sábado, 28 de junho de 2014

Mairon no Deserto do Saara: Camelos e muita areia em Merzouga

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No Deserto do Saara.
Areia, vento, calor. O que você esquece de imaginar é o silêncio. Na cidade há sempre barulho de algum tipo; no campo há pássaros e outros sons da natureza; já no deserto não há nada  às vezes nem o vento faz ruído. Conforme você trota no camelo, entre um grunhido ocasional e outro, parece que você saiu do mundo e se encontra num espaço paralelo. A sensação é de sossego e serenidade, se você souber aproveitar a quietude.

Como a camelada é feita ao fim da tarde, não é quente. Pelo contrário, rapidamente esfria, e prepare-se para uma noite de bater os dentes se você não estiver agasalhado. Nossa tenda foi das mais vagabundas, cheia de areia e piolho.

O ponto de partida para passeios de camelo no deserto no Marrocos é Merzouga, uma vila já quase enfiada no Saara e já perto da fronteira com a Argélia. Não imagine um vilarejo idílico; é mais uma cidade pequena com pistas e hotéis, apropriada para o turismo intenso de estrangeiros. Mas mal nos detivemos lá, e não acho que haja mesmo muito a ver. Quem chega aqui quase sempre já vem com pacotes comprados de Fez ou Marrakech, e o motorista simplesmente nos deixa num hotel à beira do deserto onde os cameleiros (os guias locais que fazem o percurso com você no deserto) já nos aguardam. A bagagem fica na van esperando você voltar no dia seguinte.

Mustafá o motorista, de preto, nos passando ao cameleiro, de azul. A paisagem aqui ainda mistura areia com algumas plantas e rochas. A visão alta é porque eu já estava em cima do camelo quando tirei a foto. (Sinta a altura).
Eles facilitam um pouco a vida do turista. Há umas colchas sobre o dorso do camelo, um guidão amarrado pra você se segurar, e os camelos vão em fila amarrados por uma corda uns aos outros pra que nenhum saia em disparada com você em cima.
Pra quem nunca montou num camelo, a primeira sensação é de cagaço. O bicho é alto pra caramba, bem mais que um cavalo (sua bunda fica a uns 2m de altura), e sem um lugar muito firme pra segurar você tem a sensação de que pode cair e quebrar o braço a qualquer momento. Por sorte eu já tinha andado de camelo antes, na Índia, onde a coisa é menos organizada e mais hardcore. Lá não havia lugar de segurar e o camelo ficava livre para trotar (ou galopar) com você, e só havia uma cordinha presa ao meio das narinas do camelo e que servia de rédea (e que, se você puxasse demais, arrebentaria o nariz dele) . Ao final do dia, com as pernas abertas e o bater de bunda, parecia que eu tinha sido estuprado. Já aqui em Merzouga os camelos vão mais docemente, em fila, na paz, com um guia que vai caminhando à frente da linha e segurando a cordinha. Bem tranquilo.
Éramos duas filas de seis, com os guias indo a pé à frente.
Eu era o último das duas filas.
Como o trajeto é tranquilo e num período do dia que não é quente, dá pra você apreciar a paisagem e a paz  enquanto que na Índia o que dominava era o instinto de sobrevivência de não cair.

Trotamos por cerca de uma hora e meia. A vegetação desaparece por completo depois de um tempo, e tudo o que resta é a areia. É lindo. Por sorte não estava ventando, ou tomaríamos areia também na cara. Tal como na praia, de repente você percebe areia entre os dentes, nos bolsos, e na lente da câmera.

