quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Porto: uma cidade e um vinho

Cidade do Porto, à margem do Rio Douro.
Segunda cidade de Portugal, mas para muitos a primeira. O Porto guarda preservadas áreas antigas, ao passo que em Lisboa muito se perdeu no terremoto de 1755. Além disso, aqui há dos vinhos mais famosos do mundo, o Vinho do Porto, que a maioria dos brasileiros já ouviu falar mas nunca experimentou.

Cheguei aqui numa viagem curta de uma semana em Portugal, após alguns dias em Lisboa (que eu já havia relatado numa outra viagem, embora talvez faça outro algum dia). A estação de trem em si já é um deslumbre, repleta de azulejos seculares. Era verão, portanto um vento agradável passava por este salão de entrada.
Salão de entrada na estação de trens central do Porto.
Salão de entrada na estação de trens central do Porto.
Azulejos na estação de trens do Porto.
Azulejos na estação de trens do Porto.
Estação no Porto. Sistema eficaz de trens que seria muito bem vindo no Brasil...

Mas "estação de trens" seria um termo pouco usual em Portugal. Terminal de comboios é mais usado. Além deles, há por toda parte "o elétrico", que são os bondes elétricos que fazem o transporte dentro das cidades, como era nas cidades brasileiras no início do Século XX, antes do desmantelamento, e que agora estão tentando reintroduzir no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e outras capitais. (Vejam esta boa matéria de 2013 da  revista Exame sobre o papel dos bondes na reforma do transporte público no Brasil).

Mas voltemos ao Porto. Da Estação Ferroviária de São Bento é uma curta caminhada até o nosso albergue, cruzando o centro antigo. Curta, contudo, não quer dizer fácil, pois o Porto é cheio de sobes e desces. No caminho se passa pela impressionante Torre dos Clérigos, além de muitas lojas à antiga e que fazem você se sentir em um Harry Potter à portuguesa ou n'algo outro de época.
Interior da Livraria Lello e Irmão, na cidade do Porto.
Casario antigo e a Torre dos Clérigos. (Ela não é torta; é a perspectiva da foto).
Casas, e a entradinha pra a ruela do nosso albergue ali no fundo da foto, a Rua dos Caldeireiros, paralela à Rua de Trás.
A cidade do Porto é repleta de ruelas. Às vezes você se desorienta com elas, que sobem, descem, e fazem a curva. Infelizmente nem sempre essão tão conservadas quanto poderiam  há algum lixo, as casas estão muitas precisando de uma restauração, e só os gatos é que passeiam pelas ruas. Essas ruas do miolo histórico do Porto são estranhamente quietas. Quase que a única vida era das senhoras estendendo roupas em seus varais no terceiro andar.
Ruelas no Porto. As bandeirolas, suponho eu, são porque era junho. E em Portugal também se celebram  e muito  as festas dos santos de junho: Santo Antônio (dia 13), São João (dia 24) e São Pedro (dia 29).
As curvas das ruelas... vazias.
Senhora estendendo roupa na varanda.

E onde estão as pessoas? Bom, basicamente em duas outras áreas. Primeiro, na parte nova  ou, digamos, menos antiga da cidade, onde as ruas são bem mais amplas, e onde há o comércio. São áreas, eu até diria, mais bonitas da cidade do Porto, com árvores e casas melhor preservadas. Há o belo Banco de Portugal,  praças amplas e, é claro, igrejas. Aqui em Portugal quase não há vizinhanças sem igrejas.
Espaço amplo na Av. dos Aliados, com estátua de D. Pedro IV (o nosso D. Pedro I).
O Jardim da Cordoaria, no centro do Porto.
Pracinha afável.
Igreja da Nossa Senhora do Carmo, com revestimento de azulejos no exterior.
Prédio do Banco de Portugal.
Câmara Municipal do Porto.
Por essas ruas é possível achar as famosas francesinhas pra comer. Calma, antes que pensem que é alguma depravação minha. As francesinhas são um tradicional sanduíche de carne aqui do Porto, com salsicha, linguiça, bife, tudo misturado. Mais carne impossível. Passei longe, mas há quem goste.

