sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Mairon vai a Machu Picchu

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Eis a famosa. Repare na miudeza das pessoas na foto.

Machu Picchu, a cidade perdida dos incas. Este é talvez o mais famoso e místico destino na América do Sul. É também a mais popular trilha das Américas, para aqueles que curtem caminhar na selva. O que torna Machu Picchu especial e diferente de outras regiões de montanha é que aqui você tem muito verde, não apenas rochas, e tem todo o misticismo que cerca os incas. Em poucos outros lugares do mundo você encontrará ruínas assim tão bem conservadas, e rodeadas do povo que as construíram.

Machu Picchu foi (re)descoberta em 1911 pelo explorador norte-americano Hiram Bingham. Por séculos ficou abandonada na floresta, embora algumas versões digam que camponeses viviam na região. O certo é que os habitantes deste interior do Peru, que são quase todos de origem indígena, sempre souberam de Machu Picchu (que, na língua quíchua, quer dizer "Velho Pico"). Foram eles que levaram até lá o explorador norte-americano que então publicaria sua descoberta da "cidade perdida dos incas", lançando-a às capas da National Geographic e à fama internacional.

(Para quem gosta de entender as coisas em contexto, vale saber que nesse período do século XIX e começo do XX, os Estados Unidos estavam tentando fortemente se impor num mundo então dominado pela Europa. Essa foi a época do Orientalismo, de europeus fascinando-se e estereotipando as civilizações antigas  egípcios, árabes, turcos, indianos  que conquistavam em seu imperialismo na África e na Ásia. Os Estados Unidos, não querendo ficar para trás, lançaram-se então para explorar o que havia das civilizações americanas pré-colombianas. Chamaram, ainda no século XIX, os Mayas da América Central e do México de "O Egito Americano". E, pouco depois, alardeariam suas descobertas sobre os incas. Trabalho arqueológico interessante, mas não deixem de perceber também a dimensão simbólica da coisa. Esses estudos sempre trabalharam estereotipando tais povos "tradicionais", tratados como irremediavelmente conservadores  e, portanto, a-históricos  em contraste à enaltecida civilização ocidental, baseada na razão. Dessa mesma matriz surgiram preconceitos mui atuais, como tratar de "filosofia" apenas o pensamento "ocidental", leia-se de pensadores europeus ou anglo-americanos, e de achar que índio ou árabe não muda, pois são vistos como povos irremediavelmente tradicionais.)    

Voltemos a Machu Picchu. Vamos primeiro à logística para os interessados em vir, antes de eu narrar a minha visita.
Visitar Machu Picchu é trabalhoso, e requer atenção. Não estou me referindo às longas e íngremes escadarias de pedra, mas à burocracia. Como este é um sítio de conservação natural e arqueológica, a visitação é limitada a alguns milhares de pessoas por dia. Pode parecer muito, mas não é. As entradas muitas vezes se esgotam semanas antes, sobretudo na alta estação (a estação seca, de junho a agosto). Para fazer a trilha que chega a Machu Picchu a pé o limite é ainda menor, de apenas 400 pessoas, então é necessário comprar com meses de antecedência. Planejar é fundamental.

A compra se dá no site oficial do governo peruano (http://www.machupicchu.gob.pe). Atualmente estão aceitando pagamento online com cartão de crédito, mas às vezes não funciona. Quando eu fui, esse serviço estava suspenso; era necessário reservar online e depois fazer um depósito identificado no Banco Nacional Peruano (o que complica se você não estiver fisicamente no Peru para isso). Mas como fui na baixa estação (novembro, que tem certo risco de chuva), consegui comprar entradas em Cusco diretamente no Instituto Nacional de Cultura poucos dias antes. O site oficial lhe diz quantas vagas ainda restam pra cada dia. O preço, seja qual for o procedimento, é de 128 soles peruanos por pessoa (em 2016), ou aproximadamente R$ 140. Lembre que não é possível comprar o ingresso na entrada.

