sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Aventurando-se de carro pelo interior da Bósnia: Blagaj, Počitelj, e mais

Como eu disse e repito, a Bósnia é um país lindo e subestimado. Geralmente não imaginamos que haja ainda tanta natureza no continente europeu, mas aqui nos Bálcãs, na Europa do Leste, ainda há. 

Completamos a nossa visita a Sarajevo, a capital bósnia, como relatado aqui e aqui, e era chegada a hora de partir. Destino? Dubrovnik, a mais famosa e badalada cidade da Croácia, e cenário de gravações da série Game of Thrones


Mas o transporte de Sarajevo a Dubrovnik não é exatamente o mais conveniente. Não há trem, e a viagem de ônibus dura mais de 10 horas, na maior parte dos casos exigindo conexão. Passaríamos, praticamente, um dia inteiro dentro de um ônibus. Foi aí que Dženan [Djenãn], o dono da pousada onde ficamos, fez uma oferta de nos levar de carro por um preço. 


Não valeu a pena, valeu MUITO a pena. Pra quem puder viajar o interior da Bósnia de carro, faça-o, pois há lugares inacreditáveis a ver.


Saímos pela manhã com a meta de chegar a Dubrovnik ao anoitecer, passando no caminho por muitos pontos de interesse: Cataratas de Kravice, vilarejo medieval de pedra de Počitelj, um refúgio dos místicos islâmicos Sufi à beira das montanhas e de um rio, e mais. Foi um dia inesquecível, até por outras surpresas. 

Estrada que tomamos na Bósnia. Só as vistas já valem a viagem.

Dženan tinha um carro grande, onde na frente  com a visão privilegiada  fomos eu, ele, e Filiz, a minha amiga turca. Atrás de nós, no banco dos fundos, vinha Bilal. Bilal é um tradicional nome islâmico, de um negro forte e de voz grossa que acompanhava o Profeta Maomé (não estou zoando). Dizem que, com seu vozeirão, Bilal deu início à tradição islâmica de chamar a comunidade de fiéis às cinco preces diárias. Mas este Bilal que nos acompanhou era um loirinho de 4 anos, filho de Dženan.   


A nossa primeira parada foi, naturalmente, para comprar comida. Paramos uma padaria dessas de bairro, onde compramos alguns quitutes típicos para o caminho. Por sorte, o dia estava lindo.
Uma espécie de fritada de ovos, em forma de torta.
Quitutes típicos. Os da esquerda eram de queijo branco (ou espinafre?). O da direita era de maçã, com essa cara meio melada mas saboroso. 
Como se vê, os subúrbios aqui são em geral pobres.
Rápido se deixa Sarajevo, e surgem as montanhas ao redor. Por muito do trajeto se vai também margeando o Rio Neretva, de cores azul-esverdeadas. 

A nossa segunda parada (pouco necessária) foi numa casa que vendia parafernália da época comunista iugoslava à beira da pista. Acho que alguns turistas gostam, e eles trazem gente aqui. 


Havia de tudo espalhado por vários cômodos cheirando a velho, e tudo estava à venda. 

Casa na beira da pista que vendia quinquilharias de segunda (ou terceira) mão.
Não comprei nada. Minha amiga turca comprou uns broches da época iugoslava, e seguimos. Adentrando a natureza, passaríamos daí por cidadezinhas e recantos lindos do interior da Bósnia. 

A nossa terceira parada foi a cidadedezinha de Konjic [Koníts], essa aí abaixo onde nos detivemos para tomar um café (eu sei, parece viagem de hobbit com tanta pausa para comer, mas as paradas para tomar um café são fundamentais). Além do mais, a cidadezinha é um charme.

Ponte em Konjic.
Cigana pedindo esmola numa outra ponte. A maior concentração de ciganos no mundo está aqui nos Bálcãs. É também onde eles são mais discriminados. 
Vista para as montanhas ao longe.
A parada seguinte, depois de um pouco mais de estrada, foi Jablonica [Iablonítsa] onde se cruza o Rio Neretva. Cores impressionantes.
Vista do Rio Neretva.
Esta é a vista que se tem da janela do carro. 
De um restaurante por onde passamos.
Flores em detalhe.
A estrada adiante. Começávamos a entrar mais pelas montanhas.
Mais vistas pela janela do carro.
Pararíamos a seguir para almoçar no vilarejo de Blagaj [Blagái]. 

Ele fica entre rochosas montanhas do início dos Alpes Dináricos (nome da cadeia de montanhas que desce pelo lado leste do Mar Adriático, desde a Eslovênia, pela Croácia, Bósnia, até a Albânia, mas não relacionada aos Alpes da Suíça, Áustria, e norte da Itália. Há um mapa aqui, pra quem estiver geograficamente perdido). Blagaj fica também à beira do charmoso Rio Buna, um tributário do Neretva das fotos acima. 


O mais especial aqui, afora a natureza, é um pequenino mosteiro construído no século XVI por sábios Sufi, uma vertente mística do Islã. Já comentei sobre eles em outros posts meus, como em As Flores de Shiraz e o Lado Poético da Pérsia. Essa vertente existe há cerca de mil anos e segue ativa, mas não é o Islã dominante que você vê na mídia. Os Sufi buscam a sabedoria interior e reverenciam a natureza, de uma maneira que lembra o zen-budismo. Como eles mesmos dizem: "As lamparinas são diferentes, mas a luz é a mesma".



"Como pode o seu coração viajar a Deus quando ele está acorrentado por desejos?", perguntava Ibn Arabi, um Sufi árabe andaluz (do sul da Espanha) do século XII.

