sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Desventuras em Valparaíso e Viña del Mar

Dizem que em Vila Rica, atual Ouro Preto, às vésperas da Inconfidência Mineira (1789), circulavam cartas anônimas de tom jocoso, supostamente de alguém em Santiago falando (mal) dos governantes chilenos. Na realidade, eram críticas veladas ao governo colonial brasileiro. Já esta "carta" aqui não é política, tampouco anônima, e se passa no Chile mesmo. 
Viña del Mar é o resort chileno preferido dos endinheirados; Valparaíso, uma histórica e importante cidade costeira que conheceu a sua glória no século XIX, mas que afundou após a abertura do Canal do Panamá em 1914. 

As duas estão a uma curta viagem (1:30h) de Santiago, e é fácil conhecer ambas num mesmo dia se você não quiser se assentar para ver cada detalhe. Estão uma grudada na outra, parecendo na prática uma cidade só. Um simples ônibus urbano ou metrô te leva entre elas. 

Minha experiência? Acho que ambas merecem ser conhecidas, mas com certas reservas. Viña del Mar não é muito diferente das grandes cidades costeiras do Brasil, e Valparaíso às vezes lembra uma versão mais colorida dos favela tour que gringo faz no Rio de Janeiro. Me meti sem saber, e o relato merece ser jocoso.
A labiríntica rodoviária de Santiago, onde a sua jornada começa. Há vários pavilhões, em múltiplos andares, e nos mandaram de um canto pro outro para comprar passagens a Viña del Mar. Decidimos começar por ela e seguir para Valparaíso depois.

"Te voy hacer un precio económico", disse-me o cidadão de cara latina já à porta do ônibus, esperando na botija os passageiros que desciam em Viña del Mar  dentre eles, eu. 

O pilantra queria me vender duas horas de city tour por 70 reais. Eu estava mesmo interessado em algum passeio que nos permitisse tirar o máximo deste dia nas duas cidades, mas ele esqueceu que estava lidando com outro latino. Não me pareceu que dali pudesse sair nada bom, mas como a minha mãe queria usar o banheiro, decidimos atender à insistência dele para que o acompanhássemos até a sua agência. 

Ao chegarmos lá a sua assistente  uma bonitona com aqueles cabelos negros chilenos de Violeta Parra, mas andar de cafetina  ainda suspendeu a vista do copo d'água que bebia para nos olhar com aquela cara de "Quem são os novos trouxas?". 

Sabe de nada, inocente. Meus anos de experiência viajando por conta própria me mostraram que grande parte dos gastos no turismo são desnecessários  por falta de pesquisa prévia ou de auto-confiança das pessoas em descobrir os lugares por conta própria. Não havia nenhum passeio com preço razoável, e tanto Valparaíso quanto Viña del Mar revelaram-se perfeitamente possíveis de visitar a pé e por conta própria. Além disso, eu sabia que à tarde em Valparaíso haveria um free walking tour (tour a pé gratuito), 0800.

Agradecemos ao agente de viagens pelas suas ofertas, pelo seu banheiro, e decidimos navegar por Viña del Mar por conta.

Viña del Mar pareceu-me uma cidade agradável, mas não vi nada de muito particular. E, caso você esteja considerando a ideia de ir à praia tomar um banho de mar, lembre que estamos na latitude do Uruguai e saiba que o Oceano Pacífico é bem mais frio que o Atlântico. Apesar da cara da cidade, não estamos em Fortaleza.
Ruas do centro de Viña del Mar. Além de praças agradáveis, há calçadas largas e muitas lojas. Parece muito uma cidade "normal", se é que você me entende. 
A orla é bonita, mas não difere muito das de grandes cidades costeiras do Brasil, como você pode ver.
Talvez o ponto mais icônico de Viña del Mar seja o seu belo relógio de flores ao fim de uma larga avenida.

Não recomendo passar muito tempo em Viña del Mar se você quiser fazer Valparaíso no mesmo dia. Esta consome muito mais tempo e tem mais coisas "diferentes" pra ver. 


Há um metrô 
 e, mais recentemente, também um sistema de bondes modernos  entre Viña del Mar e Valparaíso, sem precisar de agência de turismo nem de pagar caro. Só o que não esperava foi que o metrô não vendesse passagens a dinheiro, só cartão para múltiplos usos. Não entendo isso até hoje. Espero que mude. O jeito foi encontrar um ônibus. Numa dessas avenidas da orla, perguntamos a alguém e descobrimos um que ia. 


