quinta-feira, 28 de maio de 2015

Mais Irã: lados difíceis


Esse aí sou eu, sem opção, tomando a marvada mistura 3x1 (café solúvel, leite em pó e  muito  açúcar) em lugar de café de verdade. Foi a única coisa que achei na rua, no centro de Teerã. Debati-me inúmeras vezes por lojas, com o meu afiado persa, perguntando onde tinha Kafé, Koffee, Kefir, e todas as variantes pensáveis dessa palavra que, eu sei, tem origem árabe e, portanto, deve soar parecido em persa. No entanto parei quando a minha amiga turca me alertou que Kafir, parecido o suficiente, quer dizer "infiel", "pessoa que rejeita Deus", e é uma ofensa das mais perjuradas entre os muçulmanos. Resolvi parar antes que me metesse em alguma encrenca. 

Dei-me conta de que alguns elementos  e experiências  ficaram de fora do post anterior, então resolvi complementa-lo antes de ir-me embora de Teerã. 

Numa dessas idas e vindas pelas ruas e parques, desviando-me das motos na calçada que de mim não desviavam, encontrei Saddam Hussein. Não o original, é claro, afinal eu sobrevivi a todos os atentados de atropelamento. Mas um empalhado, no Museu da Paz de Teerã. 

O Museu da Paz de Teerã é um pequeno museu gratuito, no meio do Parque Shahr, no centro da cidade. Lá uma moça simpática, falando num razoável inglês  com o forte sotaque persa que eu sinto não poder imitar aqui por escrito  nos acolheu amigavelmente, dizendo que o museu era gratuito e nos dando aquelas brochuras coloridas que não servem de muita coisa. O museu, no entanto, é estranho. Ele trata particularmente da Guerra Irã-Iraque (1980-1988), quando Saddam Hussein, o finado ditador iraquiano, atacou o Irã com o apoio dos Estados Unidos  que queriam derrubar o recém-instalado regime islâmico no Irã. O museu é uma mistura de conteúdo didático colorido, como que para crianças, e imagens fortes de gente sofrendo a ação de bombas químicas (que civis iranianos sofreram durante a guerra), sequelas, gente doente, etc. É forte.
Saddam aqui, retratado como "brutal ditador", que ele realmente era. Minha avó, que jamais compreendeu o seu nome e o chamava de "Satanás", teria se entendido bem com os iranianos. Ao lado na sala havia um boneco desses de Hitler.

A quem não viu o filme Argo (ganhador do Oscar de melhor filme em 2013), eu recomendo ver. Ele dá uma pincelada no ocorrido aqui em 1979, que mudaria radicalmente a História do Irã. Eu gosto sempre de dar o pano de fundo e a síntese dos acontecimentos, pra vocês entenderem. Hoje se demoniza o Irã, mas o que não lhe faltaram foram safadezas estrangeiras. Permitam-me um breve mergulho na História. 

Da Idade Antiga até o século XX, a Pérsia/Irã sempre foi monarquia, às vezes mais unida, às vezes menos, e se sucedendo nas mãos de diversas dinastias que tomavam o poder, similar ao ocorrido na China. Aqui o rei era conhecido como Shah (ou , se você preferir a versão em português). De 1794 a 1925, reinou a dinastia dos Qajar, que mudaram a capital aqui pra Teerã e construíram o belo Palácio Golestan mostrado no post anterior

Mas essa foi a época do imperialismo europeu na Ásia, e embora o Irã não tenha sido uma colônia propriamente dita, ele foi assaltado pelos russos e pelos britânicos. Os russos tomaram-lhe território em duas guerras entre 1804 e 1828, e os ingleses gradualmente tomaram-lhe a independência econômica. Foi aqui no Irã em 1908 que se começou a "produzir" petróleo pela primeira vez no mundo. Não eram os iranianos, mas os sabidos ingleses que controlavam a produção através da antiga Anglo-Persian Oil Company, hoje chamada British Petroleum. Tinha tudo de anglo e nada de persa. O acordo era tão desigual que, afora os lucros da empresa, o governo britânico de Sua Majestade chegava a ganhar mais em impostos sobre as atividades da Anglo-Persian do que o próprio governo iraniano, dono do petróleo.