Agora falta o transporte. A menos que você faça a trilha inca de alguns dias, será preciso chegar  de trem ou ônibus  ao povoado de Aguas Calientes, à beira de Machu Picchu. (Oficialmente, mudaram seu nome para Machu Picchu pueblo, então atente se for comprar passagens online.) De lá você pode: subir algumas horas de caminhada até a entrada de Machu Picchu (não recomendado), ou tomar um ônibus espertamente cotado em dólares (US$ 9 por pessoa, quando eu fui) e que te deixa nos portões de Machu Picchu em 20 minutos. 

Embora o ônibus seja caro, acho que ele vale a pena. Na minha opinião, Machu Picchu já exige bastante das pernas. Além disso, ao invés de gastar as preciosas horas da manhã subindo beira de estrada, talvez melhor seja entrar em Machu Picchu logo no começo da manhã, quando há menos gente e não tem aquele sol de meio-dia na sua cabeça. Foi o que eu fiz.
Aquela estradinha em ziguezague é a que leva de Machu Picchu ao povoado de Aguas Calientes, rio abaixo. Você escolhe entre 20min de ônibus ou algumas horas de caminhada. Eu preferi guardar as energias para a visita às ruínas.

E para chegar até Aguas Calientes? Há ônibus e trens. Se optar pelo trem, certifique-se de comprar suas passagens bem antecipadamente, pois lota rápido. (Ver mais sobre isso em No Andean Explorer, o charmoso trem pelo interior do Peru.) A PeruRail tem serviços desde Cusco ou desde Ollantaytambo, inclusive o caríssimo trem de luxo Hiram Bingham (sim, batizado com o nome do historiador). Mas não vi sentido em pagar tanto por luxo se o atrativo principal da viagem é a vista. Acho que o trem poderia oferecer até show de strippers, e ainda assim a sua a atenção se desviaria para a paisagem montanhosa. 

Há quem durma em Aguas Calientes, mas eu não vi nada aqui que merecesse isso, a menos que você tenha chegado a pé  só há barracas vendendo souvenirs e restaurantes para turista. Por outro lado, se você sair de Cusco, levará 2h até Aguas Calientes e provavelmente chegará a Machu Picchu quase na hora do almoço. Bad idea. Eu preferi um meio termo; optei por dormir na aconchegante Ollantaytambo, e tomar um trem de manhã cedo que chega em 30 minutos a Aguas Calientes  te permitindo já estar em Machu Picchu ainda nas primeiras horas de sol.  

Uma última observação prática: não é permitido comer nas ruínas, e você vai passar horas lá dentro, então alimente-se bem antes de ir. Na entrada há comida e bebida, mas tudo é caríssimo (R$10 a água mineral), então é uma boa ideia levar lanches para antes de entrar e/ou depois de sair. Água você pode levar, e leve bastante, pois você vai suar, e dentro não há nada. É permitido sair e entrar de novo com o mesmo ingresso no mesmo dia, mas dado o tamanho da escadaria de entrada, é improvável você terá vontade de subir tudo outra vez depois de descer. Vá por mim. Entre de uma vez, cedo, e veja tudo o que puder.
Trem da PeruRail a caminho de Machu Picchu.
Era mesmo bastante cedo quando eu acordei em Ollantaytambo, os primeiros raios de sol apenas começando a tirar a escuridão da noite e a revelar as nuvens e montanhas ao redor da vila. Infelizmente, tive que sair antes da hora do café da manhã. Na rua, apenas vendedores estavam à vista, começando a montar suas barraquinhas em preparação à vindoura horda de turistas. Apressei-me pra a estação de trem, a 15 minutos de onde eu estava. 
Praça em Ollantaytambo no início da manhã.
Os vendedores começando a montar suas barracas simples. Cedeiros, como outras gentes trabalhadoras mundo afora.
Quase na estação de trem, a presença de barracas de souvenirs se intensificava. Começavam também a aparecer outros viajantes.
Na estação de Ollantaytambo, prestes a tomar o trem pra Machu Picchu.
A viagem de trem para Machu Picchu é curta, e muito boa. Qualquer trem tem "teto solar" que te permite ver a paisagem através do vidro, além de pelas janelas. Lindas vistas de montanhas cobertas de verde. (O interior do trem em si é também decorado com temas incas.)
Interior do trem de Ollantaytambo a Aguas Calientes.
Chegada do trem em Aguas Calientes, e ali a bilheteria para as passagens de ônibus.
As lindas vistas que você tem do ônibus, ziguezagueando na estradinha à beira do abismo. Ele te deixa basicamente nos portões de entrada para as ruínas.
Aqui o ônibus te deixa. Entrada para Machu Picchu. Prepare as pernas.
A apoteose lá em cima. Ou melhor, só o começo da visita.
A vista de lá é magnífica. A sensação, melhor ainda. Você leva um tempo internalizando "estou em Machu Picchu", e inevitavelmente se pergunta se atende às suas expectativas, se é tão impressionante quanto você imaginava. A minha resposta foi um retumbante "Sim", mas a sensação você não consegue imaginar antes de vir. Sentir-se envelopado naquelas montanhas verdes, absorvido naquele ambiente, é indescritível.