Fomos com Seu Basílio, o motorista (cujo nome ouvimos), e que dirigia envenenado pela costa chilena, com um rabo de guaxinim e um Papai Noel pendurados no retrovisor. Em 15 minutos, chegamos a Valparaíso vendo o mar.
Seu Basílio com seu rabo de guaxinim e Papai Noel pendurados no retrovisor. 

Valparaíso, também conhecida por Valpo (embora eu não tenha ouvido ninguém na rua chamá-la assim) é uma cidade de personalidade bem mais característica. Parte dela me agradou, outra parte nem tanto. 


Há um centro histórico no porto tombado pela UNESCO, morros (cerros) de casas coloridas, belas vistas para o mar, e muito graffiti. Se você for fã da chamada arte urbana, aqui é a sua praia. Já se não for...

O ônibus nos deixou já perto da praça principal do centro histórico, de onde sairia o free walking tour. Localizamos o guia 
 um chileno magro e alto, com ar ligeiramente tímido mas risonho, com aquele jeito de quem gosta de se sentir parte da galera. Compramos um sanduíche às pressas e comemos ali na praça mesmo, em ânimo de êxito por termos conseguido chegar a tempo. No fim das contas, o guia ainda esperou juntar mais gente e pudemos comer tranquilamente enquanto esperávamos  coca-cola e sanduíche.

O prédio da marinha do Chile, na praça principal do centro histórico e de frente ao porto.
O edifício de outro ângulo.
No porto de Valparaíso.
Valparaíso tem a mais antiga bolsa de valores da América Latina (a Bovalpo), teve o primeiro corpo de bombeiros voluntários, seguradoras de valores já no século XIX, a primeira biblioteca pública do Chile, e o mais antigo jornal em língua espanhola ainda em circulação, El Mercurio de Valparaíso

Tudo isso se deveu ao boom econômico que a cidade experimentou no século XIX, sobretudo após a descoberta de ouro na Califórnia em 1848 (que levaria também à expansão yankee para o oeste, sobre os territórios indígenas). Não havia ainda o Canal do Panamá, portanto todo o comércio entre os oceanos Atlântico e Pacífico precisava passar pelo Estreito de Magalhães lááá na ponta da América do Sul. Valparaíso era assim um entreposto comercial importante nesse trajeto.


O Estreito de Magalhães, uma passagem natural, era conhecido por Cola do Dragão pelos primeiros navegadores portugueses do século XV. Até que em 1520 o lusitano Fernão de Magalhães se atreveu a navegá-lo de fato e mudou o seu nome para Estreito de Todos os Santos, por tê-lo feito no dia 1 de novembro. O estreito acabou, no entanto, ficando conhecido pelo nome do aventuroso navegador. Ainda que fique no extremo sul, o Estreito de Magalhães ainda é melhor negócio do que ir realmente até o fim do continente contornar a Terra do Fogo 
 chamada assim por causa da fumaça das fogueiras dos indígenas que Fernão de Magalhães viu  e o gelado Cabo Horn, notório por suas tempestades. (E você aí achando que a Terra do Fogo se chamava assim por causa de vulcões...)

Visualizando o extremo sul do nosso continente. Percebam que o Estreito de Magalhães começa ali ao norte da Terra do Fogo.

Valparaíso era o coração comercial chileno nessa era industrial do século XIX. A cidade ainda guarda muito daquela época, sobretudo na bem conservada arquitetura do seu centro histórico.

No centro histórico de Valparaíso, casas tradicionais de arquitetura neoclássica. E ruas ainda com os trilhos de bonde no chão.
Alguns prédios ainda passam um ar da época vitoriana do século XIX, quando navios comerciais ingleses e dos vários países americanos aqui aportavam. Tudo bem conservado, como você pode ver. 

Mas Valparaíso acabou saindo da rota de navegação quando o Canal do Panamá foi inaugurado em 1914. Já não era mais necessário à maioria dos navios mercantes contornar estas enormes distâncias. Os negócios quebraram; famílias ricas e empresas mudaram-se; e a cidade decaiu. 


