sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Desventuras em Valparaíso e Viña del Mar

Dizem que em Vila Rica, atual Ouro Preto, às vésperas da Inconfidência Mineira (1789), circulavam cartas anônimas de tom jocoso, supostamente de alguém em Santiago falando (mal) dos governantes chilenos. Na realidade, eram críticas veladas ao governo colonial brasileiro. Já esta "carta" aqui não é política, tampouco anônima, e se passa no Chile mesmo. 
Viña del Mar é o resort chileno preferido dos endinheirados; Valparaíso, uma histórica e importante cidade costeira que conheceu a sua glória no século XIX, mas que afundou após a abertura do Canal do Panamá em 1914. 

As duas estão a uma curta viagem (1:30h) de Santiago, e é fácil conhecer ambas num mesmo dia se você não quiser se assentar para ver cada detalhe. Estão uma grudada na outra, parecendo na prática uma cidade só. Um simples ônibus urbano ou metrô te leva entre elas. 

Minha experiência? Acho que ambas merecem ser conhecidas, mas com certas reservas. Viña del Mar não é muito diferente das grandes cidades costeiras do Brasil, e Valparaíso às vezes lembra uma versão mais colorida dos favela tour que gringo faz no Rio de Janeiro. Me meti sem saber, e o relato merece ser jocoso.
A labiríntica rodoviária de Santiago, onde a sua jornada começa. Há vários pavilhões, em múltiplos andares, e nos mandaram de um canto pro outro para comprar passagens a Viña del Mar. Decidimos começar por ela e seguir para Valparaíso depois.

"Te voy hacer un precio económico", disse-me o cidadão de cara latina já à porta do ônibus, esperando na botija os passageiros que desciam em Viña del Mar  dentre eles, eu. 

O pilantra queria me vender duas horas de city tour por 70 reais. Eu estava mesmo interessado em algum passeio que nos permitisse tirar o máximo deste dia nas duas cidades, mas ele esqueceu que estava lidando com outro latino. Não me pareceu que dali pudesse sair nada bom, mas como a minha mãe queria usar o banheiro, decidimos atender à insistência dele para que o acompanhássemos até a sua agência. 

Ao chegarmos lá a sua assistente  uma bonitona com aqueles cabelos negros chilenos de Violeta Parra, mas andar de cafetina  ainda suspendeu a vista do copo d'água que bebia para nos olhar com aquela cara de "Quem são os novos trouxas?". 

Sabe de nada, inocente. Meus anos de experiência viajando por conta própria me mostraram que grande parte dos gastos no turismo são desnecessários  por falta de pesquisa prévia ou de auto-confiança das pessoas em descobrir os lugares por conta própria. Não havia nenhum passeio com preço razoável, e tanto Valparaíso quanto Viña del Mar revelaram-se perfeitamente possíveis de visitar a pé e por conta própria. Além disso, eu sabia que à tarde em Valparaíso haveria um free walking tour (tour a pé gratuito), 0800.

Agradecemos ao agente de viagens pelas suas ofertas, pelo seu banheiro, e decidimos navegar por Viña del Mar por conta.

Viña del Mar pareceu-me uma cidade agradável, mas não vi nada de muito particular. E, caso você esteja considerando a ideia de ir à praia tomar um banho de mar, lembre que estamos na latitude do Uruguai e saiba que o Oceano Pacífico é bem mais frio que o Atlântico. Apesar da cara da cidade, não estamos em Fortaleza.
Ruas do centro de Viña del Mar. Além de praças agradáveis, há calçadas largas e muitas lojas. Parece muito uma cidade "normal", se é que você me entende. 
A orla é bonita, mas não difere muito das de grandes cidades costeiras do Brasil, como você pode ver.
Talvez o ponto mais icônico de Viña del Mar seja o seu belo relógio de flores ao fim de uma larga avenida.

Não recomendo passar muito tempo em Viña del Mar se você quiser fazer Valparaíso no mesmo dia. Esta consome muito mais tempo e tem mais coisas "diferentes" pra ver. 