Agora prepare-se pra caminhar. Os antigos incas deviam ter um físico fenomenal, pois haja escadas, e com degraus bastante altos. 

O sítio principal fica logo ali, uma vila construída por volta de 1450 pelos incas. Foi abandonada cerca de 100 anos depois, devido à epidemia de varíola, e os espanhóis nunca a descobriram. Assim foi preservada. Ainda é possível ver muitas das casas, espaços de estocagem de alimentos, etc. O mais fabuloso é imaginar isso aqui cheio de vida, com incas pra lá e pra cá, percorrendo as montanhas.
Imagine acordar de manhã numa casa dessas e ter esse horizonte.
Escadas...
Algumas lhamas que puseram ali para integrar o ambiente.
Caminhos por Machu Picchu.
Entrando nas casas.
Dei muita sorte de ter um dia de sol. Não quero imaginar isso com chuva. Muito menos o caminho que eu tomaria a seguir, rumo à Porta do Sol. 

Foram 2h pra ir e mais 1,5h pra voltar (pois a ida é subindo). A Intipunku, ou Porta do Sol, é na verdade a entrada para aqueles que aqui chegam pela trilha inca. Uma ruína modesta, mas um caminho inesquecível. As vistas (e a sensação) que você tem, trilhando à beira do abismo, são fabulosas. 
O caminho entre Machu Picchu e a Porta do Sol.
Alguns trechos são assim.
A vista que te acompanha.
Relaxando lá no alto. (Só não podia pegar no sono.) 
As ruínas da Porta do Sol. São simples, mas lembre-se daquele ditado de que o que importa não é o destino, mas a viagem.

Duas coisas engraçadas. A primeira é que eu não fazia ideia da distância desse percurso até percorrê-lo. Na ida, perguntávamos frequentemente a quem estava voltando: "E aí, quanto falta pra chegar?". E as respostas variavam enormemente; os anglófonos e os franceses diziam "uma hora e pouco" nos mesmos lugares onde os espanhóis e latino-americanos diziam "só mais uma meia horinha", com exagerado otimismo. Achei comicamente sintomático dos nossos eufemismos (e consequente falta de pontualidade). Uns 10 minutinhos e eu tô chegando aí

A outra coisa foi quando cruzamos com um jovem inglês que vinha já boiando, até que viu a minha mãe, aos quase 70 anos, seguindo firme em frente. "Ok, now that's embarrassing. I suddenly feel motivated again." [Ok, aí já é constrangedor. De repente estou motivado novamente.] Eu ri, ele seguiu adiante, e depois eu contei a minha mãe o que ele havia dito.

Umas cinco horas depois, era hora de terminar a visita. Após retornar da Porta do Sol, ainda circulamos mais e dei uns bordejos por conta própria, mas com o tempo eu também já estava atrás de um descanso  e comida. Estávamos satisfeitos. Além do mais, tínhamos passagens pra um trem de volta a Cusco aquela tarde. Um voo pra Lima nos aguardava no dia seguinte.
  
A 2.700m, Machu Picchu pode não ter sido o mais elevado, mas fica definitivamente como o ponto mais alto desta viagem.