Hoje há esse centro histórico a visitar, mas fora dele restou pouco do glamour de outrora. Valparaíso tem hoje um centrão "moderno" 
 que lembra a muvuca do centro de Salvador, com roupas em liquidação na calçada em frente às lojas  e morros repletos de casebres que dominam o horizonte, como no Rio de Janeiro.

Vista de Valparaíso.
Acreditei a princípio que o tour seria inteiramente pela parte histórica. Ledo engano. Logo começaríamos a subir as assombrosas escadarias pra um dos morros, navegar becos pichados em clima de festa  o guia avançando como se estivesse nos levando por um reino encantado.

É como se você tomasse um tour do Pelourinho e de repente o guia começasse a levar você pelos becos de Salvador. Nós éramos uns 20, quase todos vindos de países de língua inglesa. O guia havia nos explicado que não havia tour em espanhol porque não havia procura, ainda que o grosso dos turistas no Chile venham de outros países latino-americanos. Aí eu entendi por que é que não havia procura por parte de outros latinos. (A cereja do bolo deste programa de gringo era o guia chileno tentando se identificar com eles, forçando aquela conversa besta de jovem norte-americano sobre como encheu a cara na última festa.) 
Lá em cima, chegamos à casa de uma senhora que cobrava 1 dólar por um par de bolachas Maria com doce de leite. A tia as tinhas enrolado em papel alumínio, não me pergunte por que, e o guia observava-nos sorridente como quem buscava reações a algo exótico nunca dantes experimentado. 

Fui assaltado pela inevitável sensação de "O que é que eu tô fazendo aqui?".


Verdade seja dita, havia alguns grafitti impressionantes, e (curtas) partes da caminhada foram por belvederes com lindas casas, vistas e flores  incomparavelmente mais arrumado do que numa favela. Porém, a tônica geral me pareceu uma certa fetichização da pobreza. O grosso dos lugares por onde passamos eram tão bonitos quanto as ruelas de trás do comércio de Feira de Santana.

O jeitão geral das ruas por onde passamos.
Alguns grafitti impressionantes, apesar disso.
... e recantos bonitos, com belas vistas. Mas me pareceram exceção.
"E agora nós vamos todos tomar transporte público!", anunciou o guia animado após descermos de um dos morros até uma praça movimentada. "Fiquem todos juntos pra ninguém se perder e...".

Misturei-me ao povão que circulava pela praça e fiz questão de me perder. Aquele guia nunca mais voltaria a me ver. 

Era greve dos garis, e Valparaíso estava particularmente imunda. Basura por toda parte. Ao nosso lado, um pelotão de veganos protestava contra o consumo de carne, e para todo lado o bafafá da cidade ia aumentando o passo com o cair da tarde. 
Depois de muito caminharmos nessa Valparaíso contemporânea  que parecia-se com qualquer cidade brasileira  chegamos à rodoviária. Um encanto, como você pode ver.

Ok, a señorita vendedora ali é de fato encantadora. É a última imagem que carrego de Valparaíso. 

No dia seguinte, zarparíamos rumo à Bolívia. Passamos dos 520m de altitude em Santiago aos 4.100m do aeroporto boliviano de El Alto, junto a La Paz. Faz jus ao nome, sendo o mais alto aeroporto internacional do mundo. Os efeitos da altitude  o soroche, como dizem os indígenas  nos aguardavam por lá.  

No caminho, uma breve conexão pelo belíssimo aeroporto de Iquique, no deserto do Atacama, norte do Chile, com lindas vistas. Senti-me n'alguma missão no Iraque. 
Aeroporto de Iquique, norte do Chile.

E para quem não conhece Violeta Parra, ela foi uma das mais célebres cantoras e compositoras do Chile, uma das mais cativantes vozes que a América Latina já teve. Ela é a autora da inesquecível Gracias a la Vida. Se você não entender bem o espanhol, vale a pena procurar a letra.





sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Santiago do Chile: Comes & bebes, poesia, política e os bairros boêmios

(Continuação de Santiago do Chile: Cerros, charme, tango e "café con piernas")

Na cozinha do albergue, a senhora que parecia ser mãe de um dos rapazes que administravam o lugar nos servia um café da manhã de frutas frescas, pão, manteiga, (nes)café, e ovos mexidos, que em espanhol recebem a curiosa alcunha de huevos revueltos. Tomei café com a minha mãe, que me acompanhou nesta viagem, e um par de canadenses e australianos que me apresentaram a horrível vegemite, uma pasta salgada que lá na Austrália eles passam no pão. Fiquei com os meus ovos revoltos.