Conforme o sol ia se pondo, as sombras da nossa fila de camelos iam se estendendo no chão. Trotamos até pararmos para ver o pôr-do-sol do alto de uma duna. Subir é menos fácil do que parece. Você escorrega toda hora e o pé afunda. Além disso, as dunas às vezes são íngremes e enormes.
Sombras dos camelos na areia.
Subir e descer é na verdade a parte mais desafiadora do montar camelo. Além disso, quando ele se abaixa pra você desmontar, ele se ajoelha de uma vez, e se você bobear cai pra frente.
Ali em azul ia um dos nossos guias, miúdo no oceano de areia.
Ali voltou o guia. Pela posição, parecia que ia profetizar alguma coisa, ou nos lançar raios.
Já com o sol querendo se pôr. A minha amiga tcheca ali de verde já estava se sentindo a própria Daenerys Targaryen.
O belo pôr de sol, e a altura da duna. Os camelos nos aguardavam acomodados lá embaixo.
Sol posto, retornamos aos camelos para mais meia hora já meio no escuro, até chegarmos ao acampamento. O acampamento era algo fixo, já que quase ou toda noite há turista. São várias tendas dentro de um cercadinho e com as entradas viradas pra um espaço aberto no meio, como uma aldeia indígena. Havia espaço para fogueira, umas mesas, bancos e cadeiras, uma grande tenda restaurante, e as várias tendas de dormir. Eram todas altas, e você se abaixava só para passar pela portinhola na lona e entrar. "O banheiro é longe. Pra qualquer direção, contanto que seja longe", foi logo explicando o guia quando chegamos.

Falando em banheiro, a área à frente da entrada do acampamento, onde os camelos passam a noite, estava cheia de fezes deles, umas bolinhas. "Olha, acho que são sementes!", disse uma das moças, pegando uma com a mão. Acho que não havia nada verde ali num raio de quilômetros. Não demorou a alguém lhe dizer o que eram, e ela jogou fora rápido como se fosse um bicho que ia mordê-la.

Um belo jantar nos aguardava. Como de costume no Marrocos, vieram pratos coletivos de onde todo mundo se serve. (Para turista, atualmente o comum nas cidades são pratos individuais, mas o tradicional é todo mundo comer de mão do mesmo pratão). Aqui não comemos de mão (até porque não teria água pra lavar), mas todo mundo da mesa comia nos mesmos pratos: um tajine de legumes (um refogado temperado, que tradicionalmente é servido numa panela de barro), uma carne (que me disseram ser carneiro), e um pratão de arroz. Não estava mau  comemos e raspamos o tacho parecendo retirantes da seca.
A lua crescente anunciava uma bela noite.
A frente da tenda de dormir, iluminada só pelo flash da câmera, já no breu.
A tenda restaurante, bem mais arrumada. Os pratos na mesa, e umas espanholas simpáticas de companhia.
Jantar terminado, ficamos ali numas rodas de conversa. Depois fui até a entrada apreciar a imensidão fora do acampamento, e lá encontrei a tcheca ajoelhada, olhando a lua. Parecia felicíssima, em contemplação. Queria agora subir no escuro a enorme duna ao lado do acampamento, para enxergar a lua mais de perto. E me chamou. Como é que você recusa um convite desses? Lá já haviam outros do grupo. Acho que quase todos tiveram a mesma ideia. Do alto da duna se via a lua acima, e lá embaixo o acampamento com umas luzes de velas e o som de batuques. Os guias trataram de providenciar a música da noite.

No acampamento havia um casal de tunisianos e um senhor francês que haviam vindo com um outro grupo, e um violão. Também animaram bastante. Começaram com umas notas que eu depois reconheci ser Aicha, um dos clássicos do nosso célebre Khaled (que é argelino). A música fica linda em versão acústica, e ela cantada e tocada pelos tunisianos à luz da lua crescente num acampamento em pleno Deserto do Saara, creia-me, é magnífico. Se não a conhecerem, vejam abaixo.


Pra quem não conhece a canção, este é o clipe oficial. Aproveitem pra ver Khaled mais jovem e de argola na orelha.

Allah.

sábado, 21 de junho de 2014

Bonn, cidade de Beethoven e capital da antiga Alemanha Ocidental


Bonn. Foi onde passei boa parte deste mês de junho. Mal voltei a morar na Holanda e já tive duas semanas de compromissos na Alemanha. Um breve interlúdio, antes de eu terminar as postagens do Marrocos, para vocês conhecerem um pouco mais da cidade. Pra quem não sabe, Bonn foi onde nasceu Beethoven. Vou aproveitar também para dizer algumas coisas que gosto e que não gosto na Alemanha.