Muito mais interessantes me foram os pratos de bacalhau, que aqui vem servido de dezenas de formas diferentes. Enquanto que nos cardápios de países anglófonos o hábito é discriminar exatamente o que vem dentro, aqui  como no Brasil ou na Itália  você precisa alugar o garçom pra ficar perguntando: "E esse aqui, bacalhau ao não-sei-o-que, vem como?"
No final pedi o Bacalhau à Zé do Pipo, que vem com pimentão, batatas cozidas inteiras e uma leve fritura no peixe, regado a muito azeite de oliva. Restaurante Arroz de Forno, recomendadíssimo!
Quase sempre são nomes que não te dizem nada acerca de como o bacalhau vem, a menos que você já conheça (é meio que como escolher sabor de pizza no Brasil, só que sem a lista de ingredientes): Bacalhau à Gomes de Sá, Bacalhau à Brás, etc. Todos tendem a ser muito saborosos (já provei uns 5 tipos), mas não abuse, ou pode enjoar, pois sempre é peixe e quase sempre vem batatas. (E não se esqueça, aqui em Portugal eles não costumam tirar as espinhas).

Um percorrer de olho pelos cardápios portugueses são sempre uma diversão:
A linguagem nos cardápios portugueses. Alguém aí arrisca dizer como é uma Espetada de Boi Escangalhada? (Meia "dose" é meia porção).

A outra área da cidade que junta gente é o porto propriamente dito, a margem do Rio Douro, que banha a cidade. Não é assim o "ó do borogodó", e não é recomendável comer nem comprar nada lá, pois é mais caro, mas vale a pena ver pra uma caminhada curta. A área é relativamente pequena.
Margem do Rio Douro na cidade do Porto, com várias barracas vendendo coisas.
Às margens do Douro, com a bela Ponte Dom Luís ao fundo.

É uma cidade com suas belezas, embora pequena, muito menos que Lisboa. Tudo aqui se faz a pé, e dois dias aqui provavelmente são o suficiente pra visitar.

Mas eu prometi falar não só da cidade, mas também do vinho. Não há como vir ao Porto e não se interessar pelas degustações daqui. No albergue perguntei como se faria pra visitar essas degustações e se ver algo do vinho. Renata, recepcionista simpática, me atendeu com seu sotaque portuense (ou tripeiro, na zoação dos rivais lisboetas, que zoam por causa das comidas aqui do Porto). Me explicou que nenhuma das degustações fica propriamente no Porto, mas em Vila Nova de Gaia, do outro lado do rio  o que faz do Porto o mais famoso caso de uma cidade conhecida por algo que ela não faz realmente.
Vinhos do Porto.
Toda a produção é em Vila Nova de Gaia, embora na prática sejam ambas uma cidade só (ao menos ao turista; já administrativamente eu não sei como é). Renata me falou também de um Museu do Vinho do Porto, que eu sinceramente não recomendo. É longe e não conta nada muito além da história do vinho e da cidade em algumas poucas vitrines explicativas. No caminho houve até um almoço de Bacalhau ao Brás que deveria ter se chamado Batata ao Brás, porque o peixe passava longe. (Olhar bem onde pedir o bacalhau...).

Mas depois foi só alegria. Na outra margem do Douro, em Vila Nova de Gaia, são muitas as caves a visitar. Os portugueses usam esse nome do inglês (de "cavernas"), mas pronunciando o "a" como "a" mesmo. Isso é porque, na verdade verdadeira, quem produzia e fez a fama mundial do vinho do porto foram os ingleses. Quase todas as grandes marcas de hoje pertenciam a comerciantes ingleses (Croft, Taylor, Graham...) e hoje são multinacionais. Achei emblemático da subserviência econômica história de Portugal à Inglaterra, se me permitem a franqueza.

As uvas são cultivadas ao longo das margens do Douro, e aqui ocorre o processo de envelhecimento em barris de carvalho trazidos... cof cof... da França.
Virginie, guia francesa cercada de barris numa das visitas que fiz.

As visitas pra degustação não custam mais que 5 euros e te dão direito a um tour guiado e a provar dois vinhos no final.

O tchan do vinho do porto é que ele não é simplesmente uma marca, ou um tipo qualquer de vinho. Ele é um vinho fortificado. Interrompe-se a fermentação do açúcar das uvas, deixando o vinho ficar naturalmente doce, e depois acrescenta-se uma aguardente sem sabor pra fortificar. Dizem que a ideia surgiu com as grandes navegações, pra o vinho não estragar. Como resultado, ele normalmente tem 19 ou 20 graus, em vez dos 12 graus da maioria dos vinhos comuns. Por isso as doses são menores, numa tacinha, tomadas como aperitivo (no caso do vinho do porto branco) ou como digestivo (no caso dos vinhos do porto tintos). 