A coisa ficou feia nas várias oportunidades em que os iranianos tentaram mudar o acordo. Em 1919, a Grã-Bretanha tentou forçar o Irã a tornar-se um protetorado seu (uma espécie de submissão formal que incluiria pagar para a Grã-Bretanha protege-lo de outras potências estrangeiras), mas ela não conseguiu. Em 1925, um golpe militar derrubou o rei e levou ao poder os Pahlavi, a última dinastia. Eles foram responsáveis por muito da modernização forçada que o Irã experimentou. Shah Reza Pahlavi de repente impôs vestimentas e costumes ocidentais: incentivou as mulheres a abandonarem o véu, decretou por lei que os homens deveriam vestir-se obrigatoriamente em trajes ocidentais, mandou botar cadeiras nas mesquitas, que tradicionalmente têm só um tapete onde ajoelhar-se, etc. Ele quis imitar Mustafá Kemal Ataturk, que em 1922 constituiu a Turquia moderna após a queda do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, mas aqui no Irã a coisa não desceu muito bem. Tensões, revoltas.    

Agora a coisa começa a ficar interessante. Em 1941, em meio à Segunda Guerra Mundial, tropas soviéticas e britânicas ocupam o Irã e forçam a saída do tal Shah, pois ele era nacionalista demais. Seu filho Mohammed Reza Pahlavi, que seria o último Shah, assumiu. Ele seguiu com as tendências modernizantes do seu pai, mas era um tanto excêntrico. Diz a lenda que a sua esposa se banhava em piscinas de leite para amaciar a pele. 

O Shah era grande amigo dos EUA, e nesta época as petroleiras estrangeiras estupravam os recursos naturais do Irã. Só que desde o início do século já havia um Parlamento, que começou a tornar-se mais e mais crítico do Shah. Primeiro-ministro Mossadeq é um nome a lembrar aqui. Ele de vendido não tinha nada. Foi eleito e, em 1951, conseguiu aprovação no parlamento para nacionalizar o petróleo do Irã. Fedeu; em 1953, o exército com apoio da CIA e do serviço secreto britânico derrubaram Mossadeq, o mandaram preso por traição (vejam que ironia), e garantiram ao amigo Shah um governo autocrata, de rei, que duraria até 1979, quando não deu mais pra segurar a população insatisfeita.   

O Shah, em toda a sua mania de grandeza, ainda deu em 1971 uma mega-celebração de 2500 anos do Império Persa, da fundação lá atrás com Ciro, o Grande, no século VI antes de Cristo. Ele chamou líderes de todo o mundo e gastou uma dinheirama enquanto as pessoas permaneciam pobres e analfabetas  e o petróleo sendo levado. A classe clerical, em particular, era das mais insatisfeitas, já que, além disso, o Shah vinha destruindo uma série de tradições. Foi dali que emergiu o clérigo aiatolá Ruhollah Khomeini, crítico feroz do governo.   

Em 1963 Khomeini foi preso pelo regime e exilado na França. Ele só voltou ao Irã em 1979, quando protestos populares, greves e guerrilhas solaparam o governo do Shah. O Shah foi acolhido em exílio pelos EUA e nunca mais voltou. Milhões saíram às ruas para aclamar a chegada do clérigo. Um referendo aprovou a transformação da então monarquia numa República Islâmica, com Khomeini como o seu Líder Supremo. 
Khomeini em 1979, desembarcando do voo da Air France que lhe trouxe de 14 anos de exílio de volta a Teerã.
As relações com os EUA foram cortadas; o petróleo, nacionalizado; e a vida mudou completamente. Por um lado, as liberdades ocidentalizadas do regime do Shah foram suprimidas, e entrou a obrigatoriedade de as mulheres usarem o véu em público, etc. Por outro, houve mais assistência à população pobre, com melhoria na educação e saúde públicas e gratuitas. Foram facas de dois gumes: por exemplo, o novo governo tratou logo de separar meninos de meninas e inserir conteúdos islâmicos na escola primária, mas elevou a taxa de alfabetização de 45% à época da revolução a 98% em 2008. Enfim. E teve início esse estranho sistema político iraniano onde há um presidente eleito, que toma conta da governança do dia-dia, mas onde a última palavra é sempre a do Líder Supremo, um clérigo.

Khomeini governou de 1979 a 1989, quando veio a falecer já velho. Ele governou durante os oito anos (1980-1988) da Guerra Irã-Iraque, quando Saddam Hussein atacou o recém-reformado Irã para ganhar território, querendo aproveitar-se das turbulências. Os EUA e seus aliados europeus apoiaram Saddam com armas e empréstimos. O mais vergonhoso, contudo, foi o silêncio geral quando Saddam, pela primeira vez na História conhecida, atacou civis iranianos e curdos com armas químicas, matando milhares.

O Irã ainda assim venceu a guerra  feito do qual eles são orgulhosíssimos. Em 1991 Saddam Hussein então tentaria atirar para outro lado, invadindo o Kuwait e ocasionando a Guerra do Golfo, mas aí já é outra história. No Irã Ali Khamenei, outro clérigo, sucedeu Khomeini após a sua morte, e ele segue sendo o Supremo Líder até hoje. Os retratos de Khomeini e Khamenei você encontra por todas as partes no Irã, de lojas a prédios públicos a saguões de aeroporto.   
Prédio público por onde passei em Teerã. Na frente os retratos de Khomeini, à direita, e Khamenei, à esquerda.
Saí o Museu da Paz com as imagens nada pacíficas de iranianos queimados por arma química de Saddam. Na saída, a mesma gentil moça que nos havia acolhido nos ofereceu um caramelo, como que para aplacar o impacto.    