Ali acima é a estátua do dito cujo, acima referido, no centro histórico de Bonn. As cidades alemãs, como em quase toda a Europa, têm uma estação central de trens no coração da cidade e um centro com calçadões só para pedestres e bicicletas. Ali atrás, amarelo, é o prédio dos correios, e logo ali perto há a catedral. São os desenhos das cidades da Idade Média, feitas para pessoas e não para carros, e que hoje em dia voltam a ser modernos.

Nas fotos está nublado, mas rachava um sol de começo de tarde ao fim da primavera quando eu cheguei de trem. Aqui na Alemanha nunca é muito quente (para quem está acostumado ao Brasil), mas debaixo do sol com duas mochilas, o cabra sua. Por sorte, o trajeto entre a estação e o hotel era curto, ali mesmo no centro histórico. (Para quem não está familiarizado com as cidades europeias, aqui os centros históricos não são lugares isolados, a là Pelourinho, onde só vai turista; aqui eles são o centro mesmo, com lojas modernas, etc.).
Centro de Bonn.
Lojas modernas em meio à estrutura antiga da cidade.

O hotel estava diante de mim do outro lado da rua, e eu já ia atravessando quando vi dois policiais logo atrás de mim. Aqui na Alemanha, em tese, você toma multa se atravessar fora da faixa (imagina isso no Brasil). E como aqui as coisas "em tese" costumam ser na prática também, resolvi não arriscar a manobra na cara dos policiais, e fui até a esquina fazer a volta. Aqui os pedestres esperam o semáforo mesmo que não esteja vindo carro nenhum.

Deixei as mochilas no hotel e saí para comer e bordejar na única tarde que teria realmente livre nesta estadia. Quis ir à Casa de Beethoven, mas o estômago primeiro.

Na Alemanha eu adoro a comida até o meio-dia, e detesto depois. Eu explico: as padarias são excelentes, há dezenas de tipos de pães, quitutes, frutas, etc. Já o almoço e o jantar são frequentemente carne assada com batata, chucrute, aspargos fervidos, e outras coisas sem muito tempero. (Você se lembra de já ter visto em algum lugar do mundo "Restaurante Alemão"? Provavelmente não, e não é sem razão). As salsichas estão por toda parte, no prato ou naqueles cachorros-quentes sem molho, em que a salsicha vem seca e é maior do que o pão. Há uma centena de tipos de salsicha, desde de fígado, de sangue e até de cérebro. Sendo vegetariano, aqui definitivamente não é o meu paraíso culinário.
Moçoila animada comprando cachorro-quente no centro. (Aquelas coisas penduradas são pra você esguichar ketchup e mostarda).

Sendo assim, minha solução na Alemanha é quase sempre buscar algum restaurante asiático, seja chinês ou indiano. Achei um chinês com ambiente de boteco, onde se reúnem aqueles indivíduos com ares de criminosos, perto da estação. Era tipo um balcão de bar, com a turma lá atrás cortando legumes e cozinhando, aqueles chineses de avental branco igual em filme de artes marciais quando tem cena na cozinha. Baratérrimo. Pedi um curry de tofu com arroz e veio quase um hectare de horta no meu prato.
Coisa maravilhosa. Da perspectiva da foto não parece, mas o prato era enorme. (A fanta vinha de brinde).