Há dois tipos de vinho do porto tinto: âmbar (mais conhecido como tawny, novamente do inglês) e rubi (ruby). Este último  meu favorito  cai particularmente bem com chocolate amargo, na sobremesa. Dizem que com queijos fortes ele também casa bem. O tawny pode ir com sobremesas que não sejam de chocolate.
Bela combinação de chocolate com vinho do porto ruby. (E a gula que me dá ao escrever isso?)

As caves de degustação  claro  vendem os vinhos, mas você pode encontrar as mesmas marcas (e portanto a mesma qualidade) em qualquer supermercado depois.

No geral, o Porto é uma cidade agradável para uma visita de final de semana. Quase não há fado aqui (para os que vêm em buscar disso), mas dá pra passar uns dois dias, tirar umas fotos nas partes antigas, ver o rio e provar uns vinhos. Vale a pena incluí-la em qualquer roteiro de Portugal (até mesmo porque de trem facilmente se cruza o país).

Se alguém ainda não estiver convencido, deixo algumas fotos da cidade à noite.





quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Lago Bálaton: férias no interior da Hungria

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Lago Bálaton, a riviera da Hungria.
A Hungria é linda, e recomendo a todos visitar Budapeste (ainda faço um post sobre ela). Mas não se conhece um país só visitando a capital. As comidas, as pessoas... normalmente é no interior que você vê o que há de mais tradicional, e esta visita a Siofok e a Balatonfüred não me deixa mentir. Pequenas cidades à beira do lago, onde os húngaros vêm curtir o verão.

O Lago Bálaton é o maior destino de férias dos húngaros. Como a Hungria não tem litoral, vêm todos pra cá. Na época da Guerra Fria, quando os países comunistas restringiam a ida de seus cidadãos aos países capitalistas do mediterrâneo, o Bálaton era um destino popular para gente na Alemanha Oriental, Tchecoeslováquia e outros deste lado de cá da Europa.
O Lago Bálaton tem cerca de 77km de comprimento e vai até 14km de largura. Às vezes dá pra ver do outro lado, mas é bastante comprido. É o maior lago da Europa Central. Água doce.

A viagem até aqui são poucas horas de trem de Budapeste. Você faz conexão em algum lugar perdido no interiorzão até chegar em Szabadisóstó. Esse último trecho é meio lento, já que a maior parte dos trilhos não são duplicados. A razão? A Hungria perdeu a guerra. Era aliada da Áustria e da Alemanha, e uma das medidas dos Poderes Aliados (EUA, Reino Unido...) foi desmantelar as bases industriais dos vencidos, e assim desmancharam todos os trilhos duplicados da Hungria, pra dificultar o transporte por trem. Como o país depois veio a ficar sob o jugo da União Soviética, a coisa nunca se regenerou ao nível de antes -- ao menos não aqui, perto de Szabadisóstó. As marcas da guerra continuam presentes afetando a vida das pessoas.
Interior do trem. Calor de derreter o juízo no verão húngaro.
Nossa metrópole.
Com ou sem demora, chegamos  eu e alguns amigos, incluso um casal húngaro com uma "casa à beira do lago" aqui. Casa pequena, mas assim fica mais aconchegante (não, não é suruba). Nessa parte do lago ele é cercado por propriedades privadas, cada qual com seu pedaço particular de "praia". Decidimos que entraríamos no lago , à noite mesmo. E como o lago é raso, você caminha dezenas de metros antes de a água ficar alta. No escuro, eram só a lua e as estrelas além da água, com certa neblina. Parecia As Brumas de Avalon.

Na manhã seguinte veríamos o lago propriamente. Para o almoço, os anfitriões resolveram fazer um goulásh caseiro, um escaldado de carne tradicional húngaro. Mesmo sendo vegetariano, admito que provei ligeiramente e que o negócio é bom. Trata-se de carne com especiarias várias (os húngaros adoram condimentos, muuuito diferente da culinária alemã-austríaca ou mesmo dos eslavos vizinhos). Procure comer num lugar bom, pois o que não falta em Budapeste é goulásh mentiroso pega-turista. Se lhe venderem como sopa, há uma boa chance de que encheram de água e estão lhe enrolando.
Goulásh húngaro. Esqueça o ovo e os outros acompanhamentos. 