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Ollantaytambo e o Vale Sagrado dos Incas

O vale do Rio Urubamba, mais conhecido como o Vale Sagrado dos Incas, recorta a porção sudeste dos Andes peruanos, onde as montanhas já começam a se aproximar da Amazônia. Ainda não há, é claro, traços da exuberante selva que se encontra quilômetros mais adiante; mas tampouco há a secura do oeste peruano. Aqui, neste vale, os incas cultivaram milho desde muito antes da chegada dos espanhóis. Outros indígenas já o faziam muito antes da chegada dos incas aqui. 

O vale é uma riqueza de visuais, com paisagens naturais magníficas pontuadas por vilarejos de origem inca aqui e ali. O Rio Urubamba em si é modesto, nada a se comparar aos rios amazônicos. Porém, ele deu  e ainda dá  a vida a uma das regiões mais lindas do Peru.
Cultivo milenar do milho na região. (Percebam a miudeza do ônibus na imensidão da paisagem.)
Vista no alto para as montanhas e os terraços em degraus, construídos pelos incas. Esses terraços podiam servir para cultivo, com a técnica de fazer a mesma água da chuva descer gradativamente e irrigando tudo, em vez de em torrente. 
Construções incas no alto. Nenhuma civilização se acostumou ao sobe-e-desce tanto quanto os incas. Imagine percorrer estas alturas (e com pouco oxigênio, pois estamos a mais de 3.000m).
Você se sente um ponto na imensidão.
A forma mais fácil de chegar ao Vale Sagrado dos Incas é a partir de Cusco. Foi o que fiz. So que, em vez de pegar o passeio de 1 dia inteiro que retorna a Cusco, resolvi que não voltaria; ficaria em Ollantaytambo, um vilarejo (que foi minha parada favorita neste vale) já nas proximidades de Machu Picchu. Lá eu pernoitaria para no dia seguinte ir à famosa "cidade perdida dos incas". 

Tivemos muita sorte de a chuva nesse dia dar uma trégua. A melança é grande quando chove, como você pode supor pelo visual das fotos. A subidas se tornariam ainda mais problemáticas. É preciso ter pernas.

Sua viagem terá breves paradas aqui e ali, com tempo livre para explorar as ruínas nas alturas e  se quiser  fazer compras. Este é um roteiro bem turístico, e há portanto vendedores de souvenirs andinos por toda parte. A cada parada onde o ônibus estaciona, há barraquinhas e ambulantes vendendo milho cozido (de diferentes tipos!), batata com molho tradicional apimentado, roupas de alpaca (ou não; leia aqui para saber diferenciar), bolsas de tecido, etc. 
Como você pode ver, os lugares (e as pessoas) são bastante pobres e simples.
Acho que paguei R$ 2 nesse pratinho de batata e ovo cozidos regados com uma salsa picante por cima. A batata ficou meio seca depois a salsa acabou, mas deu pra complementar o café da manhã.

Com o tempo eu percebi que não era o único brasileiro do grupo. Encontrei uma curitibana morena que estava viajando solo, e nos ajudamos com as fotos. Mais adiante, comprando trufas de maracujá numa parada, percebi que a vendedora era brasileira também, uma loira de Salvador que veio ao Peru e nunca mais voltou ao Brasil. "Uma energia dessas. Eu vim pra cá e nunca mais saí.", disse-me a conterrânea de tranças no cabelo e trufas deliciosas. 
Vendedoras fazendo marcação.
Com a vista ao fundo.
Chegaríamos a Ollantaytambo no meio da tarde. Como o vilarejo fica "escondido" entre as montanhas, o pôr do sol acontece bem cedo. É fundamental chegar aqui antes dele, senão você não enxerga mais nada. Há escadarias imensas do tempo dos incas subindo a montanha, assim como mirantes e passadiços lá no alto.

