Lisboa. |
Mochila nas costas, documentos prontos, e lá vou eu. Por alguma razão parecia que a segurança estava reforçada em Schiphol. Fila enorme no detector de metais, e eles fazendo quase todo mundo abrir as bagagens de mão. Olho no relógio... bom, quem não deve não teme. Só pra avisar: eu ando com uma catrupilha de eletrônicos na minha mochila. Além do notebook vão câmera, adaptador, recarregador de bateria... E como seria de se esperar, o carinha me parou.
— De quem é essa mochila preta aqui?
— É minha. Eu aqui.
Lá vem o cara com minha mochila, e eu com a cara tranquila de marinheiro de centésima viagem.
— Poderia abrir, por favor?
— Claro.
— ... espere.
— ?
Neste ponto nós já estávamos para além do detector, eu e o cara — um holandês grandão, desses com físico de zagueiro. Fiquei com aquela cara de "o que foi?" enquanto ele metia a mão no bolso lateral da minha mochila, onde guardo minhas provisões de... errr... bem, rapadura.
— "O que é isso?", pergunta o cara em tom incógnito.
Como é que eu vou explicar rapadura pra esse cara? - Açúcar.
— Açúcar?
— É.
— Dessa cor?
— É açúcar bruto. Holandês burro, teu país ficou rico comerciando essa bagaça.
Não se conformou. Levou a rapadura de volta pra passar junto com os eletrônicos. Agora imagina a cena ridícula da rapadura na esteirinha do detector. O que é que ele suspeitava detectar ali eu não sei, só se fosse o ferro do melaço.
- É, está tudo certo, pode seguir.
Me devolveu a rapadura, e eu me segurando pra não rir só fiz assentir com a cabeça. E lá fui eu. Lisboa.
(Nota explicatória: Rapadura é ótimo pra se levar! Não quebra, não amassa, não estraga, nutritivo, e um pedacinho já satisfaz)
------------------------------------------------------------------------------
Chegada: Aeroporto da Portela (não, não é a escola de samba). Já era quase noite, um restinho de sol ainda sobre Lisboa. Peguei minha bagagem maior no tapete (lá não chamam de esteira), perto da área de fumadores, e segui no ônibus que leva para o centro. No caminho vejo Banco do Brasil, TV Globo Portugal... parece que agora nós é que estamos colonizando Portugal. Ouvi dizer que até a Igreja Universal está por aqui.
Cheguei e me instalei na Rua do Ataíde, perto do Cais do Sodré, na Velha Lisboa. As ladeiras de pedras fazem Salvador e Olinda parecerem asfalto plano. Com a mochila nas costas então, parece mais alpinismo. Deixada a bagagem no albergue, a fome já estava me apertando e eu não estava afim de jantar rapadura, então perguntei por restaurantes e fui explorar Lisboa à noite.
Vista do Bairro Alto, da noite boêmia lisboeta |
Algumas ruelas quietas de belos casarões na Velha Lisboa |
De lá fui à região da Baixa-Chiado, mais movimentada. Como em outras partes da Europa, aqui eles tradicionalmente afixam o cardápio na frente do restaurante para que você saiba antes de entrar. Estava eu diante de um, quando começar a me falar um tio que havia saído para fumar.
— Olha pá, é muito bom, val'e a pena.
— Obrigado. Eu acho que vou experimentar.
— Doutras vezes q'xtive em Lijboa não gxtei, mas desta vez fiquei satisfeito, pois.
— Vou experimentar.
— Mnha máe mora aqui e eu vénho d'vez em quando e, pois, gostei muito.
Meu sorriso amarelando, minha mão já na porta, e o tio continuando.
— Desta vez vim com o Gabriel, que é uma psoa ixptacular, e, pois, ficamos muito satisfeitos.
Acenei e fui entrando logo, antes que o tio continuasse. Dentro, parecia um botequim, daqueles brasileiros, onde o povo toma cerveja e assiste o futebol no domingo de tarde. "Maria, duas imperiais e dois arroz de tomate ali pra aquela mesa!", gritou um no sotaque mais belo-horizontino possível. Bom, daqui a pouco eu acho até pão de queijo aqui. Pra quem não sabe, imperial é chopp. Me sentei. Futebol na TV, o povo falando alto como no Brasil (contraste gritante com os restaurantes do norte da Europa, em que dá até pra ouvir a música ambiente). Não tinha pão de queijo, mas pedi o tal arroz de tomate ao garçom mineiro. A essa altura eu estava me dando conta de que, até ali, Portugal parecia mais o 27o estado brasileiro do que o 27o país da União Europeia.
Meus amigos chegariam no dia seguinte para fazermos um trabalho para a campanha ambiental da ONG europeia ecumênica de que participamos. De manhã fui logo tomar um belo cafezinho com quitutes na Confeitaria Nacional, lá desde o século XIX.
Confeitaria Nacional em Lisboa. Uma delícia. |
Passeia-se lá e cá, e vi alguns marcos importantes da cidade. Fui bater um papo com Fernando Pessoa, ver Camões, e bater perna na Praça Pedro IV (nosso bom e velho Dom Pedro I, que se tornou rei de Portugal depois de declarar a independência do Brasil).