Uma das imagens mais icônicas de Teerã é o mural "Morte à América", com caveiras e bombas na bandeira dos EUA. Toma todo o lado de um prédio. Eu, embora não faça apologia de morte a ninguém, não quis passar por Teerã sem ver o dito-cujo, e é claro que vi. 
Em inglês está Down with the U.S.A. ("Abaixo os EUA"), mas o original em persa é "Morte à América", pelo que todo mundo diz. 
Esse, no entanto, é um mural antigo, que não me pareceu refletir muito sentimentos atuais. Eu perguntava onde ficava o lugar e a maior parte das pessoas nem sabia do que eu estava falando. Quando posei pra tirar foto, quem passava olhava curioso pra saber o que é que eu estava fotografando, como que se nem soubesse o que é que estava ali.

Enfim, eu queria dar essa contextualizada, até porque o Irã é rotineiramente apresentado como um país maligno (do tal "Eixo do Mal" de George Bush), enquanto outros que têm muita culpa no cartório se apresentam sempre como santinhos.

Agora, passando de pato a ganso, eu preciso dizer que essa foto acima é da internet, e não das que eu tirei. Não sei se deu azar, mas o telefone da minha amiga onde elas foram tiradas teve o infortúnio de, dias mais tarde, cair num banheiro iraniano e findar-se para todo o sempre. Os banheiros iranianos são dos locais mais tenebrosos de todo o mundo. Eles só perdem para os banheiros da Índia, na minha experiência. O vaso é sem vaso, daqueles no chão onde você deve obrar em pé. E, por alguma razão, os banheiros estão sempre encharcados, e não há papel e nem toalha de mão. É nessas horas que eu dou graças a Deus por ser homem. 

Posso sacanear com vocês e mostrar uma foto do que eu tive que encarar?
O naipe geral dos banheiros públicos no Irã. Nível Jogos Mortais. Mesmo em restaurantes, ou até nos aeroportos, não era muito diferente disso.
A única coisa boa  para ser justo  é que nunca faltava sabão líquido, graças a essa peça de criatividade aí que a gente bem que poderia imitar.
Não me pergunte qual é o nível de higiene nessas lanchonetes de rua de Teerã. Tomei várias vezes deliciosos sucos de melão (aquele ali verde), e não tive dor de barriga. A minha amiga uma vez teve. Enfim, use o seu discernimento (ou A Força) para saber quando consumir e quando não.
Mas Teerã é só o começo. Muito das belezas e História deste país estão em outras cidades, então é hora de partir. 

A maneira mais fácil de cobrir distância aqui no Irã é voando. Voos domésticos no Irã são muito baratos. Por coisa de 100 reais você toma voos de cabo a rabo no país. É claro, não é um país do tamanho do Brasil, mas tampouco é pequeno: o Irã é algo maior que a Região Nordeste, e maior que o Sul e o Sudeste juntos. Vá apreçar quanto sai um voo de Porto Alegre a Belo Horizonte, ou de Salvador a Fortaleza. E aqui no Irã tem serviço de bordo, ao contrário do lanchinho pindaíba (ou pago) das companhias aéreas brasileiras. 

Os voos domésticos de Teerã saem do Aeroporto Merhabad, não do Imam Khomeini, por onde cheguei. Para lá tomamos um taxista enrolão, chamado pelo hotel. Aqui eles quase nunca usam taxímetro, e como ele não falava inglês eu cometi o infame erro de não acertar o preço de antemão. Jamais façam isso. Eu fui pelo que o hotel me disse que custaria, e não confirmei com o taxista. 

Chegando lá ele queria o triplo, ameaçou escandalizar, e tudo o que consegui foi o dobro. A sorte foi que a moeda iraniana, o rial, é desvalorizada devido a uma inflação cavalar. Um real são quase 10.000 riais. A corrida não nos custou mais que 25 reais. Nem uma ida ao aeroporto de Feira de Santana sai tão barata. 

Merhabad foi o único aeroporto na minha vida onde vi a fila do check-in de repente mudar de guichê, e entrar em cena o proverbial "os últimos serão os primeiros". Eu, infelizmente, tinha sido dos primeiros a chegar, e acabei no fim da fila. 

