sábado, 29 de junho de 2013

Rumo ao interior da Turquia

Ao pôr do sol, eu estava sozinho caminhando por uma beira de estrada turca. Crianças, não façam isso em casa. Terminado o intenso dia em que visitamos Éfeso, as ruínas do Artemísion, a casa de Maria, com direito a paradas interessantes numa loja de couros e numa fábrica artesanal de tapetes turcos, o guia Mehmet nos deixou 5 horas da tarde de volta na cidade. De volta a Kusadasi, onde minha aventura turca começou. Recusei-me a retornar ao hotel de Sezgins, o enrolão, e de dar a ele o gostinho de pedir pra ficar lá mais uma noite e deixar pra viajar no dia seguinte, como ele havia espertamente sugerido. Em vez disso, saí com a mochila ao anoitecer à procura da rodoviária, determinado a pegar qualquer ônibus que me levasse a algum lugar.

A bem da verdade, eu queria era ir a Pamukkale, uma cidadezinha no caminho para a Capadócia. Eu já havia localizado um hotel razoável lá e mandado um e-mail de manhã solicitando a reserva. (Sezgins, obviamente, havia dito "Ah, não se preocupe, se vocês se atrasarem no passeio hoje eu ligo cancelando a reserva pra você e você fica aqui no meu hotel mais uma noite, e viaja confortavelmente amanhã". Quase mandei ele tomar no c...).

A rodoviária de Kusadasi não é tão bem localizada, e nem fica em nenhum centrinho bonitinho. Afastando-se da área turística à beira do mar (por onde eu cheguei), a cidade transforma-se numa paisagem urbana bacafú semelhante às pontas de estrada nos arredores de Feira de Santana, ou da região metropolitana de São Paulo, com as pistas, aquele chão meio de terra dos lados, e uma ou outra casa comercial vendendo peças pra carro, etc. Caminhei uma meia hora por esse cenário, perguntando por "otogar" a quem eu encontrava. Uma das minhas primeiras palavras em turco. E pra quem não percebeu, essa é uma corruptela do francês "autogare" (rodoviária). Não sei porque, mas a língua turca é cheia delas (Outra é "jandarma",  corruptela de "gens d'armes", uma polícia).

Quando cheguei lá já era de noite. Havia escurecido cedo. Com a minha pinta de mochileiro, logo os funcionários de companhia ficaram me gritando "Vai pra onde? Vai pra onde?", em inglês. Por sorte, já havia um ônibus saindo em poucos minutos e que passaria em Pamukkale. Me apressei pra comprar a passagem no guichê e entrei. Não houve problemas. Só esqueci de perguntar que horas chegava...

Dentro, um rapaz que me ajudou como intérprete numa conversa rápida com a funcionária da viação me disse que chegaríamos umas 23:30h. Maravilha, chegar a uma hora dessas numa cidadezinha do interior que você nunca viu, pra procurar hotel com uma mochila nas costas, num país onde você não fala a língua e que nem é tão seguro assim. Ê ideia boa. Mas, com sorte, ainda daria tempo de chegar e dormir no hotelzinho  isto é, se eles não cancelassem a minha reserva. Eu tinha o número, mas se chamasse do meu telefone com chip holandês os créditos evaporariam num instante, e ainda tinha muita viagem pela frente. Então interpelei o rapaz: "Quando custa pra você fazer uma ligação pra Pamukkale? E eu lhe pago. Sai mais barato do que se eu ligar do meu". No começo o rapaz ficou sem entender mas logo sacou. Pegou o número, ligou, e de quebra ainda falou por mim ao cara do hotel, que quando falou comigo basicamente disse "Tá ok, já entendi, estaremos esperando".

No fim das contas, o cara não me cobrou absolutamente nada. Quantas vezes a gente deixa de interagir com as pessoas e de resolver as coisas por conta de uma timidez boba...
Quem tem boca vai a Roma, e a Pamukkale também.