Verdade seja dita, a culinária chilena não me deixou lá grandes impressões. Há um certo foco em frutos do mar (compreensivelmente para um país rente à costa como o Chile), mas nada muito especial ou que lhe chame muito a atenção. Há peixe ao molho, como se acha em qualquer hotel mundo afora, sopa de ostras, essas coisas.

O que você não pode sair sem experimentar é o mote con huesillos, que você encontra facilmente em qualquer lugar da rua. Minha mãe sintetizou a mistura como: um copo de chá mate, milho de lata, e metades de pêssegos em calda, tudo misturado. Na real, são grãos de trigo, e não há chá mate, mas sim um caldo doce com canela  mas o gosto é mesmo de Chá Mate Leão, daquele que você compra já no copo pra beber.  
Gosto de chá mate com milho de lata e pêssegos em calda. É gostoso, mas se você tomar demais enjoa.
Vendedor de mote con huesillos na rua. São tão onipresentes nas ruas daqui quanto pipoqueiro no Brasil.

Uma outra tradição chilena são as empanadas, mas você terá que saber onde comprá-las. Não caia na besteira de achar que todas são boas. É igual pastel no Brasil, só que as empanadas têm mais massa, e muitas vezes não são fritas, mas sim assadas. Comi uma que tinha gosto de nada, e textura de sola de sapato. Mas há outras boas. Os recheios são diversos. 
A minha primeira empanada no Chile. Não tinha gosto de nada, só massa, mas depois achei umas que não eram más. Não deixei propina (gorjeta em espanhol) para o tio.

Mas eu falei que agora iríamos aos bairros boêmios. Estamos falando sobretudo de Lastarria e Bellavista. Santiago, em geral, tem ruas bastante agradáveis, como sugeri no post anterior. Mas se o centro for muito movimentado ou comercial para o seu gosto, ou se você preferir um clima mais jovem, bonito, de barzinhos e vida noturna, é cá pra esses bairros que deve vir. Só tive foi, como noutras partes do Chile, dificuldade em pagar com cartão de crédito estrangeiro, então é melhor se preparar para usar dinheiro em espécie.

Lastarria me pareceu um bairro mais posh, alta classe, elegante com luxo, aonde vão os que têm dinheiro. Bellavista é mais descolado e estudantil. No entanto, ambos são bonitos e agradáveis para passear. É também onde você pode encontrar bons restaurantes.

Tomamos em Lastarria um pisco sour, o característico coquetel do Chile e do Peru feito com pisco (um destilado transparente de uva, sem sabor da fruta), suco de limão e claras de ovo batidas. Não gostei muito da ideia de beber clara de ovo, mas no fim das contas o drink é saboroso. (Dizem que no Peru eles usam mais claras, mas sobre o Peru falaremos depois). 

Já para chegar a Bellavista é necessário cruzar o Rio Mapocho, que se outrora fez Pedro de Valdivia considerar este um bom lugar para fundar Santiago em 1541, hoje não passa infelizmente de um córrego barrento e tristemente degradado.

Atravesse-o e do outro lado estará na fuzarca estudantil de Bellavista, com a Universidad Católica ali perto e bares e restaurantes por toda parte. 
O charmoso bairro Lastarria.
O pisco sour. Saboroso! 
Para chegar a Bellavista é preciso cruzar o Rio Mapucho, hoje neste estado tão deplorável. Cabe até gente acampando no que costumava ser o leito do rio.  
Bellavista. 
Este é o agradável Pátio Bellavista, pra brasileiro que gosta de shopping.
Toparia? Eu acho engraçado é que inclui coca light.
Ruas em Bellavista.
Grande atmosfera jovem estudantil em muitas ruas.
Numa dessas sentamos-nos e, apesar de não ser conhecedor (ou grande fã) de vinhos, decidi gastar uma nota num Casillero del Diablo, vinho chileno mundialmente conhecido. Mais por gaiatice que qualquer outra coisa. Já esses pasteizinhos eram a entrada do jantar.  
Minha janta: um peixe grelhado com molho, legumes e arroz. Como eu disse, a comida aqui pode ser boa, mas sem uma personalidade muito característica. Já a minha mãe pediu uma sopa de ostras de que se arrependeu. 
Sopa de ostras.
Em Bellavista também fica uma das muitas casas do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1971. Ele tinha o hábito de dar nome às suas casas: La Chascona ("a de cabelos embaraçados", devido à esposa que morava com ele aqui em Bellavista), La Sebastiana (na cidade costeira de Valparaíso, próxima de Santiago), e Isla Negra, na ilha homônima na costa chilena. Esta última era a maior, enquanto que as outras eram pousios menores, que ele próprio construiu ao seu gosto.

