sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Bled e a Eslovênia medieval


Bled é uma pitoresca cidadezinha da Eslovênia, com um castelo, um lago, e uma igrejinha numa ilhota do lago. É um dos mais populares destinos do país, e a apenas uma viagem curta (1h) da capital Ljubljana. Aqui visitei alguns cenários medievais bem idílicos, senti-me na Terra Média ou em Westeros, e de quebra ainda descobri a sabrage  a técnica de abrir champagne com um sabre  com um monge.

Ainda era começo de janeiro, portanto inverno na Europa. Tudo quieto, como transparece na foto acima. Pouco havia passado desde o réveillon, e Ljubljana continuava pacata. Na mesma rodoviária chinfrim onde eu havia tomado ônibus às Cavernas de Postojna no dia anterior (aqui), tomei hoje para Bled. O ônibus estava todo lacrado para evitar o frio invernal, com calefação no interior e aquele cheiro de estofado que já não vê o ar há algum tempo. Poucas pessoas iam comigo, umas 8, todos aparentemente eslovenos, quietos em seus cantos, e o único som era o rádio controlado pelo motorista. Continuava a aparente tradição retrô oitentista dos eslovenos que eu já havia experimentado na noite de réveillon (aqui).


Um dos hits do motorista.

Senti-me vetusto e remoto, não somente na geografia daquele lugar quieto, mas também no tempo, com aquela rádio saudosista.

Quando chegamos, a cidadezinha não estava mais viva que Ljubljana  nem menos cinzenta. Nos arredores da estação havia sinais de contemporaneidade: carros estacionados, asfalto, e sex shop. Mas conforme se caminhava adentro, esses elementos iam dando lugar a casas campestres mais simples e a mais árvores secas. Até uma trilha por onde se ia ao Castelo de Bled. Dava a impressão de que você estava entrando no quintal de alguém, não fosse a placa indicando Grad, castelo em esloveno.
Ruas da cidadezinha de Bled, no interior da Eslovênia, e a entrada da trilha para o castelo, ali à esquerda.
O Castelo de Bled é o típico castelo no penhasco sobre a cidadezinha e o lago. Tem fosso, ponte de madeira, pátios e capela. As referências escritas a ele datam desde 1011, mas algumas partes são mais antigas, e quase todas foram sendo renovadas ao longo dos séculos. Pertenceu ao domínio dos Habsburgo da Áustria desde 1278 até o fim do império, em 1918.
Vista do Castelo de Bled da margem do lago.

A trilha até o castelo vem por detrás, cortando uma floresta com um caminho de pedras. Era ainda de manhã e não havia mais ninguém. As brumas e o nublado davam um ar de atemporalidade: era como se o tempo não passasse, como se eu não soubesse o momento do dia em que estava, e isso não importasse. Você fica entregue aos sons da natureza e ao vento, sentindo-se ali como se estivesse em alguma obra de fantasia, ou retornado aos tempos medievais da Eslovênia, enquanto olha as árvores secas balançarem ao seu redor.
Trilha para o Castelo de Bled na quieta floresta.

Uma vez lá em cima, o cenário muda. Passam a haver caminhos de pedra feitos pelo homem como calçadas entrecortando as árvores. Um cachorro preto corria pra lá e pra cá. A vista lá do alto fica linda. Você enxerga toda a imensidão dos campos eslovenos, até onde as nuvens permitem a vista alcançar, o belo Lago Bled, e as montanhas dos Alpes ao norte. Mas pra ter as melhores visões é preciso terminar de subir e entrar no castelo.

A entrada é uma facada  talvez para te fazer sentir de volta à era medieval , mas vale a pena pelos mirantes. O castelo em si não oferece muito além de si mesmo: há um pequeno museu de peças antigas mostrando um pouco da vestimenta camponesa de antigamente, um café, um restaurante... mas há a adega do Monge André, que ensina a fazer sabrage a um preço.

Subi. Entrei. Subi novamente. Atravessei a ponte de madeira e fui subindo o caminho curvo e íngreme que dava voltas nas muralhas até chegar aos pátios do castelo, de onde há vistas soberbas para o lago.
Entrada para o Castelo de Bled.
Pátios do castelo, hoje servindo como terraços para café.
A vista para o Lago Bled, do alto do castelo. 





Vista apreciada, fotos tiradas, sentei-me em busca de um cappuccino. Mas me deixaram esperando demais, e eu resolvi ir conferir a adega do Monge André. Eu havia lido sobre ele, e quando alcancei a adega  ali mesmo dentro do castelo  havia um casal tomando a aula de sabrage. Ao contrário do que você provavelmente pensa, abrir o champagne com o sabre não significa cortar o pescoço da garrafa num golpe. A abertura é feita com o lado cego da lâmina, numa pancada de baixo pra cima que arrebenta inteiro o pescoço. (Não, eu não quis pagar 50 reais para aprender a fazer isso. Nem sabre eu tenho em casa, e não acho que funcione com o facão. Mas cheguei a ver).