Chegamos lá já era perto de meia-noite. Não havia rodoviária; eles te deixam numa rua qualquer, deserta, e só havia uma casinha ou outra iluminadas. Parecia quase zona rural. Alguns poucos homens em carros parados ou à frente das casas ofereciam táxi e hotel, que eu recusei. Eu não quis tirar foto de noite, até porque não sabia o quão seguro era o lugar, mas o jeitão era esse abaixo. Agora imagine isso de noite.
O naipe de Pamukkale, no interior da Turquia. Parecia que eu estava chegando em Sertãozinho ou alguma cidade do interior do Brasil, dessas de estrada de chão, em que a gente chega com o carro e ve menino semi-nu correndo de um lado pro outro, aquele córrego cheiroso ali no canto, galinha ciscando ali do lado... aquele cenário todo.

E, de fato, haveria crianças de um lado pro outro, e eu avistei algumas galinhas. Mas isso só no dia seguinte. À noite, depois de caminhar sozinho por várias dessas ruas (graças a Allah havia placas indicando a direção dos hotéis, já que é uma cidadezinha turística), cheguei ao hotel, que como vocês podem imaginar é bem simples. Na entrada, os donos estavam ainda jogando gamão com uma luz acesa, e me entregaram a chave do meu quarto. Eu não quis nem muita conversa, e capotei na cama.
O meu hotel é aquele lá atrás, onde está parado o caminhão.

O raiar de um novo dia me pôs de pé. O hotel era simples mas agradável, assim como o café.
Varanda do hotel, onde ficam os quartos.
Descida para o café da manhã, com os donos já ali.
Típico café da manhã turco, com queijo salgado, legumes cortados, fruta e pão.

Enchi a xícara com um chá preto forte como o diacho, que eu botei achando que era café. Aquele ali da foto era outro, um chá de maçã enrolação feito com um pozinho, mas que não estava mal.

Pela manhã, finalmente, saí para fazer o que me trouxe a Pamukkale: ver as termas calcárias, ao lado das ruínas da antiga cidade romana de Hierápolis. Pamukkale em turco quer dizer castelo de algodão, e você vai entender o porquê desse nome. Mas primeiro, perdoem-me a vagareza, mas eu precisava de um café. Aquele gosto de chá preto na minha boca precisava ser retirado de alguma forma.

No caminho às termas, parei pra pedir informação e tomar uma xícara de café num estabelecimento simples, desses tipo "pai & filho", com algumas mesas do lado de fora.
Decoração simples mas bonitinha à frente dos lugares em Pamukkale.

O pai, querendo puxar conversa, veio arranhar umas palavras em inglês comigo. Pra dar chance a ele, comentei como há em todas as cédulas da lira turca a figura de Ataturk, o pai da república turca, um reformador que liderou a formação do novo estado turco em 1923 após o colapso do Império Turco Otomano ao fim da Primeira Guerra. Detalhe: Ataturk é um ídolo para o povo. O senhor reagiu com aquela expressão de "É claro!". E me disse: "No Ataturk, no money", como quem explica que se não fosse por ele não haveria a Turquia moderna. Dali eu puxei pra falar da guerra na Síria, e das revoluções nos países árabes. "Esses árabes...", respondeu ele, fazendo cara feia e mexendo a mão no ar, como quem dá uma palmada na bunda de alguém. Deixem-me dizer a quem não sabe que árabes e turcos não se gostam muito, ainda menos no nível político, talvez pela dominação do império Otomano aqui nesta parte do globo durante tantos séculos.

Terminei meu café e segui para as termas. As formações calcárias dão a impressão de que você está na Antártida cercado de gelo, mas na verdade são calcita trazida do subterrâneo pelas águas termais e depositada sobre as rochas. Você só entra descalços, e precisa se cuidar pra escorregar. Às vezes é firme, às vezes parece que você está caminhando em lodo, mas é muito legal.
Parece gelo mas não é. São formações calcárias em Pamukkale, o "castelo de algodão".
Nas termas em Pamukkale. De roupa porque a água é muito rasa pra se banhar, e nem eu tinha onde deixar minhas coisas.
Plantas e água em meio à paisagem branca em Pamukkale.
Vista em Pamukkale.

Um show à parte era assistir as turistas russas posando pra foto parecendo que estavam sendo fotografadas para a Playboy (e, bem, as próprias russas eram muitas vezes também um show).
Turista russa posando pra foto.
Turista russa posando pra foto.