Saindo dali, passei de um ambiente de boteco a algo mais clássico, na casa de Beethoven. Fizeram um pequeno museu na casa onde ele nasceu e cresceu, nos idos das décadas de 1770 e 1780. O piso de madeira continua a ranger e lhes garanto que nunca foi trocado. Não há lá muuuuito sobre as composições dele; são mais cartas da época, coisas da família, e notas várias sobre os distintos senhores da aristocracia alemã que decidiram fazer e financiar o museu. Recomendo meio sem recomendar. Por sorte, há um piano no térreo e quando eu ia saindo uma moça começou a tocar, e aí sim deu alma ao lugar.
Frente da casa onde nasceu Beethoven em 1770.
Detalhe da placa.
O interior da casa não podia ser fotografado, somente o jardim.
Beethoven ficou mas não nasceu surdo. Ele viveu até os vinte e poucos anos em Bonn, quando mudou-se para Viena (Áustria) para trabalhar como músico, compondo e fazendo apresentações. Aos 26 anos, já em Viena, começou a perder a audição. Curiosamente, foi depois daí que ele compôs suas mais famosas sinfonias. Compôs Fur Elise aos 40 anos, supostamente para a Baronesa Therese Malfatti, de quem gostava mas com quem não conseguiu se casar por não ser da nobreza. Porém, sua paixão ao que tudo indica foi a condessa húngara Josephine Brunsvik, sua aluna de música, com quem trocou cartas de amor por anos, mas com quem também não conseguiu se casar devido à hierarquia social. Começou a beber, também a evitar conversas devido à perda da audição, e morreu com cirrose hepática aos 56 anos, em Viena, em 1827 durante uma trovoada.

Abaixo é a Sonata da Luz da Lua, uma das minhas favoritas. Essa ele compôs quando já estava com a audição debilitada.


Bom, enquanto a sonata toca, talvez valha a pena mostrar a catedral, uma bela e enorme igreja no centro de Bonn, com um claustro em anexo.
Catedral de Bonn.
Interior da catedral.
Claustro, essa área com quatro corredores e um jardim no meio, típica de mosteiros. (Era a vida enclausurada, fechada ali, dos frades e freiras, daí o nome claustrofobia).

Bom, todo o resgate histórico me deu fome, e eu fui me garantir na parte da culinária alemã que eu gosto  como falei, os quitutes, pães e bolos. Não demorei a achar uma padaria ali no centro, operada por umas alemãs simpáticas. (Aqui na Alemanha fuja das senhoras; no atendimento as coroas são meio brucutus e as jovens são muito mais cordiais). Olhem que maravilha — não a moça, que não quis sair direito na foto, mas o belo bolo de framboesas frescas.  
Padaria na Alemanha. Uma diversidade imensa de tipos de pães, bolos e quitutes.
Meu bolo de framboesas.

Bom, e pra quem viu no título, Bonn foi também a capital (não oficialmente, mas na prática) da extinta Alemanha Ocidental. Após a Segunda Guerra e o início da guerra fria, a Alemanha foi dividida em duas: a República Democrática da Alemanha (a oriental, que pouco tinha de democrática) sob a esfera soviética comunista, e a República Federativa da Alemanha, sob a esfera do ocidente. Berlim seguiu sendo a capital de ambas, com o muro cortando-a ao meio. Mas na prática todos os escritórios de governo da Alemanha Ocidental vieram para Bonn, que é mais a oeste, e só retornaram a Berlim nos anos 90, depois da queda do muro e da reunião das duas alemanhas. Ainda hoje há muitos ministérios que estão lá e cá, e mais de um terço dos servidores públicos do governo federal alemão trabalham em Bonn, e não em Berlim.

Agora caso alguém esteja se perguntando o que afinal de contas eu vim fazer aqui por duas semanas, a resposta é: participar de um evento da Convenção da ONU para a Mudança Climática. O secretariado fica aqui em Bonn, e todo mês de junho as delegações dos países vêm aqui negociar. Atualmente estão tentando definir o novo acordo internacional de redução de emissões de gases do efeito estufa (que causam a mudança climática). Quem negocia são os governos, mas há muita gente de universidades e ONGs acompanhando, entre eles eu.  
Aí sou eu escarrapachado no bar do hotel onde ocorreu o evento. Depois de duas semanas de negociações eu já não aguentava mais ouvir falar de clima, carbono... Ainda bem que começou a copa, pra permitir uma higiene mental.

