sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Gouda (Holanda), a cidade do queijo


"No se confían. Políticos, no se confían.", ouvi a latino-americana dizer ao seu filho ao meu lado, crente que eu não estava entendendo. Certamente tomou-me por árabe, já que há muitos aqui e graças à minha barba. O garotinho havia avistado a contra-capa do livro de Noam Chomsky que eu lia à luz do sol à janela do trem.

Íamos de Amsterdã a Gouda, cidadezinha no interior da Holanda. Lá nasceu o queijo de mesmo nome, um dos mais famosos do mundo, e que eu resolvi ir conferir no local de origem. Este é também o primeiro post que faço sobre a Holanda, apesar de já morar aqui há 7 anos (!).
Entrada para a estação de trem na cidade de Gouda.

Comecemos corrigindo a sua provável pronúncia, que todos os estrangeiros erram (compreensivelmente). Gouda pronuncia-se Ráuda em holandês. O G em holandês tem esse estranho som de R gutural, bem raspado na garganta. Se você falar "Gôuda" (ou "Gudá", como dizem os francófonos), é possível que eles entendam, mas não é garantido. Coisas do holandês. Não é exatamente o idioma mais charmoso da Europa.

As cidadezinhas holandesas, por outro lado, conseguem ser bem amáveis. Todas se parecem muito, como você notará após visitar um punhado delas  quase sempre com seus canais pela cidade, casas de tijolinhos, calçadões para pedestres, praça central onde ficam a prefeitura e a igreja (ambas em estilo moderno-antigo, dos idos de 1500-1800), e mercados onde se vendem guloseimas holandesas, hortifruti, e quinquilharias em geral.

Acresça-se a isso, é claro, o queijo. Ainda que o queijo holandês não seja tão mundialmente famoso quanto os italianos, franceses ou suíços, os holandeses comem queijo pra caramba, há muito tempo. O Gouda é o mais clássico daqui, normalmente vendido por idade: jong (jovem), jong belegen (jovem maduro), oud (envelhecido), entre algumas outras variações. O jovem é macio e suave; quanto mais velho, mais desidatrado, salgado, e de gosto mais forte.  
"Barraca" vendendo queijos na praça central do centro histórico de Gouda.
O queijo gouda normalmente é feito e vendido assim: em rodas.

A cidadezinha fica a menos de 1h de trem de Amsterdã e pode ser facilmente visitada num dia só, como eu fiz. Vale a pena. Aqui, além de visitar o Museu do Queijo Gouda pra aprender como ele surgiu e era tradicionalmente feito, você pode também conhecer mais sobre a história da Holanda na chamada Idade de Ouro holandesa dos séculos XVII e XVIII, ver a mais comprida catedral da Holanda com lindos vitrais, e recantos muito bonitinhos. Além de, é claro, comer queijo.

Da estação de trem são 5-10 minutos a pé até o centro histórico, antigamente murado, hoje sem muro, mas ainda cercado de canais  como uma cidade holandesa que se preze. Aqui na Holanda há canais por toda parte.

As cidades holandesas, em geral, souberam muito bem "pular" a Era do Automóvel. Passaram, em grande medida, da época pré-industrial para a época de bem-estar hoje aqui em que há ruas exclusivas pra pedestres, muitas ciclovias, e transporte coletivo de qualidade. Muito melhor. O resultado são cidades bonitas, tranquilas, e boas de se circular.
Rua típica com canal, no centro histórico de Gouda.
O outono chegando aqui e dando nova cor às folhas.
Cena típica do holandês, com três crianças na bicicleta. Estas bicicletas modificadas são comuns aqui. 

Mas passemos ao queijo. A primeira menção escrita ao queijo gouda é do ano 1184 (!). Queijo, de modo geral, é algo já feito há milênios pelas civilizações do Oriente Médio, da Índia, e da Europa. Basta adicionar um coagulante ao leite e, voilà. Aqui tradicionalmente usava-se ácido de estômago de  novilho. Enrolava-se os grumos de leite na própria pele das vísceras animais, como ainda fazem muitos camponeses Europa adentro.  

