quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Estrasburgo (França), a capital do Natal

Na minha experiência tendo visitado até agora 35 países europeus, Estrasburgo é uma das mais belas cidades do continente. Uma cidade que muitos brasileiros, devido ao seu nome alemão, sequer sabem que é francesa, e que  às margens do Rio Reno, na fronteira entre a França e a Alemanha  tem mesmo um ar germânico. Tirarei um momento posterior para falar da sua importante história e mostrar a sua linda herança como divisora de águas de dois mundos europeus, o francês e o germânico, mas hoje eu falarei exclusivamente da época em que Estrasburgo dá o seu melhor: o Natal.

O mês de dezembro é a alta estação na cidade. Os preços triplicam, os turistas se multiplicam, e não sem razão. Como retratado noutros posts meus da Europa, aqui há a tradição de se fazerem Feirinhas de Natal (Christmas Markets, Marchés de Noel, Christkindlmarkte), um costume germânico medieval e que hoje todas as nações da Europa Central mantêm. São barraquinhas em jeito de casa de lenhador, tradicionalmente em madeira, onde se vendem artesanatos, biscoitos caseiros, e vinho quente com especiarias  o gluhwein, vin chaud, mulled wine ou, no brasileiro popular, quentão.

Já estive em festas de Natal de quase toda a Europa, e pra Estrasburgo talvez seja a melhor delas, ao menos em termos de decoração e visual. Se em outras cidades da região, como Viena ou Berlim, há as tais feirinhas em alguma praça da cidade, aqui em Estrasburgo elas estão por toda parte. A cidade histórica inteira se converte numa disneylândia natalina, onde as estreitas ruas e largas praças enchem-se de gente e do clima de Natal.

Se você não gosta de multidões, evite; mas se não liga, caia na gandaia como eu. Dei ainda "sorte" que este ano, devido aos atentados em Paris, os franceses ficaram com medo e vieram em menor número — disse-me a funcionária do hotel.
Uma das praças centrais de Estrasburgo à noite. (PS: Aqui na Europa as árvores de Natal tendem a ser de verdade, não de plástico.)
Casinhas tradicionais de madeira montadas pela cidade vendendo produtos de Natal.
Os famosos biscoitos alsacianos, aqui chamados de Bredele ou Bredle. Eles são comuns em toda a Europa Central nesta época do ano. Normalmente são biscoitos com mel, doces de frutos silvestres, ou mais caracteristicamente com especiarias exóticas tipo cravo e canela. Essas especiarias, caras e apreciadas na Europa medieval como um luxo, eram guardadas justamente para a celebração mais importante do ano, o Natal. 
Quentão. O vinho, como os biscoitos, leva as especiarias e casca de laranja, também exótica (as laranjas são da China e foram trazidas à Europa mediterrânea pelos árabes como algo exótico). O quentão, doce, também leva o não menos exótico açúcar, especiaria que vendia a preço de ouro na Europa, vide a História brasileira.
Muito típicas por toda a Europa a esta época do ano são também as castanhas portuguesas, como as chamamos no Brasil. Assadas e vendidas na rua, são uma delícia.

A cidade em si já é pitoresca, e na época do Natal o fica ainda mais.
Ruas do centro histórico de Estrasburgo. Arquitetura alemã, alma francesa.
Decoração de Natal nas casas antigas.
Pra ver arte gótica e a parte cristã do Natal, não deixe de conferir a linda catedral de Notre Dame de Strasbourg, que em 2015 completou mil anos de sua fundação. (O interior da catedral eu mostro quando comentar melhor Estrasburgo.) 
Mostro, por ora, o presépio montado na igreja em diversas partes, a iniciar pelo anúncio do Arcanjo Gabriel a Maria. 
...seguido do encontro de Maria com sua prima Salomé, falando-lhe de sua gravidez...
O nascimento de Jesus na manjedoura.
A visita dos reis magos.
E, por fim, a apresentação de Jesus ao templo, conforme a tradição judaica 40 dias após o seu nascimento. Ali Simeão, no centro, o segura.

Comentarei melhor a minha experiência na cidade num post futuro. Por ora, um ótimo Natal a todos!



domingo, 20 de dezembro de 2015

Maastricht e a curiosa igreja transformada em livraria (com café)

Se, como escreveu São João, no princípio era o Verbo e o Verbo era Deus, estamos aqui diante de uma bela manifestação divina. Preparem-se para uma das livrarias mais originais do mundo, no animado sul holandês.