Numa caverna, perto daqui, junto com o calcário as águas quentes vinham vapores tóxicos do subsolo. Era o chamado Plutonium, pois havia um santuário a Hades/Plutão, o deus greco-romano do mundo dos mortos. Diz-se que só uma classe especial de sacerdotes eunucos sobreviviam aos vapores. Originalmente, era associado também ao culto a Cibele, uma "deusa-mãe" cultuada aqui na Anatólia e depois absorvida pelos gregos e romanos. A caverna foi selada pelos cristãos no século III, mas supõe-se que os vapores continuam lá (algum eunuco se habilita?).

Isso era na época gloriosa de Hierápolis, a "cidade sagrada", que tinham essas termas como um spa local. Aqui o apóstolo Filipe foi crucificado de cabeça pra baixo. A cidade teve seu ápice nos primeiros séculos depois de Cristo, antes que terremotos e guerras a devastassem. Em seu ápice, 100 mil pessoas viveram aqui. Deixo vocês com algumas fotos das ruínas. A seguir, a conclusão da estadia em Pamukkale e a partida para a Capadócia.
Ruínas de Hierápolis.
Ruínas de Hierápolis.
Ruínas de Hierápolis.
Ruínas de Hierápolis.
Ruínas de Hierápolis.
Anfiteatro nas ruínas de Hierápolis.
  

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Tapeçarias turcas

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Tapetes turcos à venda, perto de Éfeso.

Embora a fama no Brasil seja eminentemente dos tapetes persas (hoje Irã), na verdade foram os turcos os grandes responsáveis pela popularização da tapeçaria nos últimos séculos e pela sua difusão no Ocidente. Tapetes já existiam na Pérsia e na Babilônia antigas, mas somente a partir das Cruzadas (séc XI) é que eles começaram a ser trazidos à Europa, e de lá às Américas. A própria Índia, ao contrário do que se pode pensar, não tinha tradição de tapetes até a invasão dos muçulmanos por lá a partir também do século XI. Em particular, esses motivos de padrões geométricos e flores  que hoje se encontram em qualquer tapete ordinário de qualquer casa  se devem essencialmente à restrição do Islã a se retratar formas humanas ou de outros animais na arte. Voilà, eis a razão para o tapete da sua sala ser como é.

Devo confessar que apesar da malandragem do nosso guia Mehmet nos levando a essas lojas caras para gastarmos dinheiro onde ele tem conchavo, desta visita eu gostei. Fomos levados a uma espécie de ateliê  que na verdade era uma casa simples, à beira da estrada, com umas varandinhas onde as mulheres trabalhavam fiando tapetes e os homens faziam pose tentando vendê-los aos preços mais altos que pudessem.

Esses produtores turcos usam essencialmente lã, algodão e\ou seda como materiais. O processo de confecção manual pode durar anos, e aí você entende o porquê de preços tão exorbitantes que às alcançam milhares de euros. Eu só lamento que a minha impressão seja a de que pouco dessa renda chega ou é controlada pelas mulheres, que são quem dão o duro mesmo.
Artesã fiandeira. A arte exige mover, puxar, organizar e cortar com precisão os fios de várias cores,
de modo a formar aqueles padrões ali embaixo.

Embora não seja comum ver mulheres usando o véu nas grandes cidades da Turquia,  aqui no interior a história é diferente, e quase todas usam. Na verdade, o véu já é há muitos anos banido pela Constituição da Turquia, estado laico e secular que se organizou em 1923 após a queda do monárquico Império Turco Otomano ao final da Primeira Guerra Mundial. Em outras palavras, proclamou-se a república e desde então o uso do véu ficou proibido em cargos públicos, entre advogadas, jornalistas, parlamentares, e professores universitárias. É o oposto do Irã, onde o uso do véu é obrigatório.

Essa é uma briga imensa na Turquia ainda hoje. O governo atual, pró-véu, tentou inclusive emendar a Constituição para permiti-lo, mas sem sucesso. Nos anos 90 as universitárias usando véu eram até proibidas de entrar ou de assistirem aula. Embora isso não exista mais e as estudantes possam usar o véu, continua um clima de tensão e uma discussão constante sobre isso na Turquia de hoje.