Entrei no Museu do Queijo pra aprender mais, no prédio onde costumava ser o centro oficial de pesagem dos produtos. Aqui as medidas eram padronizadas, e só podiam vender o que já tivesse recebido o selo de certificação. Os governantes, espertos já desde aquela época, aproveitavam então para coletar o imposto sobre as mercadorias. Se precisasse, o quartel de polícia ficava logo no andar de cima.
Prefeitura de Gouda, no meio da praça principal de seu centro histórico. Gouda, que era um povoado medieval, ganho status de cidade em 1272.
Exterior do waag, a casa oficial de pesagem dos produtos, também na praça central, em frente à prefeitura. Em 1667 foi introduzido o imposto sobre o queijo, e a cidade prosperou. (Em tese é sempre pra ser assim; uma pena que a lógica nem sempre funcione.)
O interior daquele prédio é hoje uma loja de lembranças e o Museu do Queijo Gouda. É claro que comprei um pra mim.
Feitura tradicional à época, quase sempre pela mulher.
Queijos gouda. Aquele espaço vazio ali é onde estava o que eu comprei. Aqui foi possível achar uns artesanais, já que hoje em dia pelo país  e Europa e mundo afora  se vendem os industrializados. Os holandeses também são obcecados por pimenta cominho, e adora metê-la (assim como outras especiarias e ervas) no queijo pra dar sabor. Aqueles pintados lá no alto da foto são esse caso.

O sabor lembra um pouco o queijo prato brasileiro, porém melhor.

Mas nem só do pão vive o homem, e nem de queijo. Então fui ver as demais atrações da cidade, como a Igreja de São João (Sint Janskerk) com seus lindos vitrais e o Museu de Gouda, um misturão de tudo que é coisa histórica da cidade. Como sempre, museus na Europa são normalmente acompanhados de charmosos cafés, e Gouda não foge à regra.

Uma observação. O norte da Holanda é em geral protestante, e o sul, católico. Há divergências e picuinhas entre os dois lados, como em todo país, embora isso hoje seja bem menos pronunciado do que já foi um dia. No entanto, você notará que das catedrais e grandes igrejas no norte da Holanda (e Gouda se enquadra aí), só sobraram as "cascas", pois os interiores foram quase todos removidos durante a Reforma Protestante do século XVI.

A Sint Janskerk ainda tem missa, pelo que eu entendi, mas seu interior já tem pouco cara de igreja católica  só o edifício em si é que permanece, com os seus lindos vitrais. É a mais comprida igreja da Holanda, com mais de 150m.
A igreja, espremida entre ruelas no centro histórico, é quase impossível de ser fotografada inteira por fora.
Interior, com a ilustre presença da avó de Chapeuzinho Vermelho, que ninguém sabia mas era holandesa.
Alguns vitrais.
Outros vitrais no interior.
O exterior é um charme. A poucos passos você chega ao pátio externo do Museu de Gouda, com as mesas e cadeiras do seu café, em meio às plantas, e com um canal pequeno passando perto. Ares completamente de outrora, fazendo você se sentir na Europa de séculos atrás.
Exterior, entre a igreja e o museu.
Entradas para jardins secretos.
Cafeteria do museu, no exterior.
Lugar bastante tranquilo e agradável.
Entrada do museu.
No interior do museu, esta interessante maquete mostrando Gouda em 1562. Vejam o esquema geral das cidades holandesas à época, com muita navegação. Por este rio que chega ao Rio Reno (que atravessa a Holanda) e ao porto de Roterdã, escoavam queijo e outras mercadorias para a Bélgica e a França. 
O museu tem algumas pinturas e vários objetos de época, como mobílias, vasos, etc. Não vou lhe dizer que achei lá muuuuito interessante no interior, mas se você já está aqui, vale a visita. 
O exterior do museu, pra mim, ganha o prêmio de charme.

Saindo dali, caminhei pela cidade. Havia tomado um belo café espresso, e o almoço foi asiático, pois holandês almoça sanduíche, e isso contraria os meus valores culturais.

O que comi e que foi holandês, já à tardinha, foi um delicioso stroopwafel feito na hora, um wafer (biscoito) típico com recheio de caramelo. Nham.
Comendo um stroopwafel em Gouda.

Ainda cheguei a tempo de jantar num japonês com uma amiga minha em Amsterdã. Falo mais sobre a Holanda noutras oportunidades. 

A visita a Gouda está recomendada. E se quiser o máximo da experiência, venha numa quinta-feira de manhã entre junho e agosto, no verão, quando eles aqui fazem o Mercado do Queijo e enchem a praça de rodelas amarelas. Quem sabe você leva uma pra casa.
A prefeitura de Gouda.
Pôr do sol que alcancei em Amsterdã, na estação.



Nenhum comentário:

Postar um comentário