Foi também a única vez em que vi os monitores do aeroporto passarem comercial de televisão. Mas apesar dessas esquisitices  e das não menos esquisitas funcionárias de guichê com suas sobrancelhas refeitas e narizes obviamente remodelados  tudo correu bem e sem problemas. Rumo: Shiraz, no sul do país, nas vizinhanças das lendárias Pasárgada e Persépolis, e terra de belezas que você ainda não conhece.  
Chegando ao aeroporto de Shiraz. Ali a foto do Líder Supremo, o Aiatolá Ali Khamenei.



quarta-feira, 27 de maio de 2015

O uso do véu no Irã


Na foto acima, a famosa Polícia Moral do Irã aborda uma jovem transeunte, acusando-a de que o hijab (o véu de cobrir a cabeça) não está bem posto. A lei iraniana determina que todas as mulheres (turistas ou não) se cubram, mas não diz como. A grande maioria das jovens, ao menos nas cidades grandes, vestem-se assim como essa de rosa. Ao que parece, a polícia não gostou. 

No momento, há uma batalha política no Irã, em que o presidente (eleito democraticamente) Hassan Rouhani diz que não cabe à polícia fiscalizar tal coisa nem impor o Islã a ninguém  "enviar as pessoas ao céu às chibatadas". Do outro, o Líder Supremo (cargo vitalício, eleito pelo colegiado de clérigos, e que detém a última palavra em assuntos de estado) Ali Khamenei, de 75 anos, diz que cabe, sim, à polícia fazer isso, pois o Islã é a base da sociedade da República Islâmica do Irã. 

Enfim, eu em toda a minha estadia de semanas no Irã não vi a polícia moral em ação. Minha amiga que viajou comigo usava o véu assim meio solto e tampouco foi abordada. A grande maioria não é, mas dizem que agora no verão (do hemisfério norte) a fiscalização se intensifica. 

O tema foi matéria de hoje no The Guardian, jornal britânico. Achei interessante aproveitar a deixa para inserir o comentário aqui. Meu primeiro post sobre minhas andanças em Teerã pode ser lido aqui. O segundo está pra sair do forno, com algumas dessas questões. 

A quem quiser ler a matéria do The Guardian, o link é este (em inglês).

Mulheres de três gerações diferentes no Irã, e como se cobrem. Fotos do The Guardian, e lhes confirmo que é assim mesmo, as velhinhas sempre mais escondidas, e às moças em geral tão à ocidental quanto possível.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Mairon vai ao Irã: Pelas ruas de Teerã


Cá estamos em Teerã, a capital iraniana de 12 milhões de habitantes. Última capital da Pérsia antes de ela mudar de nome para "Irã", e um dos grandes centros do Oriente Médio. Tráfego louco, mas boulevards bonitos e lindos jardins. Palácios persas de outrora lado a lado com prédios públicos onde figuram (por lei) as faces dos governantes da República Islâmica que o país se tornou desde 1979. Bem vindos ao Irã! Comecemos, devagar, por Teerã, que não é a melhor cidade iraniana a se visitar, mas é a capital e onde a minha aventura começou.

Deixem-me dizer logo: as ruas de Teerã são as piores de todas as cidades de todos os 57 países que já visitei. Nunca antes havia eu estado num lugar onde achava que ia ser atropelado cinco vezes ao dia. Se você acha motorista brasileiro mal-educado, saiba que aquilo está looonge de ser o fundo do poço. 


Aqui no Irã ninguém pára. Os semáforos piscam inutilmente em amarelo o dia inteiro na maior parte dos lugares; faixa de pedestre é decoração; e cada travessia de rua é como atirar-se num motorizado rio constante. As avenidas são largas, como você pode ver. Motoristas podem ter mais dor de cabeça na Índia ou na Indonésia, onde tudo se engarrafa, mas o pedestre facilmente ziguezagueia entre os carros. Já aqui, não. Há fluxo o bastante para não lhe deixar atravessar. Enquanto isso, motos vão na contramão e pelas calçadas, que às vezes transformam-se em verdadeiras motovias. De quebra, a poluição do ar lhe irrita o nariz e come os pulmões. É um aspecto real e muito pouco pitoresco aqui do Oriente Médio.

Uma avenida em Teerã, vista do alto de uma passarela que quase ninguém usa. O semáforo em amarelo piscando, como eu disse. E a faixa de pedestres que tampouco importa. O tiozinho ali no meio, que parece que vai ser atropelado pela van verde,  se salvou. Os iranianos têm uma destreza imensa. A forma mais segura de atravessar a rua é seguindo um deles. 