Acho que nunca estive num lugar mais "Indiana Jones".
Eis as escadas, rumo à luz.
Eis a vila, entre as montanhas.
E eis as alturas, com os miúdos caminhantes ali.
Você passa bem umas duas horas circulando lá por cima, se não mais. É preciso pagar pra entrar, mas o preço é modesto, e vale muito a pena. Eu já disse que prepare as pernas? 
Subir, subir.
As formiguinhas rumando ao alto.
E, no alto, edificações dos tempos dos incas. 
Pausa para um descanso...
... e gaiatices fotográficas, mirando o pôr do sol lá do alto.
A luz já deixando Ollantaytambo ao final da tarde.
Depois de vasculhar antigas casas de estocagem, postos de observação, e caminhos pelo alto das montanhas  e depois se sentir miúdo nessa imensidão montanhosa  a noite cobre tudo e você não vê mais nada. Nem se dará conta das gigantes que o circundam.

Aquela formação na parte baixa da foto acima são barracas de souvenirs. Elas lotam aquela praça principal de Ollantaytambo, mas vão todos embora assim que o sol se põe e que os turistas partem.

Peguei minha mãe, que estava aguardando lá embaixo, e peguei também uma deliciosa Inca Cola para refrescar. (Mentira que não é deliciosa, o troço é ruim pra diacho, com um gosto artificial que lembra chiclete e uma cor amarelo-ácido-de-bateria. Mas quebra o galho.)  
Tomando Inca Cola. (A cara não foi proposital. Esta foto foi tirada sem o meu consentimento. O alívio é autêntico. Beba Inca Cola.)
Meninada vestida com trajes tradicionais da região na feirinha.
Terminado o dia, despedimo-nos do restante do grupo e ficamos para pernoitar aqui em Ollantaytambo. Em retrospecto, acho até que poderíamos ter passado um pouquinho mais de tempo nesse vilarejo. 

Você pode pensar que, terminado o sol, terminou o espetáculo. Mas Ollantaytambo é bem bonitinha, toda de ruas e regos e calçamento e aquedutos feitos pelos incas nos séculos XIV e XV, e com casas que conservam até hoje suas sólidas bases de rocha maciça.  
Ruas do vilarejo de Ollantaytambo. (Me disseram que ficasse de olhos abertos se perambulasse à noite por corredores estreitos, mas não cheguei a sentir risco.) 
As casas com suas fundações inteiras feitas no tempo dos incas. 
Arcadas seculares que hoje servem de entrada a restaurantes.

No final das contas, achei Ollantaytambo um vilarejo muy precioso, como gostam de dizer em espanhol. De quebra, é cheio de albergues, hostels e pousadas fofinhas. (A que ficamos tinha jardim, quintal com plantas e rochedos, etc.) E não são caras. 

Chegando a noite, o pretume vai se formando onde antes havia as montanhas. O recorte fica delineado pelo céu, cuja cor vai se transformando mais devagar. A melhor decisão foi pernoitar aqui antes de ir a Machu Picchu, aqui perto. Entre cá e lá uma pizza, e a noite a ser admirada no céu.
Uma outra praça de Ollantaytambo ao anoitecer.



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Em Cusco, a antiga capital inca e o umbigo do mundo

Estátua do imperador Pachacúti (1438-1471) na praça principal da cidade de Cusco, a antiga capital inca.

O mundo estava acabando quando chegamos a Cusco. Ao final das oito horas de viagem de trem no Andean Explorer, a chuva engrossou tremendamente, até virar um daqueles acaba-mundo.

A estação de trem de Cusco é minúscula. Fora da grade, e em todos os arredores após a área restrita para desembarque, motoristas de táxi amontoavam-se irrequietos e gritando famintos em nossa direção tais quais zumbis de The Walking Dead.


Não havia outra opção senão render-se à sua sanha. Tentei, inutilmente, descobrir se haveria um ônibus ou alguma forma de transporte coletivo. Mas, estamos na América Latina, e uma de nossas muitas infelicidades é depender quase que exclusivamente de automóvel para se deslocar. Rendi-me a um taxista. A chuva era tamanha que explorar as ruas no exterior da estação  ainda por cima à noite  estava fora de cogitação. Sempre detesto tomar táxi em cidades que desconheço, pois invariavelmente enrolam, e desta vez não foi diferente.