Após um dia de maresia (lagueria?), saímos à noite. Szabadisóstó é só um distrito, então não oferece muito. Há basicamente um cruzamento que é o centro, com um só bar onde Victor, um cantor meio piegas, canta toda noite. Fomos lá várias vezes e ele sempre chama as crianças ao palco pra pelo menos uma música. A parede de fundo do palco já é até a foto dele próprio sorrindo. Canções húngaras que parecem os equivalentes dos clássicos sertanejos daqui.

Mas havíamos alugado umas bicicletas, e pedalamos meia hora até o centro de Siófok, a cidade principal nessa região. Parecia Miami Beach  sem a beach. Carros e luzes por toda parte, música bombando, jovens baladeiros pra todo lado, e até dançarinas quase-nuas dançando no mastro à porta das boates.
Pessoal tomando uma espécie de caipirinha coletiva.

O dia seguinte foi cheio. Parte resolveu ficar dormindo, e nós  os mais enérgicos  pegamos logo de manhã o ferry com nossas bicicletas para o outro lado do lago. Começamos pela bela área de Tihany, onde há igrejas históricas, vendinhas de artesanato, mansões e muito verde. Isso fica no alto de uma colina, e subir de bicicleta estava fora de cogitação, então estacionamos e fomos a pé. Mesmo a pé é uma subida inglória, mas vale a pena.
Mansões em Tihany, com o lago ao fundo.
Igreja em Tihany.

Em baixo há uma área de banho onde você vê a criançada de bóia e aquela coisa toda. Após o passeio em cima, fomos nos refrescar e encontrar o restante do pessoal. Apesar de não ser uma praia de mar (com ondas e talz), é legal. Estavam insistindo pra que eu provasse uma iguaria húngara  bem, talvez não exatamente uma iguaria, mas um lanche, o Lángos [langósh]. Trata-se de uma fritura redonda, do tamanho de uma pizza pequena, com massa de pastel, repleta de creme de leite em cima e queijo. Não é exatamente o lanche leve que os nutricionistas recomendam pro verão, mas eu não quis sair sem provar. O óleo vai descendo, e haja guardanapo.
Comendo lángos na Hungria. Não há como não se lambuzar quando você morde aquele pedaço cheio de creme.
Sair pra pedalar com a barriga cheia do lángos não foi uma boa ideia. Zarpamos daquela praia à tarde em direção à cidade próxima de Balatonfured, de bicicleta, uma meia-hora, e eu só sentia meu estômago pesado e minha cabeça girar, que eu quase não ficava de pé. Aproveitei que paramos num supermercado de beira de pista no meio do caminho e peguei uma coca-cola pra ver se resolvia. Ajudou, embora o resto da pedalação não tenha sido exatamente agradável.

Por sorte, em Balatonfured há um negócio duma fonte de água -- parecendo essas de Minas e Goiás -- curativa em que o povo faz fila pra encher as garrafas e levar pra casa. Tomei meio litro, e foi também o tempo de digerir e ficar bom. Deu tempo de passearmos pela bela cidadezinha e ver uma feira de artesanato e produtos típicos à beira do lago.

Entre outros, o pessoal comeu do tradicional pão com banha de pato (passada como se fosse manteiga), que os húngaros adoram, e tomamos do vinho húngaro tipo Tokaji Aszú, que é bom. (Não tem nada de azul no vinho; a pronúncia é Tokái Ássu, hehe). É de cor topázio, e a qualidade é medida em número de putônios. Acho que vai de 1 a 5.
Passeando à beira do lago em Balatonfured. A feirinha de produtos típicos é debaixo desse boulevard de árvores.
O vinho Tokaji Aszú húngaro, cor de topázio e avaliado em putônios. Tem sabor de vinho banho adocicado, que me lembrou uma mistura de rolha com passas de uva branca. É saboroso.

Feirinha muito agradável. Já a volta de ferry à noite, com as bicicletas no meio do povo, já não foi tão agradável assim, meio muvuca, mas deu certo. Na chegada, ainda deu tempo de pegar as últimas canções de Victor no barzinho de Szabadisóstó. Ele  sem saber que eu estava presente  nos "brindou" com Ai se eu te pego no fim do show. A empolgação dele cantando em português faria Michel Teló tremer. Claro que o pessoal fez lobby pra que eu me apresentasse como brasileiro e subisse ao palco com Victor (ele, claro, ficaria maravilhado), mas não fiz isso. Talvez tenha perdido minha chance de subir ao estrelado na Hungria, mas é isso mesmo.