"Você não é uma gota no oceano. Você é o oceano inteiro numa gota.", dizia Rumi, sábio persa Sufi do século XIII.

Só que, fazendo uma observação muito breve, a leitura ocidental comumente feita do zen-budismo é algo muito individualista. Os Sufi, por outro lado, ressaltam muito o amor, como faz o budismo tibetano e fez o próprio Cristo. Eles também falam em Deus mais explicitamente que os budistas. Não esse Deus barbudo caricaturado, mas um Deus onipresente e profundo. 



"O silêncio é a língua de Deus. Todo o restante são traduções imperfeitas.", dizia Rumi.

Rumi, em especial, falava muito do sentimento de amor profundo, contrariando a ideia racionalista comumente feita do sábio como alguém emocionalmente retardado, desprovido de sentimentos.

"Isto é o amor: Voar em direção a um céu secreto. 
Fazer caírem cem véus a cada momento. 
Primeiro, soltar-se da vida. 
E, finalmente, dar um passo sem pés." - Rumi

E os europeus crêem que inventaram o romantismo.

Pois bem, voltando a Blagaj, não à toa os refúgios Sufi são preferencialmente em meio à natureza. A energia aqui é fantástica, e você imagina mesmo como seria viver ali, e de onde vem tanta inspiração.
O refúgio Sufi é aquela casa no sopé da montanha.
Um jardim de flores. "O que foi dito à rosa e que a fez abrir-se, foi também dito a mim, aqui no peito", dizia Rumi.
A vista que você tem da janela.
Rio Buna adentrando a montanha. As cores e brilhos são surreais.
E ali mesmo almoçamos, com água corrente deliciosamente passando ao lado.

Saí dali inspirado para a nossa parada seguinte, que seria menos espiritual e mais física: Počitelj [Potchitéli], um vilarejo medieval de pedra. 


Física por que, construído em elevações às margens do Rio Neretva, Počitelj fica no alto e requer belas pernas. 

Fomos até o alto daquela fortificação lá no topo. Prepare as pernas, mas a vista é recompensadora.

Hoje Počitelj é um vilarejo quieto, de lindas casas tranquilas de pedra intercaladas pelo verde de pés de romã, fruta típica da região. (No Brasil o romã tem má fama de amargar, mas os daqui são azedinhos meio doces. A fruta é ultra-popular aqui neste sudeste europeu e na Turquia.)

Casas de pedra e pés de romã no verão em Počitelj.
Antigamente, desde antes da conquista desta região pelos turcos otomanos em 1466, estas já eram fortificações medievais utilizadas para monitorar quem passava pelo rio  meio importante de transporte numa época em que as estradas eram parcas. Com a conquista pelos otomanos, o lugar foi fortificado. 
A vista e o suor na cara do cidadão, lá em cima. 
Fortificações e torre de observação à beira do rio.
No alto. Dženan e Bilal ali atrás.
Vista já no meio do caminho de volta, com uma mesquita em meio ao verde.

E lá adiante, a nossa parada final antes de cruzar a fronteira com a Croácia para chegar a Dubrovnik. Nos deteríamos pra ver as lindas cataratas de Kravice [Krávitse], numa área verde.


Águas verdes de um jeito impressionante, e um barzinho ali onde muitos visitantes tomavam algo ao som das águas que caíam. 

Cataratas de Kravice.

Foi nessa que, do nada, uma senhora baixinha e gordinha vestida de freira se vira pra mim com o dedo indicador apontado à minha barriga como se anunciasse um assalto e pergunta: "Sei indiano?", em italiano, perguntando se eu era indiano. Rai ai. 


Diante da minha negativa, ela ainda olhou um pouco, e depois se desinteressou. (É cada uma que me aparece.)


O sol não demoraria a cair, e tínhamos ainda algumas horas de viagem até cruzar a fronteira com a Croácia e chegar a Dubrovnik. Outra vantagem de vir com Dženan de carro é que ele sabia onde cruzar a fronteira sem pegar engarrafamento. Foi aí que duas coisas surreais aconteceram.


Primeiro, no ziguezaguear da estrada nas montanhas (que ficam mais altas aqui perto da fronteira), de repente vemos alguns carros paramos num "acostamento". Os motoristas parados faziam sinal pra nós. Dženan perguntou do que se tratava, e lhe explicavam que ali à frente vinha um ônibus que teve problemas no freio. Como? Fiquei de cara com o Velocidade Máxima verdadeiro. Só acreditei mesmo quando vi o ônibus vindo, ziguezagueando pela estrada à frente. Não me pergunte o que aconteceu com ele.

Momento em que chegava o ônibus, e nós ali parados esperando junto com outros carros.
Dženan ligou o rádio. O noticiário em Bósnio falava coisas que eu não compreendia. Dirigimos ainda por algum tempo, dando mais voltas pelas montanhas até chegar à fronteira. Dženan pediu os nossos passaportes, que apresentaria aos oficiais quando chegasse a hora. E de repente eu escuto a voz no rádio dizer "Brasil...blablabla... Eduardo Campos...". 

Oi? Eduardo Campos na rádio na Bósnia? Será que morreu?


Perguntei a Dženan o que a rádio tinha dito, mas foi bem na hora em que cruzávamos a fronteira, e ele falou que não havia prestado atenção. Enviei uma mensagem pra casa pelo celular e não deu outra, foi o dia do falecimento do Eduardo Campos. 


Chegamos a tempo de ver o restinho de pôr do sol sobre o Mar Adriático, e à noite entrávamos em Dubrovnik.


Ficou um dia memorável, pela esplêndida natureza e recantos da Bósnia, como pelas curiosidades e acontecimentos do dia. Volto com vocês de Dubrovnik, em solo croata. 





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