Mas voltemos aos tapetes...
Mulher remove fios de seda daquele caldeirão, onde os casulos de bicho-da-seda
(larvas de uma espécie de mariposa) são fervidos.

Depois de vermos um pouco de como os tapetes são feitos, fomos levados a uma grande sala de demonstração com dezenas de tapetes enrolados. O grande "tchan" dos tapetes na cultura turca é que estes eram originalmente nômades, e assim podiam armar barraca em qualquer lugar, desenrolar o tapete no chão, e ter ali um ambiente confortável. Na hora de viajar, bastava enrolá-lo de novo e levantar acampamento. Mais tarde, quando os turcos se assentaram nesta região, os tapetes permaneceram como peças de arte, decoração e luxo nos palácios otomanos.

Sentamos nas beiradas da sala e ganhamos um chazinho pra assistir à exposição dos tapetes. Os turcos têm um hábito forte de tomar chá preto (ou, para os turistas, chá de maçã) nuns copinhos bonitinhos mas nada práticos  de vidro fino, sem nenhum lugar pra segurar, e bom de queimar a mão com o chá quente. (Às vezes acho até que o chá foi de propósito, pra derrubarmos em algum tapete e ter que comprar).
Nós sentados à beira da sala com o chazinho na mão assistindo à exibição de tapetes.
O copinho de chá típico na Turquia. Vem quente como o cacete. Bom de derrubar que é uma beleza.

O chá de maçã estava gostoso, embora seja bem pouco típico. Eles vendem para os turistas como se fosse algo tão turco quanto a figura do sultão, mas não é. Aqui o chá tradicional mesmo é o preto, e bem forte e sem açúcar.

Mas a beleza mesmo estava nos tapetes. Cada um mais bonitos que eu outro, e você fica com aquele olhar guloso e aquela cara de "Esse ia ficar bom lá na sala... aquele ali no meu quarto...".  O criado em silêncio ia atirando os tapetes no ar e desenrolando-os com maestria, inclusive virando-os de cima pra baixo como se fossem panquecas, mostrando como as duas faces diferentes podiam ser usadas. Enquanto isso, o outro, bem vestido, ia só caminhando pelos tapetes e gesticulando com aqueles movimentos e sorriso de apresentador de televisão, como se fosse funcionário do Silvio Santos ou alguma coisa assim.
Criado e "apresentador" de tapetes, numa exibição perto de Éfeso. 
Lindos tapetes turcos de algodão, lã e\ou seda. Os de seda tendem a ser menores, devido ao custo.
Belos tapetes turcos. Dava uma pena de pisar neles com os nossos sapatos...

Apesar de não ter comprado nada (fica pra quando eu ficar rico), valeu a visita. Os preços iam de algumas centenas até alguns milhares de euros. Depende essencialmente do material (seda sendo o mais caro) e do fato de serem feitos à mão. Eles, inclusive, nos ensinaram a meter os dedos e olhar a raiz dos fios do tapete pra ver se tem um nó, sinal de que foi feito à mão e não à máquina, pra quem ninguém compre gato por lebre. Em geral, os tapetes feitos à mão tem uma diversidade muito maior de padrões e de arte. E, diz a lenda, ficam cada vez mais bonitos com o tempo.
As mulheres trabalhadoras por detrás dos belos tapetes feitos à mão vendidos na Turquia.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Maria no Alcorão e a casa onde viveu em Éfeso

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Aqui perto de Éfeso, na atual Turquia, viveram João e Maria. Não os da casa de doces, mas os da Bíblia: João, o apóstolo, e Maria, a mãe de Jesus. Tudo indica que foi pra cá que ambos vieram após a crucificação de Jesus, quando este lhes disse o célebre: "Mulher, eis aí o teu filho; filho, eis aí a tua mãe". Acredita-se que eles moraram muitos anos em Éfeso, e que aqui é que o evangelho de João foi escrito. Embora não haja consenso, a versão mais aceita diz que ela faleceu aqui 11 anos após a crucificação de Jesus.
Imagem de Maria, mãe de Jesus, em Éfeso, na localidade onde ela teria vivido com João, o apóstolo.