O dia seguinte era dia de partir, depois de uma folga muito agradável e bem típica aqui no interior da Hungria. Mas antes de tomar o trem de volta a Budapeste ainda paramos pra almoçar. Um calor miserável, daqueles que fica ainda melhor quando você entra num restaurante fechado quente e toma aquela sopa que te esquenta ainda mais. Foi preciso muita destreza pra evitar que o suor da testa pingasse na minha sopa de cebola. Afora isso, estava gostoso.
Curiosamente, a sopa é servida dentro desse pão grande. As sopas húngaras de cebola são maravilhosas, e bem cremosas. Ali ao lado, arroz e cogumelos. À minha frente, dois crepes de chocolate, comuns por toda a Europa central e oriental. E vocês se perguntam como eu faço pra manter o corpinho, hein?

A Hungria reserva das coisas mais interessantes (e desconhecidas pra nós) na Europa. Vale muito a pena. As pessoas são bem risonhas e descoladas, a cultura é muito rica, e a culinária se tornou das minhas favoritas (mesmo saltando fora das banhas de pato e companhia). De quebra, ainda é um país barato de se visitar. A única coisa de pouco valor aqui nesse país é a moeda (o forint  são em média 300 pra 1 euro), pra a sorte dos turistas.

Uma hora ainda continuo, com posts sobre Budapeste.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Praias romenas, trens quebrados, e ciganos

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Praia de Costinesti, litoral da Romênia no Mar Negro.
Pra que todos estejam geograficamente bem situados. A Transilvânia fica no meio da Romênia, ali mais ou menos onde está o nome do país.

A Romênia é um destino mais interessante do que se imagina. Eu comecei minha visita por Bucareste, a capital, seguida da Transilvânia, a região mais interessante do país e repleta de lindas cidades históricas e belas paisagens naturais  além da história do Drácula pra atrair muitos turistas. Essas partes foram relatadas já há algum tempo, e eu nunca terminei. Mas agora finalmente chegou a hora.
(Pra quem não conferiu ou quiser reler os anteriores: Chegando à Romênia e Mairon na Transilvânia)

A praia é um elemento indispensável na cultura romena. Quando a temperatura sobe, os romenos vêm aos milhares para as várias praias da costa do Mar Negro, no leste do país. É água quase parada, de mar fechado, que não se compara nem de longe às praias tropicais. Mas pra eles, e pra os europeus em geral, está bom. Além disso, muito da praia não é a praia em si, mas a "pegação", e as festas noturnas depois de bronzear-se o dia inteiro na areia. Grande parte dos summer hits europeus, quase ninguém sabe, mas vem da Romênia.

Alerta: todos os hits são bastante viciantes, e breve você estará até varrendo o chão no ritmo dessas músicas. Estão avisados. (Mas vale a pena).


Alexandra Stan, romena de Constanza, cidade praieira, com seu sucesso Mr. Saxobeat, que você provavelmente já ouviu.

Inna, outra diva romena em ascensão com seus hits de verão ouvidos por toda a Europa.

E pra não dizer que é um sucesso só pela sensualidade das mulheres, aqui Edward Maya (nome artístico do romeno Eduard Marian) com o sucesso Stereo Love, com 200 milhões de visualizações no YouTube e que você provavelmente já ouviu aí nas discos da vida.

Bom, e lá fui eu. Voltando da Transilvânia, paramos brevemente em Bucareste, eu e minha amiga Alina, pra pegar uma outra colega, Rux (de Ruxanda), ambas romenas. Y vamos a la playa.