Estamos no extremo sul da Holanda, em Maastricht. Aqui nesta cidade nasceram a União Europeia e o euro. Sua escolha para a assinatura dos acordos de 1992  o chamado Tratado de Maastricht  certamente não foi acidental; aqui, neste rabinho sul da Holanda já espremido entre a Alemanha e a Bélgica (e pertinho da França), a cidade adquire um ecumênico espírito cosmopolita europeu. A maioria de amigos meus que vêm desta região dizem se afinarem mais com a identidade de europeus que de holandeses. Eis o futuro da Europa e talvez de todo o mundo: a substituição das identidades nacionais de país por identidade nacionais continentais. (Chegará o dia em que nos sentiremos mais sul- ou latino-americanos que brasileiros, do mesmo jeito que muitos de nós aprendemos a sentir-nos mais brasileiros que baianos, cariocas ou potiguares? O tempo dirá).

Mas guenta lá que eu prometi aqui falar de igrejas, livrarias e café...
Localização de Maastricht, num sul da Holanda e miolo da Europa.
Cheguei a Maastricht na semana passada, depois de quase seis anos desde a minha primeira visita à cidade. O inclemente chuvisco eterno holandês  ao meu ver, muito pior que na Inglaterra  fez-se lá como esperado. (Mentira, eu não esperava. Quando cheguei havia um lindo pôr de sol e esperei que no dia seguinte fosse fazer sol de novo. Tolice. Esqueci que dois dias de sol seguidos na Holanda são quase tão raros quanto raio cair duas vezes no mesmo lugar. Acordei no dia seguinte para uma manhã de chuva, a escuridão característica do outono/inverno nesta parte da Europa, quando sol nasce às 8:30h e passamos do negro da noite ao cinza do dia, até a noite retornar às 16:30h).

O lado positivo é que, quando não chove  ou mesmo debaixo de chuvisco  você passeia por lindos calçadões com as decorações de Natal a esta época do ano, lojas enfeitadas, e as típicas feirinhas de Natal (Christmas markets). Embora elas sejam mais características da Europa Central (Alemanha, Áustria, Suíça, Hungria, República Checa, Eslovênia, Eslováquia e Polônia), os holandeses recentemente abraçaram a tradição, pois perceberam que turista gosta.
Pôr do sol sobre o Rio Maas, que corta a cidade. O centro histórico está todo de um lado, e a estação de trens do outro. Daqui, os holandeses  como sempre navegadores  chegavam ao Atlântico. 
Agradáveis ruas do centro de Maastricht com decoração natalina.
As notórias feirinhas de Natal, com uma das muitas igrejas da cidade lá atrás. (Para quem ainda não conhece, essas feirinhas costumam vender artesanatos de vários tipos, decorações de Natal pra a casa, e comilanças diversas. Aqui na Holanda são muito comuns as oliebollen, umas bolas de massa frita, comidas com açúcar por cima. Não me apetecem muito, mas os holandeses adoram).  
Rinque de patinação no gelo. Sou um desastre nisso, mas os europeus em geral adoram. As crianças, sobretudo, se divertem bastante.
Calçadões seculares de Maastricht, hoje repletos de lojas, bares e restaurantes.

Mas, seja qual for a época do ano, a atração mais conspícua de Maastricht é, sem dúvidas, a sua igreja dominicana transformada em livraria. É uma das livrarias mais originais do mundo, e uma visita obrigatória caso você venha aqui à cidade.

A igreja foi consagrada em 1294. Maastricht havia passado de vilarejo romano a vilarejo medieval dos duques do Sacro-Império Romano-Germânico. Curiosamente, numa guerra entre a França e esses duques, foi aqui que morreu em 1673 Charles Ogier de Batz de Castelmore, mais conhecido como Conde de D'Artagnan. Ele existiu mesmo; era capitão dos mosqueteiros sob o Rei Luís XIV (o Rei Sol). Mais tarde, no século XIX, é que o autor francês Alexandre Dumas romancearia sua vida, em obras como Os Três Mosqueteiros e outras. Morreu aqui em Maastricht, quem diria.

Noutro imbróglio com os franceses, a Holanda seria invadida em 1794 por Napoleão, que entrou em Maastricht e pôs os dominicanos pra fora. Era o fim daquela igreja enquanto igreja.