A prática surgiu, conta a lenda, durante as campanhas napoleônicas. O sabre era a espada leve típica da época das cavalarias, e  segundo dizem  a arma favorita de Napoleão. Virou hábito, assim, que seus soldados os usassem pra abrir o champanhe nas celebrações. Napoleão dizia que o champanhe é sempre necessário após a batalha: seja para celebrar, seja para afogar as mágoas de uma derrota.
O monge André acompanha o enchimento de uma garrafa com vinho do barril.

Encerradas essas distrações no alto do castelo, desci para ver o lago mais de perto. Da margem se pode tomar um barco caro (12 euros ida e volta) ou remar até a ilhota, onde há uma igreja, uma cafeteria, e a sensação de se estar numa ilha no lago. Esta última era a mais preciosa.

A descida ziguezagueia na floresta numa bela escadaria de madeira. Muita gente subia e me perguntava se faltava muito para terminar. Um casal passava por mim já boiando enquanto seu cachorro subia animado.

A visão continuava pitoresca, e lá embaixo havia uma paz imensa em estar sozinho diante de um lago tão belo. Todo o movimento era o dançar das árvores ao vento e o dos patos cortando a água. Se você ainda não teve essa experiência de quietude invernal na natureza, busque-a. É das experiências mais íntimas que a Terra oferece.
À beira do lago, após a descida do castelo.

Mas breve o meu silêncio seria cortado por algo mais humano. Eu ia caminhando à margem do lago quando de repente ouvi notas de Sultans of Swing. Vinham de um abrigo de madeira ao longe. Me aproximei.



Três moças iam se aproximando do abrigo de madeira ao mesmo tempo que eu. Era um abrigo de canoas, com um rádio tocando. Eu não tinha pretensão alguma de remar sozinho naquela água gelada. Já tive experiência de virar canoa uma vez e meia (depois eu explico), e não foi legal (quer dizer, foi legal depois, pois viraram histórias, mas na hora é um inconveniente). As três italianas, no entanto, pareciam dispostas. Mas não estavam muito corajosas. Me diziam que nunca haviam canoado e perguntavam se era fácil, etc. Eu disse que poderia ser legal, mas mostrei que estava ventando no lago e que, se não sentassem direito na canoa, podiam virar. Houve aquela cara de incerteza quando apareceu o alugador de canoas. "Nããão, é bem tranquilo! Não há problema nenhum", chegou ele com aquela conversa de quem quer ganhar dinheiro. 

"Espero que vocês sejam boas sultanas do swing", me despedi. Resolvi seguir meu caminho antes de criar confusão com o cara. Mais adiante (o lago é grande!) achei um lugar onde comer e outro onde tomar um barco para a ilhota. A comida foi algo tão ordinário que eu sequer lembro o que foi. Apesar da natureza pitoresca, Bled está começando a ficar mais turístico e a vender essas coisas que se acham em qualquer lugar, como sanduíche ou pizza. Tomei então um barco pra 12 pessoas acompanhado de uma família australiana em que o pai era irmão gêmeo de Chuck Norris, só que mais velho. 

Quando nosso barco chegou à ilha, qual foi a minha surpresa ao rever as italianas, ofegantes e salpicadas. Pelo menos ninguém virou. Se divertiram. (Eu também, estando bem sequinho). Os australianos se dispersaram. Há barcos retornando com frequência, então o risco de ficar preso na ilha é pequeno. Há uma igrejinha e uma bela cafeteria com loja de souvenirs. A cafeteria com vistas para o lago é o paraíso para qualquer escritor.
Cafeteria na ilhota do Lago Bled.
Tomei um chocolate quente, comi uma fatia de bolo, e me pus a caminhar no arredor. Quase fico.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Era uma vez em Madagascar (Parte 3): Mercadão, natureza, e mais curiosidades da cultura malgaxe


"Por que é que o Brasil perdeu daquele jeito?", me perguntou Mina do banco de trás do táxi. Por que? Ensaiei alguns comentários sobre tática, inexperiência, pressão e apagão, mas ela não parecia muito interessada na minha resposta. "Aqui estava todo mundo torcendo pelo Brasil. Aqui em Madagascar o povo é Brasil ou Argentina, mas quase todo mundo é Brasil".  "E as seleções da Europa?", perguntei eu. "Blargh!", respondeu ela fazendo careta, que eu pude ver olhando pra trás. Passados alguns segundos de silêncio, ela continuou: "Meu tio morreu por causa daquele jogo". Perguntei se ela estava zoando. "Não, é verdade. Ele teve um AVC", disse ela, embora sem perder a descontração. Glup.

Entramos num táxi moderno, provavelmente dos anos 1950, eu e Mina, uma tia malgaxe muito simpática e que resolveu me mostrar um pouco de Antananarivo.
O nosso veículo. Um Renault, como vocês podem ver, certamente da época em que Madagascar ainda era colônia da França.