Mas calma. Metade de vocês já deve estar pensando: "Deus me livre, tá vendo que eu não vou num lugar desses. Ainda mais perigoso, cheio de radicais islâmicos". O único perigo aqui é ser atropelado. Teerã é provavelmente mais segura que qualquer cidade brasileira, com exceção de Gramado e Canela. Me senti à vontade todo o tempo que andei. E preste atenção que praticamente nenhum dos ataques suicidas ou terroristas que você vê nos jornais ocorre no Irã, ou é sequer levado a cabo por iranianos. É quase sempre Iraque, Afeganistão, Paquistão... Eu sei, é uma vizinhança barra-pesada, mas não é tudo igual. Achar que é tudo igual é ignorância nossa. Repare da próxima vez e veja quantas notícias você encontra onde o terrorista ou homem-bomba era iraniano.  

"Ah, é tudo árabe". Pelo amor de Jesus e de Allah, não diga isso. Os iranianos são persas, não árabes. Morenos, sim, mas em geral de cabelo mais liso. Eles em geral não gostam uns dos outros e abominam serem confundidos. (Chegue a um bar e diga a um russo que ele e alemão é que tudo a mesma coisa só porque ambos são brancos e cristãos, e porque você, do Brasil, de vista não consegue diferenciar um do outro. Boa sorte.) 


O Irã é a Pérsia, só que com seu nome original. "Pérsia" foi um nome dado pelos seus rivais os antigos gregos, e que permanece até hoje no Ocidente. Os persas sempre chamaram a sua terra de Aryân, Eran, Irã ou variações do mesmo. Aí em 1935, o monarca iraniano se retou e exigiu que a comunidade internacional tratasse o país como Irã em contextos oficiais, então a "mudança" de nome oficial. No plano cultural, entretanto, os dois nomes continuam. A língua que eles falam é o farsi (ou persa), que na antiguidade tinha o seu alfabeto próprio e que há séculos adotou a escrita árabe, mas que é outra língua  do mesmo jeito que o português e o finlandês usam o mesmo alfabeto latino mas são línguas diferentes.


É engraçado porque, tanto no Brasil quanto no restante do Ocidente, se você fala em Pérsia as pessoas logo pensam em história antiga, em Príncipe da Pérsia, cultura, sensualidade, charme, beleza. Mas se fala em Irã, logo pensam em terrorismo, radicalismo islâmico, num país desértico e empoeirado. Não se dão conta de que é o mesmo lugar, a mesma civilização, com vários desses elementos juntos ao mesmo tempo. Então é hora de corrigirmos essa visão artificialmente dividida, meio esquizofrênica.  
O interior do um palácio persa, iraniano, que eu visitei em Teerã.
A escrita da Pérsia Antiga, numa pedra milenar guardada no Museu Nacional. Não me perguntem o que está escrito. (Essa escrita já não se usa mais). 
Agora sim, a escrita persa atual, com o alfabeto árabe. Eis uma singela passagem de ônibus minha no Irã, pra verem com o que eu me deparei. Vocês provavelmente não sabiam, mas os números também são diferentes dos nossos. Os algarismos arábicos a que estamos acostumados são os arábicos ocidentais, isto é, do oeste do mundo árabe medieval: norte da África e Península Ibérica. Já nestas bandas de cá (Irã, Síria, Arábia Saudita, Paquistão...) eles usam os números arábicos orientais, que são diferentes. Vejam abaixo. Assustam no início, mas, como tudo na vida, você aprende.
A que encontrei no Irã foi a variante perso-arábica. Nunca vou me esquecer do dia em que paguei 50 num chocolate quente que custava 40, mas onde havíamos incorretamente lido 60, e eu paguei 50 achando e saí crente que tinha conseguido por menos. E, sim, o cara me enrolou cobrando mais, tirando vantagem do analfabeto aqui. (Caso alguém esteja a se perguntar sobre o Urdu, é a língua falada no Paquistão, que soa quase idêntica ao Hindi, da Índia, mas que assim como o persa usa o alfabeto árabe e esses números aí na escrita.)

Era uma noite quente de primavera quando eu cheguei ao Aeroporto Internacional Imam Khomeini, em Teerã. O nome é o do líder da Revolução Iraniana de 1979. Tirei o visto sem dificuldades na embaixada do Irã na Holanda. Sabendo que você é brasileiro, eles facilitam tudo. Em geral gostam muito do Brasil. O rapaz que me atendeu ainda puxou conversa de futebol (claro), e foi tudo muito tranquilo. O visto ficou pronto em uma semana, e controle de passaporte no aeroporto é mais tranquilo que na Europa, pra não falar nos Estados Unidos. 

Já o aeroporto em si, é uma esculhambação. Pequeno e decaído, mas com gente como formiga. A sorte foi chegarmos tarde da noite, e assim não tivemos dificuldade em encontrar o humilde taxista que nos aguardava com a plaquinha com o nome da amiga turca que me acompanhou. 