Há um metrô 
 e, mais recentemente, também um sistema de bondes modernos  entre Viña del Mar e Valparaíso, sem precisar de agência de turismo nem de pagar caro. Só o que não esperava foi que o metrô não vendesse passagens a dinheiro, só cartão para múltiplos usos. Não entendo isso até hoje. Espero que mude. O jeito foi encontrar um ônibus. Numa dessas avenidas da orla, perguntamos a alguém e descobrimos um que ia. 


Fomos com Seu Basílio, o motorista (cujo nome ouvimos), e que dirigia envenenado pela costa chilena, com um rabo de guaxinim e um Papai Noel pendurados no retrovisor. Em 15 minutos, chegamos a Valparaíso vendo o mar.
Seu Basílio com seu rabo de guaxinim e Papai Noel pendurados no retrovisor. 

Valparaíso, também conhecida por Valpo (embora eu não tenha ouvido ninguém na rua chamá-la assim) é uma cidade de personalidade bem mais característica. Parte dela me agradou, outra parte nem tanto. 


Há um centro histórico no porto tombado pela UNESCO, morros (cerros) de casas coloridas, belas vistas para o mar, e muito graffiti. Se você for fã da chamada arte urbana, aqui é a sua praia. Já se não for...

O ônibus nos deixou já perto da praça principal do centro histórico, de onde sairia o free walking tour. Localizamos o guia 
 um chileno magro e alto, com ar ligeiramente tímido mas risonho, com aquele jeito de quem gosta de se sentir parte da galera. Compramos um sanduíche às pressas e comemos ali na praça mesmo, em ânimo de êxito por termos conseguido chegar a tempo. No fim das contas, o guia ainda esperou juntar mais gente e pudemos comer tranquilamente enquanto esperávamos  coca-cola e sanduíche.

O prédio da marinha do Chile, na praça principal do centro histórico e de frente ao porto.
O edifício de outro ângulo.
No porto de Valparaíso.
Valparaíso tem a mais antiga bolsa de valores da América Latina (a Bovalpo), teve o primeiro corpo de bombeiros voluntários, seguradoras de valores já no século XIX, a primeira biblioteca pública do Chile, e o mais antigo jornal em língua espanhola ainda em circulação, El Mercurio de Valparaíso

Tudo isso se deveu ao boom econômico que a cidade experimentou no século XIX, sobretudo após a descoberta de ouro na Califórnia em 1848 (que levaria também à expansão yankee para o oeste, sobre os territórios indígenas). Não havia ainda o Canal do Panamá, portanto todo o comércio entre os oceanos Atlântico e Pacífico precisava passar pelo Estreito de Magalhães lááá na ponta da América do Sul. Valparaíso era assim um entreposto comercial importante nesse trajeto.


O Estreito de Magalhães, uma passagem natural, era conhecido por Cola do Dragão pelos primeiros navegadores portugueses do século XV. Até que em 1520 o lusitano Fernão de Magalhães se atreveu a navegá-lo de fato e mudou o seu nome para Estreito de Todos os Santos, por tê-lo feito no dia 1 de novembro. O estreito acabou, no entanto, ficando conhecido pelo nome do aventuroso navegador. Ainda que fique no extremo sul, o Estreito de Magalhães ainda é melhor negócio do que ir realmente até o fim do continente contornar a Terra do Fogo 
 chamada assim por causa da fumaça das fogueiras dos indígenas que Fernão de Magalhães viu  e o gelado Cabo Horn, notório por suas tempestades. (E você aí achando que a Terra do Fogo se chamava assim por causa de vulcões...)

Visualizando o extremo sul do nosso continente. Percebam que o Estreito de Magalhães começa ali ao norte da Terra do Fogo.

Valparaíso era o coração comercial chileno nessa era industrial do século XIX. A cidade ainda guarda muito daquela época, sobretudo na bem conservada arquitetura do seu centro histórico.

No centro histórico de Valparaíso, casas tradicionais de arquitetura neoclássica. E ruas ainda com os trilhos de bonde no chão.
Alguns prédios ainda passam um ar da época vitoriana do século XIX, quando navios comerciais ingleses e dos vários países americanos aqui aportavam. Tudo bem conservado, como você pode ver. 