Nas ruas, corredeiras de água da chuva pareciam transformar-se em verdadeiras torrentes com o volume e a inclinação íngreme das ruas 
 parecia que derrubariam até as suas pernas, se lhe encontrassem pela frente. Do lado de dentro, o taxista já falava de querer o pagamento antes de parar o carro. Reconheçamos: os táxis no Peru são baratíssimos, coisa de R$ 5 uma corrida. É a insegurança da malandragem que incomoda, e saber que você está nas mãos dele.

Paguei, e ele parou o carro para eu retirar a bagagem que tolamente deixei no porta-malas. Por sorte, não deu nada. Paguei a merreca de 7 soles em vez de 5 (praticamente o mesmo em reais), molhei-me até a alma, e buzinei à porta do albergue dizendo que tinha uma reserva.

A minha rua, seca no outro dia de manhã, como se nada tivesse acontecido.
Como você pode ver, Cusco é uma cidade pobre. Não se iluda com as fotos pitorescas que os sites de viagens lhe mostram  há, sim, aquele centrinho histórico bonitinho, mas o grosso da cidade é "popular" dessa forma aí. Cusco hoje é uma cidade de quase meio milhão de habitantes (pobres).

Algum tempo se passou desde que, nos idos de 1200, os incas chegaram aqui "fugidos" de um desastre natural nas margens do Lago Titicaca. Assim conta a origem mítica do Império Inca, que quatro irmãos e quatro irmãos deixaram aquela região após uma hecatombe climática e migraram para cá, para a cidade então chamada de Qusqu. O nome vem de qusqu wanka, ou "Pedra da Coruja", e a cidade já era habitada pelo povo Killke desde o ano 900. Há datação com carbono-14 de muralhas de 1100 aqui, portanto pré-inca. Algumas delas permanecem visitáveis, como a impressionante cidadela de Saksaywaman.

Ruínas de Saksaywaman, cidadela a 3.700m de altitude que os incas tomaram dos Killke no século XIII e construíram por cima. A maioria dessas edificações  inclusive com aquedutos que você vê na foto  são da época inca. 
Aqui ocorreu uma das últimas batalhas entre incas e conquistadores espanhóis. Cronistas da época falam em torres de pedra, terraços abertos para cerimônias e uso militar, e dezenas de amplos salões para estocagem de armas e suprimentos. Saksaywaman caiu em 1536, já após a varíola e o sarampo terem matado grandes números de gente e inclusive o imperador inca. (Caso você queira ler mais sobre descobertas mais recentes acerca das civilizações das Américas, veja aqui.)
Cusco caiu em 1537. Seu coração era a Awkaypata, que na época dos incas era a maior praça do mundo. Depois ela foi renomeada  de modo não muito original  Plaza de Armas, nome que carrega hoje como em outras dezenas de cidades da América Hispânica. E foi reduzida em tamanho porque os espanhóis acharam que aquela praça era grande demais. Hoje a Plaza de Armas tem apenas uma fração do tamanho da Awkaypata original.

Eram 190 x 167 metros recobertos de areia branca trazida das praias do Pacífico. Diariamente, homens passavam pra lá e pra cá "varrendo" a areia, isto é, ajeitando pra que fique rente e bonitinha. (Caso você ache que esse é um trabalho besta, lembre que no império inca todos tinham uma ocupação, e fique sabendo que eu vi imigrantes indianos fazendo isso no Catar em pleno século XXI. Eu, com a minha cara de pau, perguntei a um deles qual era o propósito daquilo. Ele olhou pra mim sem responder, e voltou a aplainar a areia. Veja aqui.)


Ainda hoje você vê nos arredores da Plaza de Armas de Cusco as bases dos edifícios de pedra, cujos blocos  originalmente unidos sem cimento  são tão juntos que os espanhóis da época diziam que "não entra nem um alfinete". 


Hoje, é claro, você vê igrejas e mansões coloniais. À época dos incas, veria veria placas de ouro polido à frente de arcadas de pedra, reluzindo ao sol junto com a areia branca, que juntos deveriam produzir um verdadeiro esplendor de luz. (O ouro, é claro, foi levado pelos espanhóis e hoje decora as igrejas e palácios de época na Europa e nas Américas.) 