Homem aqui normalmente não aperta mão de mulher (e nem encosta), então o cumprimentado fui eu. Com ela só aquele olhar de "Oi, sou eu", "Oi". Ela, como manda a lei, assim como todas as demais mulheres, turistas ou não, precisou cobrir o cabelo com um véu a partir do momento em que desembarcou do avião. Quem sair sem o véu na rua é parada pela polícia. E se tiver pega-pega entre mulher e homem, ambos podem ser multados ou ir parar na delegacia. (Eu acho ironissíssimo que tocar em mulher não pode, mas andar de moto na calçada, eles deixam). Em tese, me diziam que homem e mulher não podem nem se tocar em público, mas na prática há casais de mãos dadas. Porém não vai muito além disso; nada de abraços ou grandes afeições às vistas. 


O carro tinha aquele cheiro gostoso de estofado que não vê limpeza há anos. Depois de 1h nele, chegamos ao nosso belo hotel duas estrelas. O setor turístico no Irã é precário, normalmente há as opções cinco estrelas (caras) e o resto. Eu fiquei no resto. Ainda que haja muito a ver no país, as sanções econômicas do ocidente impedem o uso, por exemplo, de cartões de crédito estrangeiros, além de dificultar-lhes receber investimentos, então é uma pindaíba. O nosso hotel tinha uma decoração demodê anos 40, cano velho, pia que vaza e chuveiro por cima do vaso sanitário. Uma janela de vidro duplo dava para uma avenida tipo o Minhocão de São Paulo, com carros trafegando desde cedo. Agregue-se a isso um calor do cacete (pra não usar aqui palavras de baixo calão); e não, tolinho, não tinha ar condicionado. Apesar disso, os funcionários eram cordiais, a maioria mulheres.


O café da manhã no hotel era  todo dia  sopa de lentilha, chá preto, pão chato com sementes de gergelim, pepino, tomates, ovo duro, azeitonas pretas, e queijo branco salgado. Hardcore, mas não me assustou muito. Eu prefiro refeições salgadas aos cafés-da-manhã doces cheios de geleia e pão açucarado da Europa. O meu problema foi que não havia café, e como é que você toma café sem café? Só havia uns sachês malignos da Nestlé com uma mistura em pó "3 em 1", que consistia (teoricamente) em café, leite em pó e açúcar. Parecia-se com aqueles "pingados" de rodoviária do interior que o cara lhe dá já bem adoçado e com bem mais leite que café. Tenebrosa a mistura, mas era o jeito. 


Era sol, e no primeiro dia descobrimos a beleza de Teerã que a mídia ocidental não nos mostra. Não estou sendo irônico. Apesar das ruas agitadas, encontramos belos jardins, limpos e arrumados, além de praças bem verdes. Um asseio e beleza que não vejo no Brasil, ou mesmo na maior parte das cidades da Europa. Confiram com seus próprios olhos.

Uma praça qualquer de Teerã, com jardins, fontes e as pessoas nos bancos. Não vi nem pedinte nem desordem, muito menos ladrão. 
Mulher tirando foto dos meninos num jardim de tulipas.
Isto é um parque público no centro de Teerã. Ao fundo você vê as montanhas do norte do Irã, que você avista da maioria das ruas da cidade. Embora hoje em dia a Holanda seja a mais famosa pelas tulipas, foi aqui na Pérsia que elas começaram a ser cultivadas, desde o século X. Depois, os turcos otomanos abraçaram a ideia e os embaixadores europeus, maravilhados, as levaram aos seus países, séculos mais tarde.

Eles aqui têm um capricho muito grande com esses espaços públicos. Desse nível eu só vi na Turquia e, até certo ponto, no Marrocos. Não sei se é algum apreço islâmico pela jardinagem, sei que é bonito. Vá procurar em Chicago, Roma, ou mesmo em Paris um espaço assim. 


Teerã tem duas faces, por assim dizer. O norte da cidade é mais alta-classe, com casas e lojas mais caras, shoppings, e alguns cafés à moda europeia onde andam os jovens. Já o sul é mais povão, com os bazares, coisas e gente mais simples  e mais conservadora. Nestas partes você vê muitas mulheres de xador preto (um manto que expõe só o rosto, diferente da burqa, que cobre o rosto também). 


Comecei pela parte povão. É movimentado, agitado, mas agradável. Os bazares são uma riqueza de cores, com tapetes, tecidos, trabalhos em vidro, jóias, especiarias, frutas secas e mais uma pá de coisas. Não demorei (ou melhor, não resisti) e barganhei logo um tapete pra mim. 