Mas Valparaíso acabou saindo da rota de navegação quando o Canal do Panamá foi inaugurado em 1914. Já não era mais necessário à maioria dos navios mercantes contornar estas enormes distâncias. Os negócios quebraram; famílias ricas e empresas mudaram-se; e a cidade decaiu. 


Hoje há esse centro histórico a visitar, mas fora dele restou pouco do glamour de outrora. Valparaíso tem hoje um centrão "moderno" 
 que lembra a muvuca do centro de Salvador, com roupas em liquidação na calçada em frente às lojas  e morros repletos de casebres que dominam o horizonte, como no Rio de Janeiro.

Vista de Valparaíso.
Acreditei a princípio que o tour seria inteiramente pela parte histórica. Ledo engano. Logo começaríamos a subir as assombrosas escadarias pra um dos morros, navegar becos pichados em clima de festa  o guia avançando como se estivesse nos levando por um reino encantado.

É como se você tomasse um tour do Pelourinho e de repente o guia começasse a levar você pelos becos de Salvador. Nós éramos uns 20, quase todos vindos de países de língua inglesa. O guia havia nos explicado que não havia tour em espanhol porque não havia procura, ainda que o grosso dos turistas no Chile venham de outros países latino-americanos. Aí eu entendi por que é que não havia procura por parte de outros latinos. (A cereja do bolo deste programa de gringo era o guia chileno tentando se identificar com eles, forçando aquela conversa besta de jovem norte-americano sobre como encheu a cara na última festa.) 
Lá em cima, chegamos à casa de uma senhora que cobrava 1 dólar por um par de bolachas Maria com doce de leite. A tia as tinhas enrolado em papel alumínio, não me pergunte por que, e o guia observava-nos sorridente como quem buscava reações a algo exótico nunca dantes experimentado. 

Fui assaltado pela inevitável sensação de "O que é que eu tô fazendo aqui?".


Verdade seja dita, havia alguns grafitti impressionantes, e (curtas) partes da caminhada foram por belvederes com lindas casas, vistas e flores  incomparavelmente mais arrumado do que numa favela. Porém, a tônica geral me pareceu uma certa fetichização da pobreza. O grosso dos lugares por onde passamos eram tão bonitos quanto as ruelas de trás do comércio de Feira de Santana.

O jeitão geral das ruas por onde passamos.
Alguns grafitti impressionantes, apesar disso.
... e recantos bonitos, com belas vistas. Mas me pareceram exceção.
"E agora nós vamos todos tomar transporte público!", anunciou o guia animado após descermos de um dos morros até uma praça movimentada. "Fiquem todos juntos pra ninguém se perder e...".

Misturei-me ao povão que circulava pela praça e fiz questão de me perder. Aquele guia nunca mais voltaria a me ver. 

Era greve dos garis, e Valparaíso estava particularmente imunda. Basura por toda parte. Ao nosso lado, um pelotão de veganos protestava contra o consumo de carne, e para todo lado o bafafá da cidade ia aumentando o passo com o cair da tarde. 
Depois de muito caminharmos nessa Valparaíso contemporânea  que parecia-se com qualquer cidade brasileira  chegamos à rodoviária. Um encanto, como você pode ver.

Ok, a señorita vendedora ali é de fato encantadora. É a última imagem que carrego de Valparaíso. 

No dia seguinte, zarparíamos rumo à Bolívia. Passamos dos 520m de altitude em Santiago aos 4.100m do aeroporto boliviano de El Alto, junto a La Paz. Faz jus ao nome, sendo o mais alto aeroporto internacional do mundo. Os efeitos da altitude  o soroche, como dizem os indígenas  nos aguardavam por lá.  

No caminho, uma breve conexão pelo belíssimo aeroporto de Iquique, no deserto do Atacama, norte do Chile, com lindas vistas. Senti-me n'alguma missão no Iraque. 
Aeroporto de Iquique, norte do Chile.

E para quem não conhece Violeta Parra, ela foi uma das mais célebres cantoras e compositoras do Chile, uma das mais cativantes vozes que a América Latina já teve. Ela é a autora da inesquecível Gracias a la Vida. Se você não entender bem o espanhol, vale a pena procurar a letra.





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