Muito tempo passaria, o templo viria a ser usado como depósito, garagem de bicicletas e  não pergunte por que os dominicanos depois não voltaram  ao fim a igreja foi adquirida por uma rede de livrarias para esta daqui. Os holandeses, em geral pouco ou nada religiosos, adoram. (Caso você esteja chocado, em Amsterdã há uma que virou casa de shows.)

A nave da igreja continua intacta, embora não haja mais imagens religiosas à vista. No chão, você caminha sobre o que parecem ser seculares tumbas com epitáfios. Diversas estantes de livros agora percorrem a área principal onde costumavam ficar os bancos. E onde era o altar, hoje está o café Coffee Lovers, num convite ainda à congregação e ao amor.
Interior da livraria no que era uma igreja dominicana, com as antigas tumbas no chão e os vitrais góticos ainda cheios de personalidade lá ao fundo, criando um ambiente bastante original.
Eu na livraria, estufado em roupas de inverno. Percebam que ali há dois pisos extras, montados num dos lados da nave, e que os afrescos religiosos no teto permanecem visíveis. 
Interior da livraria, com vista para os pisos superiores e a entrada.
O café, como em toda livraria que se preze. Nesta aqui, no entanto, o café fica onde era o altar. 
Eu com cara ainda de sono antes do café. Na mão direita, um pedaço de nougat. (Pra você que, como a maioria dos brasileiros, conhece de nome mas não sabe explicar o que é, nougat é um tipo de doce besta muito comum na Europa, feito com açúcar, mais açúcar, clara de ovo e amêndoas ou nozes.)
O nougat faz um estilo meio puxa-puxa, como você pode perceber nesta foto não autorizada.

Caso prefira um doce mais decente, aproveite que está em Maastricht para comer  lambuzar-se e devorar  as tortas limburguesas (Limburg pie). Limburg é está província da Holanda, da qual Maastricht é capital. Eles aqui falam o dialeto regional, o Limburguês, e têm o sotaque mais fofo de toda a Holanda. (Caso você não tenha tido o tempo de reparar, os holandeses do norte, onde estão as principais cidades do país, têm uma dicção gutural horrível, raspada na garganta e que me fez achar o alemão uma língua suave em comparação. Aqui no sul, não. Venha e confira o douceur do holandês falado aqui.)

Não deixe de conferir a doçura das tortas, também. São, em geral, tortas redondas com recheio de maçã, nozes, morangos, amoras ou o que for  as típicas tortas de frutas de clima temperado. Em Amsterdã você pode encontrar as imitações, mas só aqui em Limburg você acha as originais. Eu tive a fortuna de encontrar uma padaria com muitas delas bem ao lado do moinho de água, que qualquer um na cidade sabe lhe dizer onde fica.
Maravilhosas tortas limburguesas na vitrine, de vários tipos.
Entrei. Mas você não me verá comendo, pois a lambuzança foi muito grande e nem parei pra pensar em tirar foto.

Por fim, para integrar a todos, deixem-me dizer àqueles que gostam de visitar também igrejas com atmosfera de igreja que não deixem de visitar a Basílica de Nossa Senhora Estrela do Mar (Onze Lieve Vrouwe Sterre der Zee uma referência aos navegantes holandeses que buscavam auxílio no mar, não ao equinodermo.    

Esta igreja românica, de estilo anterior ao gótico, é ainda mais antiga que aquela transformada em livraria. Esta aqui foi erigida ainda nos séculos XI e XII. É provavelmente a igreja mais notável que já visitei na Holanda, e uma das mais impressionantes da Europa  se não em riqueza material, em ambiente. A escuridão medieval anterior está mantida, e pelos vidros das pequenas janelas você recebe a pouca luz que vem do dia lá fora. O silêncio impera. No porão por uma escada estreita que parece levá-lo a alguma catacumba, você tem a uma lojinha. A capela a nossa senhora, sempre numa conflagração de velas, é impressionante e acolhedora.
Entrada para a Basílica, com a capela logo ali à frente.
Uma impressionante conflagração de velas, ali à frente e também dos lados, num ambiente envolvente.

Seja qual for a sua inclinação de gosto, Maastricht merece a sua visita. E, quer você prefira a igreja livraria ou essa igreja igreja  ou as duas , não deixe de experimentar as tortas.




quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Visitando La Paz: Centro histórico, o Mercado das Bruxas, as Cholitas e o Carnaval boliviano

Leia uma versão de melhor visualização deste post no novo site, em:
e

La Paz oferece uma genuína mistura de cultura indígena e colonização espanhola. Apesar dos pesares que observei no post anterior, a cidade tem uma série de pontos interessantes a ver  e comidas típicas a experimentar (a Bolívia é um dos poucos países do mundo onde não existe McDonald's!), e música a ouvir, contemplando assim todos os sentidos. Se você vai gostar ou não são outros quinhentos, mas valem a pena conhecer. Aqui neste post incluo ao final alguns vídeos de música e dança ao vivo que assisti. 