Senhora com um xador e os vendedores de especiarias, temperos e frutas secas. 
Frutas secas de vários tipos, comumente maçã, damasco, e ameixas de vários tipos. (Ali está o preço, não consegue ler não?)
Falando em números, estes aqui ficaram me zoando quando souberam que eu era brasileiro, devido à derrota de 7 a 1. Gente muito boa. (Percebam os narizes grandes persas característicos. Tipo o meu).
E a comida! Aqui no Irã há uns mil tipos de azeitonas. Essa massa roxa ao lado são azeitonas temperadas com outras azeitonas e tempero.
Este rapaz vendia "tapetes" de doces de frutas. Ele corta com a tesoura e pesa. (Se bem que deveriam se chamar azedos de frutas, pois são sem açúcar e azedos pra cacete. Quem for me visitar em Feira de Santana neste fim de ano poderá experimentar.)
Sopas típicas que tomamos na rua. A da esquerda continha iogurte, que nesta região do mundo as pessoas comem com a comida. A da direita tinha uma folha azedinha, que acredito ser de videira (uva). Não eram más.
E, claro, o meu novo tapete com motivos tribais, comprado na mão do brother.
O bazar é legal, sobretudo o da rua. Há também uma grande parte coberta, muito parecida com o Grand Bazar de Istambul na Turquia, mas menos interessante aos meus olhos. Muita coisa de fábrica, do dia-dia, e jóias. O mais bonito pra mim é a arquitetura.
Uma das mil entradas para o Grand Bazar de Teerã.
"Ruas" no interior do Grand Bazar coberto. Nesta parte, mulheres de preto olhavam jóias nas vitrines.

Passando dali às áreas mais ao norte do centro, o ambiente é outro. Não vou lhe dizer que muda tão radicalmente quanto ir do Leblon a Pavuna no Rio de Janeiro, ou de qualquer periferia a bairro nobre no Brasil (a América Latina ainda é o continente mais desigual de todo o mundo), mas você percebe a diferença. Há menos gente vestida à maneira conservadora, mais lojas chiques, avenidas melhor arborizadas, etc. Há também muitas coisas que os olhos não veem, pois como muito é proibido no Irã, muito ocorre às escondidas, longe das vistas, sobretudo dentre a turma jovem de classe média. 


Eu gosto de dizer que os iranianos são os italianos do Oriente Médio. Na Europa, os italianos têm fama de serem os que melhor se vestem, os das maneiras mais refinadas, e os mais metrosexuais (de homem "metropolitano", que se vestem de acordo com a moda, usam cosméticos, etc., independente da sexualidade). No Irã é parecido. Os homens desfilam no dia-dia com suas camisas sociais de manga comprida na rua, sempre sapato social para ir ao trabalho, e calças sociais em vez de jeans. As mulheres, apesar da obrigatoriedade do véu, desfilam seus óculos escuros sobre a cabeça, maquiagem, enfeites, véus coloridos, xales no pescoço e sobrancelhas feitas. 

Este é um visual típico dentre as mulheres de classe média no Irã, que você vê comumente nas grandes cidades.

É diferente dos países árabes, onde as pessoas me parecem muito mais simples e básicas no vestir — os homens frequentemente saem de chinelão ryder no pé, e as mulheres quase sempre estão em trajes tradicionais de tons neutros. E não é só a roupa: os árabes são muito mais simples e rústicos, muitas vezes ríspidos (lembro-me que em Marrakech eu via pelo menos um bate-boca ou briga de rua por dia), enquanto que os iranianos, em comparação, me parecem cheios de educação e polimento — às vezes até demais, a ponto de serem meio falsos, mas falaremos disso depois. Não estou dizendo que um seja superior ao outro, mas que são comportamentos e hábitos sociais diferentes.

Falando em polir, nunca vi um lugar com tanta gente que tenha feito cirurgia plástica do nariz. Na rua, num dia você vê pelo menos meia dúzia de gente com curativo pós-cirurgia no nariz, sem falar em outros tantos (homens e mulheres) com o nariz já afinado. Das que trabalham com serviços então (ex. aeromoças), algumas chegam a se parecer com bonecas barbie. A moda é ter o nariz europeu, ao contrário do habitual nariz grande e comprido que os persas têm. Às vezes a cirurgia embeleza, mas às vezes fica artificial demais e feio. (Em reação a isso, há agora uma campanha chamada "Meu nariz natural" aqui no Irã, vejam aqui.)
Restaurante no centro de Teerã com decoração características. Esses assentos onde você senta com as pernas cruzadas e come sem mesa são tradicionais aqui no Irã. 
Teatro Municipal de Teerã.

No cruzamento das avenidas Valiasr e Enghelab fica o teatro da cidade, um belo prédio, e fica também o coração da área frequentada pela juventude de classe média. Um amigo brasileiro trabalhou na Líbia e me disse que lá homem e mulher mal se olhavam nos olhos, que ele tinha medo de olhar a lambisgóia errada e se dar mal. Se é verdade, não sei, sei que aqui em Teerã isso está longe de ser o caso. O que eu mais vi foram casais jovens conversando livremente na praça  além de eu próprio ter tomado umas belas secadas aqui e ali. 