A ida ao local da casa onde viveram Maria e João não é exatamente fácil. Fica numa colina, por onde hoje se chega de automóvel, a cerca de 15 minutos de Éfeso. Naquela época obviamente levava mais tempo, portanto era uma morada isolada, longe dos agitos da cidade. Hoje, se tornou um dos principais pontos de peregrinação de católicos e alguns outros cristãos. Mas, curiosamente, é também um local respeitado pelos islâmicos  que, pra quem não lembra, são a grande maioria na Turquia de hoje.

Maria é a única mulher a ser chamada pelo nome no Alcorão, que a cita 34 vezes em 12 capítulos. São mais citações que em todo o Novo Testamento. O livro sagrado do Islã têm todo um capítulo com o nome de Maria, e trata de vários momentos de sua vida, desde a sua infância até a concepção de Jesus, que também é uma figura importante para os muçulmanos. Eles o têm como um messias, um profeta de Deus, embora não como Seu "único filho" nem como o próprio Deus, nem como sendo o último profeta (depois dele, ainda veio Maomé, nascido em 570). Portanto, crer em Jesus e Maria faz parte do dogma islâmico  o que não significa ter de crer em todas as construções feitas depois pela igreja cristã, tais como a Santíssima Trindade, etc. Apesar disso, o Alcorão reafirma a imaculada conceição de Maria (ter sido mãe virgem) e seu status acima de todas as outras mulheres perante Deus. Eles a chamam de Maryam, mãe de Issa al-Massih (Jesus, o Messias).
Pra os que leem inglês, citações a Maria no Alcorão.

Maria e João teriam vivido aqui por volta dos anos 30 a 40 do século I dC. Paulo viria depois, por volta dos anos 52 a 54 desse mesmo século. Essa foi uma época de esplendor em Éfeso, quando o culto local a Artemis ainda era predominante e os cristãos eram ocasionalmente perseguidos. Inclusive, há vários registros bíblicos e apócrifos sobre disputas entre João ou Paulo e os mercadores que vendiam ícones de Artemis, ou ações deles contra o próprio templo, que era visto como profano. Paulo deixou Éfeso e foi preso em Roma. Já João, depois de muito tempo, acredita-se que tenha sido exilado em Patmos, a ilha grega próxima de onde teria escrito o Livro do Apocalipse, já muito velho. E quanto à situação de Éfeso, a situação religiosa só mudaria em 313 dC com o Édito de Milão, em que o Imperador Constantino decretou o Império Romano neutro em matéria de religião e promoveu a tolerância a qualquer culto. Em seguida, a mesa virou a favor dos cristãos com o Édito de Tessalônica em 380 dC, quando o Imperador Teodósio decretou a versão dos bispos de Roma e Alexandria como a religião de estado, banindo todas as outras (tanto outras religiões quanto outras interpretações cristãs da época).

Hoje, a visita ao local da casa de Maria é movimentada mas tranquila. Chegamos ali numa sossegada tarde de sol, em que o calor já havia diminuído bastante. Há muitas árvores no lugar. Entre os visitantes se vê sobretudo franceses, italianos, espanhóis, croatas, portugueses e poloneses  as maiores nações católicas da Europa  além de alguns latino-americanos e, é claro, muitos não-católicos mas que vão por interesse cultural ou histórico no lugar.
Fila para entrar na capela a Maria. A casa antiga já não existe mais.
Sítio arqueológico onde se acredita ter sido a casa original onde Maria e João viveram após a morte de Jesus.
Interior da capela no sítio da casa de Maria.

Ao lado da capela há também um muro onde as pessoas põem pedidos escritos em pedacinhos de papel, como no Muro das Lamentações de Jerusalém. Hoje não se vê nem mais a pedra do muro, de tanto pedido que tem ali.
Pedidos deixados em pedacinhos de papel num muro no sítio da casa de Maria.

Também não faltam, é claro, as lojinhas vendendo mil e uma coisas referentes a Maria. Sempre há quem faça comércio de tudo, seja religião ou não.