O centro histórico de La Paz, ainda que suas ruas estreitas e íngremes façam você se sentir emboscado quando passa um ônibus lançando fumaça preta no ar e eliminando o pouco oxigênio disponível aqui a 4.000m de altitude, tem um casario colonial bonito, e praças legais de ver. Prepare-se para os pombos. 

A Basílica de São Francisco, de 1758, em estilo colonial barroco.
A catedral metropolitana em estilo neoclássico, de 1835, na Plaza Murillo, o coração do centro.
O Palácio de Governo, na mesma praça. A coisa mais comum nas ex-colônias espanholas da América Latina é ter, como em algumas cidades do Brasil, uma praça central com a catedral de um lado e a prefeitura ou o palácio de governo do outro. Retrato da parceria da época entre a Coroa como poder temporal e a Igreja como poder espiritual.
À entrada do palácio, com os incas me olhando.
Duas observações. La Paz é onde fica o governo, mas não é exatamente a capital. Formalmente, a capital da Bolívia é a cidade de Sucre. É o mesmo que se passa na Holanda, onde a capital é Amsterdã mas o governo e todas as suas instituições ficam em Haia. 

Segundo, você talvez tenha notado que as igrejas aqui não são assim tão antigas assim, ainda que a cidade seja de 1548. Salvador e outras cidades coloniais têm hoje ainda igrejas dos idos de 1600. A razão é que La Paz tornou-se a cidade principal da Bolívia há relativamente pouco tempo, só no século XIX. Antes, era Potosí a maior cidade boliviana, e que chegou a se tornar a segunda cidade mais populosa do mundo no século XVII, atrás apenas de Paris. Lá havia a maior mina de prata da Terra, que os espanhóis exploraram sem dó 
 nem da terra e nem dos indígenas que escravizaram para esse trabalho. Dizem que era tanta prata que podia-se vê-la na superfície sem nem cavar. Foi o equivalente boliviano do que tivemos em Minas Gerais com Ouro Preto.  


Como dizia Eduardo Galeano, escritor uruguaio, Portugal e Espanha tinham a vaca mas não bebiam o leite. Exploraram toneladas de ouro e prata das Américas, mas quem se industrializou e enriqueceu foram França, Inglaterra e Holanda. Seja como for, vale a pena caminhar por estas ruas de casario colorido do centro histórico de La Paz.

O centro de La Paz é relativamente compacto, e se tiver fôlego você pode fazer tudo a pé, sobretudo essa parte antiga.

A Calle Jaén é das ruas mais populares entre os turistas estrangeiros. Arrumadinha, é cheia de lojinhas de produtos ecológicos, cafés tradicionais, souvenirs, essas coisas. É bonita, e está bem conservada.
Daí a frente você encontra as lojinhas e cafés para turista. Não é nem um pouco representativo do que é La Paz como um todo, mas é uma área bonitinha e gostosa de visitar.

Você certamente não deixará de notar, ruas afora, as personagens mais conspícuas de toda a Bolívia: as cholitas, mulheres com chapéus-coco ingleses do século XIX.  (O nome vem de chulo, que em espanhol pode ter o sentido de "bonitinho". Então las cholitas são tipo "as bonitinhas").


A história é curiosa. Como estudamos na escola, a Inglaterra aproveitou-se imensamente da independência das ex-colônias de Portugal e Espanha nas Américas. Passou a fazer comércio diretamente conosco e a empurrar-nos coisas de que muito necessitávamos neste calor dos trópicos, tais como casacos de caxemira e patins de gelo. Foi o mesmo com esses chapéus-coco, moda inglesa do século XIX e que eles venderam forçadamente à Bolívia. Os homens bolivianos não se interessaram nem um pouco. Mas quem adotou a moda acabou sendo a mulher andina, que os utiliza até hoje, sobretudo as mais velhas. Juntos com suas roupas coloridas largas e o par de tranças compridas no cabelo, fazem a indumentária típica das cholitas que você vê Bolívia afora.