Foi só nessa área que eu, finalmente, consegui beber café. Antes, no bazar, eu tive que tomar mais uma vez a inglória mistura 3x1 na rua porque não consegui ficar sem café e foi só o que eu encontrei. As pessoas bebem é chá preto o tempo todo. Mas neste pedaço, não, aqui tem todos aqueles cafés à moda europeia (espresso, cappuccino, etc.). O lugar ficava mocado, meio escondido, quase como um lugar de jogo do bicho, por detrás de umas portas ao fundo de uma galeria. O interior, meio escuro onde as pessoas fumavam, embora arrumadinho parecia um salão de jogo de pôquer, com as luzes sobre as mesas, onde jovens ficavam de namorico e risadas secretas. Do bar, o despojado dono, jovem, tocava Red Hot Chili Peppers e outras bandas ocidentais proibidas no Irã como música não-islâmica. Na prática, há um abismo enorme entre o conservadorismo das leis e a mentalidade de grande parte da população. 


A parte mais inglória, contudo  e isso eu não havia previsto  foi a dificuldade pra achar lugares onde comer. Eu me dei conta de que a vida social não-religiosa aqui se dá mais em locais privados, não em público. As festas são quase sempre na casa de alguém, ou em bares e clubes escondidos. Não imaginei que até os restaurantes fossem tão escassos, a ponto de serem quase inexistentes fora dos hotéis e pontos turísticos. Parece que iraniano simplesmente não come fora. Só o que achamos foi fast-food, limitado sempre a hambúrguer, pizza chinfrim, e falafel frito no pão, que por demasiadas vezes teve que servir de jantar.

Olha o falafel aí na minha mão. Pra quem não conhece, são bolinhos fritos de grão-de-bico com tempero. Não é mau, apesar de um pouco gorduroso. Você acha fácil cá no Oriente Médio e, hoje em dia, na Europa.

A sorte foi, nessa área aí mais nobre, Allah ter ouvido as minhas preces e me deparado com um buffet iraniano vegetariano. Olha que maravilha. Soltei até um beijo no ar, para delírio geral e o divertimento do povo atrás do balcão. 

Uma observação breve sobre os modos iranianos: jamais faça aqui o sinal de positivo com o polegar (o joinha), habitual no Ocidente e sobretudo no Brasil. Aqui ele significa o mesmo que mostrar o dedo do meio. Mas quem disse que eu consigo me policiar? Num país onde você não fala a língua, é quase automático agradecer uma informação ou o que for sempre com o gesto. Ainda bem que não entrei em confusão. O mais comum no Oriente Médio parece ser pôr a mão sobre o peito, como que no coração. Ou soltar um beijo, a depender da sua euforia. A minha por ter achado comida era enorme.

Arroz de vários tipos temperados no buffet. Deixa eu dizer eu segredo a vocês: no Brasil a gente não sabe o que é arroz não, viu. Aqui no Irã você come o arroz até puro, de saboroso que é, diferente do bagulho parbolizado e sem gosto que se vende no Brasil.

Após uma bela refeição, retorno de metrô ao hotel. Haviam me dito que o metrô de Teerã era um inferno. Balela, o metrô funciona muito bem, obrigado. E nem tem tanta gente assim. É movimentado, mas nem se compara aos do Rio ou de São Paulo quando o bicho pega.


Na manhã seguinte, acordamos para o belo som de britadeira entrando pela janela, para complementar a canção dos carros e aumentar a poeira um pouquinho. Uma delícia. Dois dias foram o suficiente para vermos o que queríamos em Teerã, e seguir viagem. Vimos o belo Museu de Vidrarias (glassware) antigas, o Museu Nacional, obrigatório para os amantes de História, as jóias da coroa em exibição no Banco Central (proibido foto), e  o mais bonito ao meu ver  o belo Palácio Golestan, da Dinastia Qajar do século XVIII, que fez de Teerã a capital. 

Jarra de vidro temperado da Pérsia medieval.
Datada do século X ao XII.
Nos jardins e fontes do Palácio Golestan, hoje atração turística.
Uma das fachadas do palácio.
Interiores.
Essas paredes decoradas com espelhinhos são bastante comuns aqui. É uma coisa do século XX, quando fizeram muitas reformas no palácio.
Muros do Palácio Golestan.





Eis a capital do Irã, e uma introdução ao país. Mas, como eu disse no princípio, não é a mais bonita, nem a mais agradável cidade. A essas outras nós vamos a seguir.