Casas no centro de Cusco com as fundações de pedra do tempo dos incas.
Em Cusco o que você mais vê são as camadas sobrepostas dos vários períodos de sua história. Este era Qurikancha, o Templo do Sol, sobre o qual foi erguido uma igreja e mosteiro dominicanos.
A Plaza de Armas de Cusco hoje.
Awkaypata era "o umbigo do mundo", diziam os incas. Era o coração da capital e do mundo tanto no sentido geográfico quanto cosmológico. Daqui saíam 4 estradas, uma para cada uma das 4 regiões do império, e aqui se encontravam também os muitos "fios" de energia (zeq'e) ligando lugares sagrados da região (wak'a), e formando uma teia invisível que tinha esta praça principal de Cusco como o seu centro. (Ver 4 características fundamentais da sociedade inca e de que você provavelmente nunca ouviu falar.)

Você hoje acha uma abundância imensa é de agências de turismo nessa praça principal. Passeios pelo Vale Sagrado dos Incas, viagens a Machu Picchu, trilhas, etc. Às portas das lojas, nos arredores da praça, você vê várias moças e rapazes devidamente com suas pranchetas e folhetos olhando pra um lado e pro outro à busca de turistas.


Numa dessas, num dia melado e chuvoso, é que eu tomei o city tour. Acho que vale a pena, pois há muito conhecimento cultural e histórico que um bom guia pode lhe passar  do contrário, você irá apenas olhar pedras. 


O meu guia foi Gabriel, o senhor dos anéis. Um peruano baixinho de gel no cabelo e uns 5 ou mais anéis nos dedos. Caminhamos com ele pela estátua dourada do imperador Pachacúti, o nono inca e responsável pela edificação de muito de Cusco, na praça principal, e dali fomos ao convento dominicano erigido sobre as bases de construções incas.  

Pátio central do Mosteiro Dominicano em Cusco, erigido sobre o templo inca Qurikancha, ao deus sol.
Edificações do tempo dos incas. Perceba mesmo como ali não passa nem um alfinete entre um bloco e outro. E sem cimento. Os incas construíam em sistema de macho-e-fêmea, ou seja, blocos com pontas e blocos com aberturas, que se encaixavam uns aos outros para dar estabilidade. Deixavam também uma breve folga para que a construção resistisse ao chacoalhar de terremotos. A construção é tão boa que está aí assim conservada até hoje.
Gabriel explicando-nos esse desenho da cosmologia inca feito por um cronista indígena convertido, em 1613, exposto no Templo do Sol. Não vou entrar em detalhes da cosmologia inca porque ela é complexa e eu nem a entendo tão bem assim, inclusive porque ela não divide o cosmos em simples dimensões espaciais paralelas, mas em dimensões de tempo-espaço diferentes. É o conceito de pacha na língua quíchua. A ilustração feita por Joan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui Salcamaygua consta em sua obra Relación de Antiguedades deste Reino del Pirú (1613). (Sim, a ortografia espanhola mudou com o tempo.) 

Ao contrário do que você provavelmente pensa, no entanto, o deus sol (inti) não é o principal na religião tradicional inca, e sim Viraqocha, deus criador. As concepções, com o tempo e a catequização, foram sendo ajustadas ao deus criador bíblico e às ideias católicas de céu e inferno. Hoje, há uma bela estátua branca do Cristo Redentor numa das colinas de Cusco  chamado popularmente de Cuscovado. (É sério. Eles adoram fazer esse trocadilho especialmente com brasileiros.)

O Cuscovado lá em cima, naturalmente bem menor que o carioca.

Foi com Gabriel que eu também fui a Sachsaywaman, após comprar uma charmosa capa plástica de chuva pelo equivalente a dois reais na praça. O meu charme foi registrado por um fotógrafo enquanto caminhávamos pela rua, e posto junto com outras paisagens do Peru para eu comprar. Comprei, é claro.

Dali eu iria, no dia seguinte, àquelas paisagens ali: conhecer o famoso Vale Sagrado dos Incas e, a seguir, a lendária Machu Picchu.