Terminados os afazeres em Bonn, voltei eu à Holanda, e voltemos nós ao Marrocos.

domingo, 1 de junho de 2014

Oásis e tapetes berberes: De Ouarzazate às margens do Saara

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Um oásis é algo muito mais impressionante visto ao vivo. Antes mesmo de chegarmos ao oceano de areia, o Saara já é bordeado por uma cortina de pedra, uma terra pedregosa e seca de muitos quilômetros entre as montanhas e o deserto. Daí, de repente, você vê uma mancha de verde, às vezes nada muito grande (por vezes não mais que 1km quadrado), mas com água e plantas, o suficiente para que algumas famílias ali habitem. No Marrocos, muitas dessas famílias são berberes, o nome dado aos povos nativos daqui (beduínos, tuaregues e outros), de antes da chegada dos árabes.

Após passarmos pela área de filmagens externas na região de Ouarzazate, passamos rapidamente pela cidade de Ouarzazate propriamente dita, uma cidade dominada por estúdios de gravação e hoteis chiques para os atores e equipes de produção. Há coisas pra turistas mas nada muito autêntico  é uma ilha urbana produzida para produzir produções cinematográficas.

A partir dali adentramos a cortina de pedra que nos separava do Saara. Apesar de seca, a paisagem é bonita. Quando o verde aparece fica mais bonita ainda. Há vales compridos com córregos, mata ciliar e pequenas lavouras que são o sustento de quem mora ali.
A produzida cidade de Ouarzazate, sob o céu de Allah.
Pequeno oásis fértil num mar de terra vermelha. 
Córrego em meio aos rochedos. Parece cenário de filme.
Posando nas terras áridas.

Paramos num hotelzinho de beira de estrada para pernoitar. Um friiiio maior do que você imagina. E sem aquecedor.

Saímos cedo no dia seguinte. O jantar havia sido farto, com sopa, legumes cozidos, carneiro e cuscuz de trigo. Já o café da manhã foi simples: pão chato na chapa com manteiga e chá ou café. Mustafá, o nosso motorista enfezado e corcunda, havia desaparecido e chegou já à hora de sair, acompanhado do seu inseparável cigarro e com os óculos escuros à cabeça.

Mustafá também era meio bipolar. Às vezes estava enfezadíssimo, com cara de que ia matar um. Dava cada esporro em quem se atrasava que você ficava constrangido pela pessoa. Certa vez perguntou a um pessoal que se demorou no banheiro se eles iam morar lá. (Como eu disse, os homens aqui são desaforados e não hesitam em comprar briga). Daí rapidamente já estão rindo de novo e se dando beijinho (aqui apesar de todo o machismo, é normal os homens se darem beijo no rosto, como fazemos entre homens e mulheres ou entre mulheres no Brasil).

Pro Mustafá bastava uma das belas espanholas do nosso grupo puxar conversa, e ele se amaciava todo. Botava música na van nas alturas, e às vezes até batia palma e pedia pro pessoal acompanhar. Dava um frio na barriga cada vez que ele tirava as mãos do volante naquelas estradas curvas. Depois descobrimos que, nas paradas técnicas, ele tomava uma marvada e por isso também que voltava animado. É proibido pelo islã, mas há quem beba às escondidas. Eles aqui vêm com uma conversa de "uísque berbere", que é o apelido que dão ao chá de menta que eles bebem e oferecem por toda parte, mas há quem meta mesmo um álcool dentro. Aah, Mustafá.

Estes são uns vídeos bem curtos feitos do interior da van, mas que já dão o feeling.





Nossa parada matinal seria um oásis berbere onde vendiam tapetes. Entra em cena o nosso guia local, esse sujeito de ar ladino cujo nome eu não lembro.


Era um vale verde repleto de árvores, campos de plantio, e córregos para irrigação. O ventinho batia à sombra daquelas plantas, e pássaros cantavam. Era uma ilha de vida no meio daquela aridez inóspita. Parecia um paraíso perdido.