Cholitas. O chapéu-coco, que a mulher ali à direita usa, tornou-se tradicional entre mulheres andinas na Bolívia. Se você quiser ver uma coisa bem esculhambação, assista à luta-livre pastelão das cholitas em El Alto. É de mentira, tipo o tele-catch que passava na TV, e alguns dos lutadores são inclusive homens vestidos de cholita. Não cheguei a ir ver, mas fica a informação. Qualquer um saberá indicar onde é.

Uma coisa um tanto bizarra e que eu fui ver foi o Mercado das Bruxas, uma seção dos mercados de rua dedicada a remédios indígenas, ingredientes para rituais religiosos e coisas do tipo. Algo parecido com o que, sabendo onde procurar, você encontra na Bahia ou no Rio de Janeiro. Só que aqui é mais à vista. 


Os produtos vão desde ervas e sementes medicinais até pó de lagarto seco para cicatrizar feridas e fetos de lhama (não me pergunte pra quê).

Garrafas com cara de catuaba e ingredientes de todos os tipos no Mercado das Bruxas.
Pode ser um tanto bizarro à primeira vista ("coitadinha da lhama..."), também tenho pena, mas lembre que foram os espanhóis que começaram a levar às espécies aqui à beira da extinção. Os indígenas as utilizavam de forma sustentável.

Fica à beira da Rua Sagarnaga, famosa por seus brechós de têxteis e produtos andinos a preço de banana. Se você for também ao Peru, programe-se para comprar as coisas na Bolívia, pois são aproximadamente a metade do preço, e quase sempre os mesmos produtos. 

Não, não comprei nenhum remédio, e nem lhama seca. Satisfiz-me com os mates de coca para combater o mal da altitude (ver Chegando aos Andes: Entre a altitude e as folhas de coca em La Paz, Bolívia). 


E para comer? 
Certa vez eu estava passeando com uma amiga estrangeira no centro de Salvador, na Bahia, e ela  habituada à Europa  perguntou se poderíamos entrar em algum café para ela usar o banheiro. Eu tive que segurar a risada, e expliquei que ali havia restaurantes, bares, botequins, mas nada sequer semelhante aos aconchegantes cafés da Europa. La Paz é parecida, só que vi bem menos restaurantes, pois acho que o hábito brasileiro de almoçar em buffets na rua não chegou à Bolívia.


Você aqui se vira ou com comidas de rua (se não tiver resistência a essas comidas mais "povão", estilo mercadão e parada de ônibus), ou em restaurantes de hotel e outros para turista, se quiser algo mais refinado. Eu fiquei com uma mistura dos dois. Na rua, comi salada de frutas em copo de vidro e empanadas melhores do que as que havia encontrado em Santiago do Chile. No hotel, comi trilogia de quínoa e outras criações com maravilhosos produtos dos Andes.

Tia me vendendo suas empanadas trazidas de casa numa caixa de papelão. Ali ela ficava, na calçada, anunciando o que tinha trazido pra vender ao final da tarde.
Simples, apenas com queijo dentro, e às vezes massa de batata. Custou-me menos de 1 real, e bem saborosa. 

Gosto dessas coisas simples, despretensiosas, e com sabor. Quando eu digo que a Bolívia me chamou a atenção por certos hábitos que eu não havia visto em outros lugares, as pessoas às vezes ficam sem entender. Mas nunca, em nenhum outro lugar, nem nos países ditos "os mais civilizados" como na Europa ou Japão, alguém havia me vendido salada de fruta no copo de vidro e dito pra eu levar embora e reencontrá-la na praça depois. Me chamou a atenção, primeiro, por não gerar o lixo dos copos descartáveis que hoje estão por toda parte. E segundo pelo nível de confiança e agregação social 
 no Brasil, as pessoas levariam o copo embora, e mesmo na Europa ninguém confia que você vá embora e volte pra trazer. Só vi na Bolívia, e adorei. (E a propósito, a salada estava muito boa.)

Este é um que NÃO consegui encarar da comida de rua boliviana, mas eles adoram, uma espuma branca açucarada (se você soprar, ela voa) por cima de um doce artificial. Urgh.

Vamos às partes mais sofisticada agora, que você só acha em hotel e outros lugares pra turista 
 mas que valem a pena. A comida boliviana mais famosa mundialmente no momento provavelmente é o quínoa, este cereal que o povo daqui cultiva há muitos séculos e que descobriu-se ser riquíssimo em nutrientes  na Europa é um dos queridinhos dos macrobióticos e vegetarianos, mas custa um tiro. Aqui na Bolívia fazem de tudo com ele, desde sopa a hambúrguer, e até sobremesa. 