Um trem te leva facilmente de Bucareste a qualquer das cidades praianas  muitas delas pequenas, e dedicadas principalmente a essa população turista. Escolhemos Costinesti, a 4 horas de viagem. O trem vai basicamente lotado de jovens, alguns deles ciganos. Você percebe a diferença pela aparência e pelo jeito. Fisicamente são um pouco mais escuros, cabelo liso ou meio ondulado e também escuro, e frequentemente usam muito mais adereços (brincos, anéis, pulseiras). Eles também têm um jeito mais solto, que alguns podem entender como meio baderneiro em algumas situações. Há bastante discriminação contra eles, e normalmente ficam em seus próprios grupos. Junto de nós havia alguns comendo sementes de girassol torradas, que os europeus do leste em geral gostam pra distrair a boca.
Foto de ciganos na Romênia. O nome politicamente correto é "povo Roma", e a língua que eles falam é o Romani, muito diferente do Romeno, idioma oficial do país. Eu sei, é fácil fazer confusão, e os europeus em geral a fazem. Mas evite, ou é receita certa pra irritar os romenos. Os ciganos aqui estimados em cerca de 620 mil, ou pouco mais de 3% da população de 20 milhões de habitantes da Romênia.

Chegamos e pusemos as coisas no hotelzinho que havíamos reservado. Um sol de seus 35 graus queimava na rua, meado do dia. Aquela luzerna no asfalto e o calorzão  bem Brasil. O hotel era meio chinfrim: só um corredor sem decoração alguma e quartos laterais, mas quebrava o galho. O dono era daqueles praieiros veteranos que andam pra todo lugar com óculos escuros na vista ou na cabeça, beirando os 40 anos mas ainda achando que tem 20. Regata branca, e aquela atitude de surfista.

Ele não falava nada de inglês, mas quando minha amigas lhe disseram que eu era brasileiro, fez uma festa. Olhou pra mim fixamente com aquela cara de "como faço pra me comunicar". Resultado: Me deu uns tapinhas daqueles de tiozão no ombro e, segundo as meninas, me contou que a mãe dele assistia novelas brasileiras e gostava muito. (E elas são mesmo muito populares na Romênia). Eu retribuí com aquele sorriso amarelo que a gente no Brasil é PhD em dar.

O tio recomendou um restaurante perto dali, e fomos. As redondezas eram só casas e asfalto, como num bairro residencial de cidade do interior no Brasil.
Área de chegada do trem em Costinesti. Nada muito chique.
No restaurante, apareceu o tio de novo fazendo aquela social, com aquela pose de "Eu conheço todo mundo aqui, a comida é ótima". Não era. Comemos uma pizza malacabada e mamaliga, que é a versão romena da polenta italiana. Os romenos, como nós no Brasil, comem pizza com ketchup  para o horror dos italianos. Mas é que estava mal feita mesmo. Já a mamaliga, que eu peguei como "entrada" pra experimentar, revelou-se um prato cheio que eu  pasmem  não consegui terminar. Aquele pratão de mingau de milho pastoso, coberto de creme, e com pedaços de um queijo branco salgado por baixo  parecendo queijo coalho. Não foi exatamente a minha melhor refeição.
Essa foto é da internet, mas parece com a que comi. À exceção que na minha os pedaços de queijo estavam inteiros, e o prato era maior. Esta é a mamaliga branza (branza é nome desse tipo de queijo branco). Tal como a polenta italiana, há várias formas de fazer. Mamaliga com carne é quase o feijão-com-arroz dos romenos.

Com o bucho cheio, por volta de 1h da tarde, fomos à praia (crianças, não façam isso em casa). Já estava lotada, com a areia repleta de toalhas e sombreiros, mais o diferencial de que aqui as pessoas fumam muuuuito mais que no Brasil, então quase sempre tem dois ou três de cigarro aceso perto de você. Outro diferencial é que aqui é normal as mulheres fazerem top-less (se surpreenderam quando eu disse que no Brasil não era; justo o Brasil, esse país de fama caliente e de gente sexy). Pois aqui, e em grande parte da Europa, é. Às vezes é um colírio para os olhos, outras vezes é álcool-gel e você se arrepende de ter olhado naquela direção.

O ambiente quase sempre tem um beat, um summer electro-hit tocando em alguma tenda ou venda próxima, então imagine-o com o som.
Numa parte estreita da praia.
Praia lotada.
Aqui não há a vendedora ambulante de salada de frutas, ou os vendedores de picolé e queijo coalho na brasa, mas há outras coisas que o pessoal come na areia. Vi milho assado, mas preferi um kürtőskalács (pronuncia-se Kurtósh Kalátch), um rolo de pão com canela e açúcar, tradicional húngaro mas que é popular aqui também. Embora não seja minha comida de praia favorita e eu ache que cai muito melhor como comida de Natal, é gostoso.
Kürtőskalács. São grandes, mais ou menos do tamanho do seu antebraço. E vem quentinho. É bem gostoso, embora eu não ache que combina tanto com praia. 