Um dedo de prosa com Fernando Pessoa no centro de Lisboa. |
Marco a Luís de Camões (1524 - 1580) no centro de Lisboa. |
Estátua de Eça de Queirós (1845-1900). "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia". |
Ruas de Lisboa com seus tradicionais bondes elétricos. |
Praça Pedro IV. |
Pelas ruas o que mais tinha, depois de pombo, era ambulante vendendo óculos de sol falsificado, como no Brasil. Comigo não, mas quando meus amigos do norte da Europa — com seus cabelos aloirados e caras de turista - chegaram, eles não passavam 15 minutos sem alguém oferecer haxixe, em plena luz do dia. A crise está pegando mesmo.
Durante alguns dias realizamos diversos encontros, visitas a ONGs locais, e participamos até de um culto evangélico angolano com direito a batuque e tudo, hehe. Foi interessante. Éramos os únicos não-negros no lugar inteiro, mostrando como em Portugal essa segregação entre portugueses e imigrantes vindos das antigas colônias ainda é bastante forte. Interessante também ver que lá, ao menos na cidade grande, a tradição cristã parece hoje em dia estar mais forte nas famílias de origem africana do que entre os portugueses propriamente ditos.
Encerrados os encontros, fomos eu e minha colega jantar num restaurante típico português com apresentação ao vivo de fado, música tradicional portuguesa cantada ao violão ou bandolim. O garçom, todo chique, com aqueles oclinhos do Silvio Santos, começou por trazer a carta de vinhos, com aqueles vinhos do Porto de 300 euros a garrafa (ou mais). Não teve outra: tivemos que escolher pelo lado direito do cardápio, pelo preço, hehe. E o medo de que ele tivesse entendido errado quando eu disse dois cálices do tal vinho e ele me traz a garrafa pra abrir na mesa? Nessas horas a cabeça da gente começa a viajar ("Será que ele entendeu que era pra trazer a garrafa e dois cálices? Lascou"). Alívio só quando o garçom vai embora levando a garrafa. Ufa.
Muito bonito o fado. Estes aqui são dois de que eu gosto.
Mariza - "Vielas de Alfama"
Carminho - "Meu amor marinheiro", bela poesia e dona de um belo vozeirão
No outro dia fomos com o restante do grupo a Sintra, a meia-hora de Lisboa, onde residiu a família real portuguesa. Lugar lindo, cheio de altos e baixos, palácios e casas tradicionais.
Casarios em Sintra. |
Sala no Palácio Nacional de Sintra, na freguesia de São Martinho, vila de Sintra. Palácio real desde a época de Manuel I, que era rei de Portugal na época da chegada ao Brasil. |
E eu não podia ir a Portugal e não experimentar os tão afamados pastéis de Belém. Faltava ir a Belém, uma área mais afastada mas ainda dentro de Lisboa, onde fica o belíssimo Mosteiro dos Jerônimos, a Torre de Belém, e o Padrão dos Descobrimentos, monumento à grande era das navegações.
Mosteiro dos Jerônimos. |
Padrão dos Descobrimentos, com vários personagens navegadores portugueses. |
Torre de Belém, Lisboa. |
Huuummmmm... |
O pastel de Belém, no entanto, eu sinto desapontá-los, mas não é um pastel não, viu. As coisas que ninguém te diz. Ao menos não é pastel na concepção que a gente tem aí no Brasil. Vejam no Google Imagens porque os meus eu comi e esqueci de tirar foto. Mas mais chamaríamos de "empadinhas de Belém", com massa folhada e recheio de creme. Mas que é gostoso, é, ainda mais com canela por cima. Huuummmm...
Hora já de retornar. Portugal dá uma sensação engraçada de que divisões políticas são balela, e que as mais importantes mesmo são as divisões culturais e linguísticas. Dá a sensação de que Portugal e Brasil são a mesma família, com um mar nos separando, mas mesmo assim quase como se fôssemos o mesmo país. Inclusive, é curioso se ver aqui na extremadura da Europa e imaginar que por séculos eles olhavam para o mar e imaginavam o que haveria para além dali, se terras perdidas ou o fim do mundo. Saí de Portugal com muito mais respeito e admiração pelo povo e pela cultura. A sensação é, em muitas coisas, como estar naquele Brasil colonial ou do começo do século XX, em que há o padeiro, as beatas, as roupas estendidas nos varais às janelas das casas. A quem puder, vale muito a pena visitar. Para mim, era hora de encerrar até a próxima viagem e retornar Amsterdã - ou melhor, como eles dizem lá em Portugal, Amesterdão.
Aquele abraço. Deixo vocês com as imagens de Lisboa do alto do Castelo de São Jorge, no centro da cidade, e com alguns links das canções de fado.
Aeee! Passeou bastante!!
ResponderExcluirVeio-me à mente muita coisa nostálgica. Muitas fotos parecidas. rsrsrs
Foi mesmo nos lugares mais fixes, páh.
Bue da fixe, pois! \o/
"Como é que eu vou explicar rapadura pra esse cara? " - HAUAHAUAHAUAHAUAHUAHAUA MORRIIII
ResponderExcluirE ah! Os países latinos... tudo igual! huahaua *lembrando da parte da zona sonora no restaurante e dos ambulantes*
Adorei o post, maninho! Espero que logo você poste de mais lugares diferentes, é bom conhecer o mundo através dos seus olhos, já que está difícil para eu ir =D
Tem é tempo que escrevi num blog seu, amigo!
ResponderExcluirPra variar a narrativa é ÓTIMA, nos transporta ao local imadiatamente.
É, tem coisas que para explicar, é complicado. Rapadura para holandês então é muito giro! Ouviu essa expressão?
Deu até pra sentir o gosto do pastel de belém.
Beijos e continua fazendo os diários de viagem aqui no blogspot.