As batatas, caso você não saiba, são nativas aqui dos Andes e foram domesticadas em dezenas de variedades. Então são comuns também. ("Batata, arroz, quínoa e macarrão  na Bolívia eles lhe servem quatro carboidratos no mesmo prato!", comentou certa vez um amigo meu biólogo, revoltado.)
Quínoa, pra quem não conhece.
Preparando-me para comer um hambúrguer de quínoa com salada. 
Agora sim, a minha trilogia de quínoa (invenção do chef, não é um prato tradicional). Da esquerda pra a direita: creme de quínoa com chantilly, pavê de quínoa, e sorvete de baunilha com quínoa. Haja quínoa, mas estava tudo bom.

Antes que vocês corram para a cozinha para buscar algo para comer, eu prometi mostrar a música boliviana e falar um pouco do seu Carnaval. Fechemos o post com isso.


Afora o Brasil, o Carnaval boliviano (particularmente na cidade de Oruro) é talvez o mais expressivo das Américas, quiçá do mundo. Os bolivianos se mobilizam aos milhões para essa festa que fala tanto da sua cultura e história. A gente no Brasil pouco ouve falar porque, desde o Golpe de 1964 e a chamada "Guerra Fria cultural", buscaram desfazer as nossas relações culturais com o resto da América Latina e voltar a atenção apenas para a cultura dos EUA (daí haver uma invasão de quadrinhos norte-americanos, música, etc.)


Eles aqui misturam as violas árabes aprendidas pelos espanhóis às flautas e aos tambores dos indígenas. Os dois vídeos abaixo de um ótimo show que assisti dão uma ideia. 


Apresentação de música tradicional boliviana em La Paz, num restaurante.


Neste eles tocam e cantam o clássico Carnavalito, talvez a mais famosa música do carnaval andino.

Num dos dias durante a minha estadia em La Paz, fizemos um tour guiado que incluiu visita a um bairro onde se fazem artesanalmente as fantasias de Carnaval, e eu descobri que o carnaval boliviano é muito mais rico do que parece 
 se não em dinheiro, em cultura.


Na Europa, terra de origem do Carnaval, pouco dessa cultura restou. Há os tradicionais personagens como o pierrot e a colombina, que mantêm-se em poucos bailes fechados para europeus saudosistas em lugares como Veneza, mas em geral o povo na Europa hoje (nos poucos lugares que ainda festejam o Carnaval) sai à rua para pular e beber, e pronto. A América Latina construiu uma cultura carnavalesca muito mais rica. Aqui na Bolívia eles têm dezenas de personagens que fazem referência à sua história, mesclando lendas indígenas, o passado colonial do país, e as festas católicas trazidas pelos espanhóis. 


Nesta dança abaixo, a mocinha indígena  vestida com o característico vestido de rendas colonial espanhol que se vê do Chile ao México, no fresco algodão indígena que os espanhóis não conheciam (eles usavam lã e linho antes de vir para as Américas) --- é cortejada pelo capataz, que historicamente eram mulatos ou negros usados como "capitães do mato" para controlar os escravos indígenas na Bolívia (daí seu açoite e cabelo encaracolado). Na ponta das tranças do cabelo, as três cores da Bolívia. E na mão, o chapéu-coco de cholita.



Se em outras partes do mundo o Carnaval é relacionado a certo tipo de música e dança (ex. samba no Rio de Janeiro), na Bolívia são muitos os ritmos e estilos. Algumas danças lembram danças gaúchas, já outras, as quadrilhas juninas do Nordeste.


São muitos os personagens no Carnaval boliviano, desde aquele capataz até Pachamama (a Mãe Terra) à Virgem Nossa Senhora da Candelária com suas 7 virtudes, o Arcanjo Miguel, e o capeta acompanhado dos 7 pecados capitais. Rola de tudo, no que parece ser uma linda mistura do nível que só a criatividade latino-americana é capaz de conceber. Fica pra quando eu for ver o Carnaval da cidade boliviana de Oruro, o mais famoso, e declarado pela UNESCO Obra Mestra do Patrimômio Oral e Intangível da Humanidade. Às vezes as agências internacionais dão maior valor às nossas tradições culturais que nós mesmos. 

Deixo-vos por ora com as cholitas.