Ficamos lá, entre a areia e a água, até o cair da tarde. À noite o lugar se transforma, e entram em cena as boates, os restaurantes com música ao vivo, e várias coisas de entretenimento na rua, lembrando aqueles parque de diversões à antiga, com luzes coloridas, máquina dar murro que mede a sua força, essas coisas. Achei uma tenda que vendia toalha de banho com seu nome costurado nela, e mandei fazer uma.

Pra mim o mais legal de tudo  embora minhas amigas romenas discordassem veementemente  eram as casas de música cigana, o manelê. Mais uma vez, chamar isso de música tradicional romena é receita certa pra tirar um romeno do sério. Eles dizem que as letras são vulgares e cheias de erros. Mas pra quem não entende nada, o ritmo é gostoso. Todo ano há a competição nacional Miss Piranda, pra eleger a melhor dançarina. Normalmente, são acompanhadas de cantores ciganos bem vestidos de jeito meio gângster. É hábito cigano às vezes jogar dinheiro nas dançarinas. É bem curioso de se ver.

Pra quem quer ter uma ideia do ritmo, da dança e do ambiente, essa, se eu não me engano, é a vencedora do Miss Piranda 2012.
(Pra quem quiser ver melhor a dança  que parece mas não é a dança árabe  vejam esse também: Concurso Miss Piranda. Os romenos podem espernear o quanto quiserem, mas a dança é bonita e o ritmo é gostoso).

Mas não teve jeito, não consegui convencer minhas amigas a ficarmos numa das casas de música cigana. Acabamos circulando por várias casas de show até as coisas irem fechando na madrugada. Nos próximos dias, o programa não foi muito diferente, com praia de dia e cidade à noite. Ao que parece essa é a receita básica dos verões cá na Europa.

A muvuca foi, terminado o fim de semana, voltar pra Bucareste. O trem estava picado de gente. Estava claro que não sentaríamos, a não ser no chão do corredor. Pra coroar, o trem quebrou. Empacamos no meio da zona rural por horas, e o calorzão  já que não havia exatamente janelas, só basculantes  subiu. Mas a muvuca já estava instalada mesmo antes de o trem quebrar, pois o trem estava superlotado e, na surdina, havia gente usando até a cabine privada dos condutores enquanto estes circulavam pelo trem. Quando o condutor chefe  um sujeito baixinho, gordinho e meio calvo  descobriu, não prestou. Ele ficou azedo. Pelo que entendi, os ocupantes reclamaram que era espaço vazio enquanto o trem estava cheio, ao que ele esbravejou  e, segundo tradução das minhas amigas, disse que a cabine era dele e que se quisesse até se masturbava dentro da cabine e ninguém tinha nada com isso.

Botou todo mundo pra fora. Passados alguns minutos, o vejo todo prosa, sorridente, e deixando as pessoas entrarem de novo. Não entendi. Perguntei a minhas amigas o que havia acontecido, ao que elas me retribuíram com uma cara cínica: "Sério que você não entendeu? Deram dinheiro a ele. Por isso que ele está todo feliz". É...  não é só no Brasil que tem malandragem.

Duas horas depois, o trem voltou a se mexer e nós, suados como a peste, terminamos nossa viagem a Bucareste, onde chegamos já à noite. Para o meu deleite, a mãe da amiga que me hospedou nos aguardava com uma bela mesa, cheia de quitutes caseiros romenos -- muuuito melhores que a mamaliga. Estou até com uma cara gastronomicamente entorpecida na foto.
Quitutes romenos à mesa. Empanados de queijo (no meu prato e garfo), fritatas de batata com ervas ali no meio, e ao lado um tradicional purê de berinjela com tomates em cima. Esse último é maravilhoso. Não aparece ali mas havia ainda a zacusca, uma espécie de molho grosso feito com pimentão vermelho e outros legumes defumados pra passar no pão.

Não sei se por isso, no ano seguinte fui morar com uma romena e provar mais dessas guloseimas regularmente.

Meu voo saía na manhã seguinte, mas certamente não era a minha última visita ao país.

(Pra quem gostou do tema, aqui a continuação alguns anos depois, Praias Romenas 2: Farofa, nudismo e rock n' roll)