"Pablo Neruda" era o pseudônimo de Neftalí Reyes, e que ele depois adotou como o seu nome legal. A inspiração foi um escrito checo, Jan Neruda, de quem gostava. (Não sei de onde veio o "Pablo"). Gabriel García Márquez dizia que Pablo Neruda foi o maior poeta do século XX em qualquer idioma.

Era um romântico ("Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras", dizia), e como outros românticos antes dele, passou depois a uma fase social, questionadora. 

"Quero apenas cinco coisas.. 
Primeiro é o amor sem fim 

A segunda é ver o outono 

A terceira é o grave inverno 
Em quarto lugar o verão 
A quinta coisa são teus olhos 
Não quero dormir sem teus olhos. 
Não quero ser... sem que me olhes. 
Abro mão da primavera para que continues me olhando."
 Pablo Neruda

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"É Proibido



É proibido chorar sem aprender, 
Levantar-se um dia sem saber o que fazer 
Ter medo de suas lembranças. 

É proibido não rir dos problemas 
Não lutar pelo que se quer, 
Abandonar tudo por medo, 

Não transformar sonhos em realidade. 
É proibido não demonstrar amor 
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor. 

É proibido deixar os amigos 
Não tentar compreender o que viveram juntos 
Chamá-los somente quando necessita deles. 

É proibido não ser você mesmo diante das pessoas, 
Fingir que elas não te importam, 
Ser gentil só para que se lembrem de você, 
Esquecer aqueles que gostam de você. 

É proibido não fazer as coisas por si mesmo, 
Não crer em Deus e fazer seu destino, 
Ter medo da vida e de seus compromissos, 
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro. 

É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar, 
Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se desencontraram, 
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente. 


É proibido não tentar compreender as pessoas, 
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua, 

Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte. 


É proibido não criar sua história, 
Deixar de dar graças a Deus por sua vida, 
Não ter um momento para quem necessita de você, 
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira. 

É proibido não buscar a felicidade, 
Não viver sua vida com uma atitude positiva, 
Não pensar que podemos ser melhores, 
Não sentir que sem você este mundo não seria igual."


— Pablo Neruda


O Chile já havia recebido antes um outro Prêmio Nobel de Literatura, para Gabriela Mistral (1889-1957), a primeira pessoa a ser laureada com ele na América Latina (em 1945). Este era o pseudônimo de Lucila de Maria del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, uma professora primária que depois integrou-se ao ministério da educação e tornou-se diplomata chilena.

"Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu. Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu. Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu. Sê tu aquele que afasta as pedras do caminho."  Gabriela Mistral

Ao receber seu Prêmio Nobel, Gabriela foi congratulada por Harry Truman, presidente dos Estados Unidos à época. Quebrando o protocolo, Gabriela o questionou quanto ao apoio norte-americano ao ditador dominicano Rafael Trujillo: "Senhor presidente, não lhe parece uma vergonha que siga governando na República Dominicana um ditador tão cruel e sanguinário quanto Trujillo?". O presidente norte-americano apenas sorriu. Gabriela prosseguiu: "Eu queria pedir-lhe algo, senhor presidente. Um país tão rico como aquele que você dirige deveria ajudar aos meus indiozinhos na América Latina que são tão pobres, que têm fome, e que não têm escola". Truman pôs-se novamente a sorrir, sem responder.

Gabriela abraçou fortemente a causa indigenista e dos pobres da zona rural, apontando a exploração das elites governantes e dos países ricos sobre as massas da América Latina. 

«[...] la capacidad productiva y exportadora de América Latina enriqueció a sus oligarquías y al capital inglés y después norteamericano asociado con ellos y consolidó y reafirmó el dominio del latifundio sobre el espacio agrícola latinoamericano. [...] Pero todo significó al mismo tiempo un crecimiento económico empobrecedor para las mayorías rurales»  Gabriela Mistral
Um simbólico mural à professora Gabriela Mistral na cidade de Santiago. Ao passar, transforma a realidade daqueles.