A tarde já estava caindo. Mehmet, o guia, nos dizia que "só vamos fazer mais uma paradinha" (certamente em alguma loja) e retornaríamos. Fosse a hora que fosse, eu estava determinado a não ver novamente a cara do malandro do Sezgins, o dono do hotel que tentou me enrolar pra ficar mais uma noite lá. Estava com minha mochila, e acharia a rodoviária e iria para qualquer lugar quando terminássemos este passeio e chegássemos de volta a Kusadasi.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Éfeso e o Templo de Artemis

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Ruínas de Éfeso, costa da Turquia.

Éfeso foi uma importante cidade do mundo greco-romano antigo, com presença relevante na Grécia Clássica, na Roma Antiga, e no começo do cristianismo, com as pregações e epístolas de Paulo (que morou aqui por uns tempos). São, hoje, das ruínas melhor conservadas dessa época, e além disso há um trabalho ativo dos turcos para restaurar o que foi perdido. Ao contrário dos gregos, que hoje tem a política de conservar as ruínas no estado em que se encontrarem, os turcos têm a política de refazê-las, usando mármore e outros materiais para que se vejam melhor as construções por inteiro. As duas correntes têm seus defensores e críticos. (De que lado está você?).

Éfeso fica na costa oeste do que é hoje a Turquia. Na época, é claro, não havia turcos por aqui (eles só viriam, do centro da Ásia, por volta do ano 1000dC). A região fazia parte da civilização helênica expandida, que ia muito além das fronteiras da atual Grécia para incluir o sul da Itália, o sul da França e da Espanha, e também partes do norte da África e aqui da Ásia. Este pedaço, em particular, os gregos chamavam de Ásia Menor, ou de Anatólia, nome usado ainda hoje (do grego Anatolé, "nascer do sol" ou "levante", devido à sua posição ao leste).
Costa turca do Mar Egeu com Kusadasi, a cidade onde desembarquei.
Éfeso na costa da hoje Turquia. Toda essa região corresponde ao que os gregos antigos chamavam de Anatólia.

Embora a presença humana em Éfeso date de 6000aC, os gregos antigos só vieram a colonizar a região por volta do ano 1000aC, e ali já encontraram um velho santuário de uma deusa da fertilidade, creditado às lendárias amazonas. Em seu hábito de assimilar as outras culturas e de interpretá-las fazendo referência às ideias e mitos gregos (método chamado de interpretatio graeca), eles definiram esse templo como Artemísion, e a deusa como sendo Artemis. Mas vale observar que esta não tem nada a ver com a Artemis/Diana mais conhecida, deusa da caça e da lua, irmã gêmea de Apolo, etc. Até porque a Artemis da caça é virgem, e esta aqui de Éfeso é, bem, deusa da fertilidade.
Artemis de Éfeso. Percebam a coroa em estilo antigo mesopotâmico e
o zodíaco em seu peito. Já esses objetos arredondados
alguns dizem serem peitos, e outros dizem que são testículos de touro,
ambos símbolos de fertilidade na antiguidade greco-romana. 

Éfeso cresceu ao longo do último milênio antes de Cristo, mas trocou de mãos várias vezes devido às guerras entre os primeiros gregos e outros povos daquela região da Ásia, como cimérios e persas. Nesse período o templo foi várias vezes destruído (e reconstruído), incluindo, curiosamente, um incêndio no dia do nascimento de Alexandre, o Grande, em 356aC. Plutarco, o historiador romano, depois escreveu que Artemis estava ocupada demais supervisionando o nascimento de Alexandre para se preocupar em salvar o templo.

Já Heróstrato, o causador do incêndio, foi executado e mais. "E mais? Como assim?". É que na época as punições podiam ser piores do que hoje. Heróstrato foi condenado à execução e ao que os romanos depois chamaram de damnatio memoriae, o que significa que ficava proibido fazer qualquer registro ou menção oral ou escrita a ele, sob pena de execução, para que a sua existência fosse completamente esquecida na História. Não funcionou tão bem assim, afinal ainda se sabe que ele existiu, mas é verdade que se sabe muito pouco sobre ele.

