atração n.1 de Santiago no TripAdvisor e não sem razão. O museu contém arquivos em detalhes dos anos de chumbo chilenos, os pronunciamentos de rádio de Salvador Allende, o contexto da época, e mais dados sobre direitos humanos mundo afora. 
Estátua de Salvador Allende no centro de Santiago. "Tengo fe en Chile y su destino", é a frase ali marcada. Ele teria a dito no 11 de setembro de 1973, dia da sua morte. 
O palácio presidencial La Moneda hoje.
O Museo de la Memoria y Derechos Humanos.

Seguimos em busca de democracia de verdade na América Latina. Vindo a Santiago, não deixe de aprender mais sobre essa lição aqui vivida. Os anseios de Mistral, Neruda, Allende e outros milhões seguem vivos.


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