Ao chegarmos, o guia logo nos pediu que não tirássemos fotos das mulheres. O pessoal aqui é meio sismado com foto, e pelo visto já houve quem as tirasse pra pôr em capa de revista etc. Segundo o guia, dois casamentos naquele vilarejo haviam acabado por causa de foto. O que posso lhes dizer é que as mulheres aqui, fisicamente, são muito poucos diferentes das de qualquer zona rural brasileira, só que com uma roupagem meio diferente e lenços pretos na cabeça. Mas são sorridentes e têm aquele ar de senhoras humildes, que também se encontra no interior do Brasil.
As escarpas secas e o vale verde.
Vista desde o meio do oásis. Você se sente num refúgio de vida.
Mulher berbere em meio aos campos.

Não demorou e adentramos as casas de adobe onde vivem, e onde queriam nos mostrar tapetes. O interior era simplérrimo, sem móveis, e com lâmpadas incandescentes penduradas no teto para iluminar. A simplicidade do lugar contrastava com a riqueza de detalhes da arte dos tapetes. As artes berberes têm motivos mais geométricos que as árabes, com formas que lembram runas nórdicas. A origem remonta aos antigos fenícios.

No interior, nos recebeu um homem que falava inglês. Ele era possivelmente o único. As mulheres muitas vezes sequer sabem árabe, já que os berberes falam suas próprias línguas (completamente diferentes do árabe). O tio parecia uma versão berbere (e mais bigoduda) de Eddie Murphy, e suava como se tivesse tomado banho. Nos assentou nuns banquinhos preparados da sua showroom, e um rapaz moreno de pouco cabelo e turbante azul ia trazendo as peças. Sentadas quietas, duas mulheres teavam algodão numa máquina rústica para mostrar como se fazia.
Sala onde nos mostraram os tapetes. Havia fios de lã e de algodão, alguns já tingidos ali acima do tear.
O sósia de Eddie Murphy nos explicava sobre os tapetes...
... enquanto seu assistente nos servia chá de menta, apelidado de "uísque berbere" (mas este não estava batizado).
Mulher berbere trabalha o chumaço de algodão, transformando-o em fios grossos que serão usados para fazer os tapetes.

Eis o show. Percebam os motivos geométricos de que falei, e como é diferente dos motivos florísticos das artes árabes.
Esse vermelho ali em cima eu comprei, junto com o amarelo e preto mais à esquerda.

Você deve estar se perguntando sobre os preços. Ao contrário da Turquia, onde os tapetes que encontrei eram absurdamente caros (ex. 5 mil reais), aqui já se podia pensar no caso. Aqueles grandes da maioria das fotos tinham preço inicial de seus 1500 reais, mas é sempre fundamental barganhar. No Marrocos ninguém nunca lhe dará inicialmente o preço pelo qual vai vender. Sempre começam com o preço lá em cima, e veem até aonde você consegue baixar. Daí vai a sua habilidade como negociante. Aqueles dois juntos me saíram coisa de 300 e poucos reais.

Para atrair o turista europeu que sabe (e não gosta) do machismo das sociedades árabes, os marroquinos frequentemente organizam estas produções de artesanato em cooperativas de mulheres. Pra inglês ver, o vendedor disse que eu deveria pagar à mulher que tinha ficado ali quieta todo o tempo, e não a ele. O que fazem no fim das contas, eu não sei; eu sei que o sorriso de alegria na face da senhora quando estava pra receber os euros foi genuíno e radiante, e me bastou.

Munido de meus tapetes, retornei ao grupo. Dali saimos ao final da manhã. Ainda passamos por uns rochedos enormes que faziam-nos sentir minúsculos, e onde viviam umas cabras. A seguir, paramos para almoçar à beira do nada, já onde as pedras começavam a finalmente dar lugar à areia. Estava chegando o majestoso Saara.
Rochedos por onde passamos.
Com as cabras no córrego.
A paisagem. Você tenta não imaginar como seria se o pneu furasse ali.


Onde paramos para o almoço.
Na pausa para o almoço, e pronto para a expedição no deserto.
Que venha a areia.