A reconstrução tornou o templo ainda maior, com 137m de comprimento, 69m de largura, e colunas de 18m de altura, mais a arcada superior. Alexandre até sugeriu pagar pela obra, mas os efesianos educadamente recusaram e arcaram eles mesmos com os custos. Todo em mármore, o templo veio a se tornar uma das 7 Maravilhas do Mundo Antigo -- e, segundo o poeta grego Antípatro de Sídon, do século II aC, a mais bela das sete. Escreveu ele:


"Eu já pus os olhos na muralha da majestosa Babilônia que é como uma estrada para carruagens, e na estátua de Zeus à margem do [Rio] Alfeu, e nos jardins suspensos, e no colosso do sol, e no grande trabalho das altas pirâmides, e na vasta tumba de Mausolo; mas quando eu vi a casa de Artemis que subia às nuvens, aquelas outras maravilhas perderam o brilho, e eu disse, 'Oh, afora o Olimpo,  o sol nunca viu algo tão grandioso'" - Antípatro, Antologia Grega IX 58.
Representação de como teria sido o majestoso Templo de Artemis em Éfeso na antiguidade. Hoje, quase nada restou.

O templo perdurou por séculos, e tanto ele quanto a cidade ampliaram seu esplendor após a conquista romana  que herdou e em larga medida manteve os costumes culturais e religiosos dos gregos. Éfeso cresceu ainda mais, chegando a se tornar a segunda cidade mais importante do império, com cerca de 500 mil habitantes, ficando atrás apenas da própria Roma. Havia um teatro (odeon) com capacidade para 25 mil pessoas para espetáculos de drama e combates de gladiadores, uma grande biblioteca, muitas casas e mercados, banhos públicos, e até mesmo latrinas de uso comum. (Por que você acha que se fala tanto de epidemias na Idade Média e não tanto na Idade Antiga?? Higiene, meu caro Watson)
Vista do teatro de Éfeso hoje.
Ruínas da Biblioteca de Celso, com capacidade para 12 mil pergaminhos, erigida em 135 dC pelo filho do senador romano Tiberius Julius Celsus Polemaeanus, em homenagem ao seu pai. O senador foi enterrado debaixo da biblioteca.
Latrinas públicas em Éfeso. Um sistema de escoamento com água levava embora os dejetos.

Mas as coisas começaram a se agitar no decorrer da época romana. Começaram alguns atritos religiosos com a ideia dos imperadores romanos de serem adorados como deuses, e tanto Domiciano (81-96 dC) quanto Adriano (117-138 dC) tinham templos aqui. É também nessa época que começam a se formar as primeiras comunidades cristãs em Éfeso, organizadas em especial por João, o apóstolo, e Paulo, que moraram aqui por uns anos. O culto a Artemis era visto como idolatria profana, e ela era retratada como um demônio  leitura essa que pode ainda ser encontrada na Bíblia.

Mas foram as guerras e os problemas do império romano que levaram Éfeso à ruína. Em 263 dC ela e o templo de Artemis foram arrasados num ataque dos Godos (povo germânico que deu origem ao nome Gótico). Constantino (306-337 dC), o primeiro imperador romano a abraçar o cristianismo, não parece ter se preocupado em reconstruir o Templo de Artemis, mas reconstruiu a cidade. Ela viria a gozar novamente de alguns séculos de prosperidade, e era menos importante apenas que Constantinopla na região. Mas, vejam só, um problema ambiental levou a cidade a ser abandonada. Houve um assoreamento gradual do porto de Éfeso, na desembocadura de um rio. De repente, não havia mais condições de navegar -- e portanto de fazer comércio  no Mar Egeu, e a cidade foi sendo gradualmente abandonada. Hoje, a costa fica a 5km de distância.
Ruínas de Éfeso. Hoje um árido vale sem qualquer contato com rio ou mar.

Quase 2 mil anos depois, lá estava eu visitando aquela terra seca e pegregosa, cheia de colinas áridas. Era metade da manhã e o calor já estava de torrar o juízo, parecendo que eu estava visitando o sertão da Bahia. Éramos uns 20 chegando numa van acompanhados por Mehmet, o nosso guia, um sujeito mala sem alça, chato e metido a engraçado que passaria o dia conosco.
Mehmet, o nosso guia em Éfeso.