Gabriela, falecida em 1957, não sabia que dali a algumas décadas o seu próprio país viria a cair vítima de mais uma ditadura sanguinária como aquela de Trujillo. 

Pablo Neruda viveu até 1973, ano do golpe militar. Neruda, por ser de esquerda, teve a sua casa invadida e seus livros, queimados. Ele faleceria naquele ano, apenas dois após receber seu prêmio Nobel de literatura, oficialmente por "complicações de saúde", mas suspeita-se que na verdade por envenenamento, já que os militares não queriam uma oposição intelectual daquele peso contra o regime que se instalava. Os chilenos foram proibidos de ir às ruas lamentar a morte de Pablo Neruda, mas o fizeram mesmo assim. (Em novembro de 2015, o governo chileno formalmente declarou que é "altamente provável" que Pablo Neruda tenha sido envenenado).

Em 1970 o Chile elegia democraticamente Salvador Allende, político marxista que aprofundou reformas socioeconômicas em benefício da maioria da população. O desemprego caiu a 3,8%. Allende deu seguimento à reforma agrária que já vinha em curso e, finalmente, nacionalizou as enormes reservas de cobre e demais recursos minerais do país. Foi a gota d'água para os capitalistas estrangeiros. 

Houve queda no investimento privado, fuga de capitais  ou seja, gente de dinheiro tirando-o do país , e surgiu uma crescente campanha midiática e de investidores estrangeiros contra o governo. Como em outras partes da América Latina, os Estados Unidos opuseram-se abertamente a essa repentina autonomia que contrariava os seus interesses nacionais. Documentos da CIA revelam que a meta era impedir Allende de governar. Segundo um desses documentos, o Presidente Richard Nixon  que veria-se envolvido mais tarde no caso Watergate  teria dito para "fazer a economia chilena gritar".     

Não demorou para forças conservadores recorrerem aos militares, como já havia ocorrido no Brasil. Neste caso aqui, entrou em cena o General Augusto Pinochet.
Aos interessados nesse episódio triste da história latino-americana, recomendo o livro La Conjura, que tem como capa esta magnífica foto. Allende, de óculos à frente; Pinochet, como um espectro ali atrás.

A mídia tratou de retratar Allende como um ditador soviético, e entre agosto e setembro de 1973 os militares tomaram o poder. O palácio presidencial La Moneda foi bombardeado pelas próprias forças armadas do país e com o próprio presidente dentro  algo inacreditável. Após um pronunciamento no rádio dizendo que não abandonaria o palácio, a versão oficial reza que Salvador Allende se suicidou, embora o tema seja controverso.

Seja como for, Pinochet governaria a mãos de ferro de 1973 a 1990, ano da reabertura democrática no Chile. As indústrias extrativas foram "devidamente" desnacionalizadas e voltaram a ser abertas ao capital estrangeiro. Mais de mil chilenos foram executados já no primeiro ano de governo. Mais de dois mil outros "desapareceram", como ocorrido nas ditaduras do Brasil e da Argentina. Como sempre, os EUA voltaram a demonstrar sobejo apoio ao novo Chile, como faz ainda hoje com regimes repressivos no Egito ou na Arábia Saudita. Pinochet viria a morrer em 2006.

Não deixe por nada neste mundo de visitar o ótimo Museo de la Memoria y Derechos Humanos em Santiago. É a atração n.1 de Santiago no TripAdvisor e não sem razão. O museu contém arquivos em detalhes dos anos de chumbo chilenos, os pronunciamentos de rádio de Salvador Allende, o contexto da época, e mais dados sobre direitos humanos mundo afora. 
Estátua de Salvador Allende no centro de Santiago. "Tengo fe en Chile y su destino", é a frase ali marcada. Ele teria a dito no 11 de setembro de 1973, dia da sua morte. 
O palácio presidencial La Moneda hoje.
O Museo de la Memoria y Derechos Humanos.

Seguimos em busca de democracia de verdade na América Latina. Vindo a Santiago, não deixe de aprender mais sobre essa lição aqui vivida. Os anseios de Mistral, Neruda, Allende e outros milhões seguem vivos.