A visita a Éfeso devia ser interessantíssima se estivessem só você e as ruínas, podendo ali encarar sozinho e em silêncio as estátuas milenares e sentir o peso da História. Mas na realidade você é acompanhado por hordas de centenas de turistas com óculos escuros, chapéu, garrafinhas de água mineral e guarda-sol. Destacam-se aí os grupos de asiáticos, que são quem mais tem dinheiro hoje pra sair viajando o mundo, e os puritanos norte-americanos, que vem a Éfeso basicamente porque Paulo esteve aqui. Quando eu estava lá havia um gravando um vídeo de si próprio em cima da ruína dizendo o quanto se sentia abençoado de estar ali, "seguindo os passos do apóstolo".

Mas, mesmo assim, a visita vale a pena pelas vistas e pela história. Seguiamos com Mehmet, caminhando pelas ruínas e ouvindo as explicações sobre a cidade antiga. Apesar de ele ser chato, não era um mau guia. Passamos ali umas boas duas horas e meia, até o meio dia. Dali iríamos almoçar (esses pacotes hiper-comuns na Turquia sempre incluem um almoço num restaurante coligado à agência) e ver o que restou do Templo de Artemis, que fica ligeiramente afastado das ruínas.
Povaréu em Éfeso.

No entanto  esteja avisado  esses pacotes na Turquia sempre incluem paradas estratégicas em lojas caras que pagam para a agência levar turistas lá. Não há como escapar. Mehmet, muito orgulhosamente e com aquela cara de vendedor enrolão parecendo os do comércio de Feira de Santana, nos falava da qualidade dos produtos de couro desta região. Nos levou, em seguida, para uma "excelente loja com os melhores produtos de couro de bode, exportados para todo o mundo".

Chegamos na tal loja de beira de estrada e fomos levados a uma ante-sala onde um entusiasmado turco jovem com uma cara de modelo de capa da Vogue e camisa branca desabotoada até o peito nos recebeu. Antes de sermos levados aos produtos, fomos conduzidos a uma sala com uma mini-passarela onde tivemos que assistir "modelos" com o charme de qualquer atendente de loja mediano desfilarem os casacos de couro de bode ao som de "Gusttavo Lima e você" (tchêrêrê-tchê-tchê, tchêrêrê-tchê-tchê...).

Uma experiência inesquecível. Em seguida, o turco inicial (capa da Vogue) disse que, como gostou da gente, nos faria um desconto especial: tudo pela metade do preço. Além disso, aquele preço que estava em euros seria para nós  e somente, especialmente para nós -- em dólares americanos, que são mais baratos. Mas nada disso fez diferença. Os preços eram módicos, de 500 dólares o casaco (depois de feitos todos os abatimentos generosos que o turco nos ofereceu, pois o preço regular era 1000 euros).

Como sempre, teve pelo menos uma tia que comprou e saiu muito satisfeita. Dali seguimos para visitar as ruínas do Templo de Artemis, mas ao contrário de Éfeso, não restou quase nada do Artemísion a não ser por algumas pedras e uma coluna. Muito foi, na verdade, retirado depois da destruição em 263 dC, e se diz que pedras daqui foram usadas até mesmo na construção da Hagia Sophia, a magnífica basílica de Constantinopla, hoje Istambul.
O que restou do belo Templo de Artemis descrito pelo poeta grego antigo.

Mas ainda tinha passeio pela frente. Íamos visitar o local onde teria sido a casa de Maria, mãe de Jesus. E, sem dúvida, ainda haveria mais pelo menos uma parada em loja. Mehmet seguia cantando Let it Be se achando o Agnaldo Rayol na frente da van, e eu olhava pra o relógio querendo saber se esse passeio ia terminar às 3 da tarde mesmo, como o Sezgins do hotel havia prometido. Eu já via que não. Minha mochila estava ali com tudo meu, e eu queria ver onde é que eu ia dormir hoje à noite.
Lojas que abundam aos portões de Éfeso. Essa anunciava "relógios falsos genuínos".