Não havia vidro na minha janela, e a minha porta só abria por fora. Ótimo para um passeio numa cidade como Antananarivo, cheia de pedintes e com a mesma ladinagem das cidades brasileiras . Eu, bobo, ainda fui puxar o cinto de segurança, como que por automatismo. Vi que ele estava todo torcido, dado um nó em si mesmo, e nem chegava ao lugar do clique. Foi o carro mais velho e malacabado em que já andei na minha vida. O motorista levava numa boa, e Mina ia no banco de trás.

Paramos no mercado. O mercado do centro de Antananarivo é como a feirinha de qualquer periferia no Brasil, só que mais precário. Uma curiosidade é que as ruas são mais limpas; fiquei impressionado. Quase não se veem estrangeiros não-africanos na rua, o que, a menos que você seja negro, faz chamar a atenção. Antananarivo não é mais perigosa que as cidades brasileiras, mas se destacar assim dá uma sensação de vulnerabilidade. Logo os pedintes marcam a mira em você, como fazem aqueles mísseis perseguidores, e não lhe dão muita trégua. É um nível de desespero que, se de um lado incomoda, do outro parte o coração. Nas calçadas, DVDs piratas, livros, e todo tipo de balangandãs se misturam às frutas, verduras e carnes, ali mesmo, às vezes em cestinhas, palhas ou plásticos no chão.

O que eu queria eram alguns artesanatos. Quando saltamos do carro, Mina me navegou, e eu ia seguindo atrás a passos rápidos, despistando pedintes e vendedores. Não é taaanta pressão assim, mas se você parar, eles vêm. A parte que me interessava era mais pra dentro por entre barracas cobertas de lona e separadas por bequinhos de chão de terra e tábuas velhas. Lugar mocado, como diriam meus amigos paranaenses, bem enfiado lá pra dentro. Um quadro original de artistas locais custava o equivalente a 10 reais. Achei-os mais bonitos do que muita coisa que já vi em museu na Europa e que certamente custava milhares ou milhões. Depois dizem que as pessoas são pobres por falta de talento ou de esforço próprios...
Ruas do centro de Antananarivo. Carros, carroças, barracas, gente, motos e a muvuca toda.
Tela com baobás, árvores símbolo da África. 
Mercado de artesanatos. Fui emboscado diversas vezes aí por vendedores. Tinham caras de quem estava desesperado precisando vender  e certamente estavam mesmo.  
Esta pintura tem a chamada Árvore do Viajante, esta palmeira símbolo de Madagascar. Gostei!

Em seguida, fomos ao jardim zoológico. Na falta de tempo para ir às reservas de verdade (embora nelas seja difícil ver os animais, que se escondem), o jeito foi vir aqui. Serviu. Vi de verdade as árvores das pinturas acima, os icônicos lêmures, que só existem em Madagascar, e de quebra ainda aprendi sobre as festas dos mortos feitas pelos malgaxes. Aí vem coisa.

Fazia o calor de duas para três da tarde como no Brasil. O zoológico de Antananarivo está sucateado, com infraestrutura sofrível, mas ele quebra o galho. As partes naturais continuam bonitas. Passeando você vê muitos grupos escolares de crianças, vendedores de balas, pipoca e algodão doce, como nas áreas mais simples do Brasil, só que aqui em Madagascar ainda mais humildes.
Com Mina num alagado com Orelhas de Elefante, essas plantas que recebem o nome pelo formato das folhas --- não são bananeiras.
Banquinhas bem simples de pipoca e algodão doce, com as crianças dos vendedores por ali.
Junto a uma Árvore do Viajante, endêmica de Madagascar. Eu não podia passar sem esta foto.
Com um baobá, símbolo da África. Esse, no entanto, ainda era pequeno  me disseram ter entre 30 e 40 anos. Eles podem viver mais de 1000 anos, adquirir um tronco de 7 a até 11m de diâmetro, e guardam água no seu interior. Alguns indivíduos chegam a guardar mais de 100 mil litros. Mandar plantar uns em São Paulo pra substituir o Sistema Cantareira...
Tartaruga gigante, pra você que nunca viu uma. (Eu mesmo nunca tinha visto e fiquei pasmo). Essas ficam só no ambiente terrestre. E, falando em longevidade, as quatro dessas que há aqui foram dadas pela inglesa Rainha Vitória no século XIX. E continuam aí, bastante ativas.  Esqueça essa ideia de que elas são devagar. Não se sabe com exatidão quanto tempo elas vivem. 
O lêmur, ícone da biodiversidade de Madagascar. Só ocorre aqui. São primatas. Parece um mico, mas não é.
Por fim, um pavão importado. Fotografei quando vi que ele abriu. Não são de Madagascar; são das Américas. Se você ainda não é fascinado pela natureza, imagine que um reles ovo vira isso, e contemple a simplicidade das invenções humanas quando comparadas à majestade e complexidade da natureza. Ainda estamos muito longe de nos compararmos.

Agora deixem-me passar de pato a ganso. Ou melhor, de pavão aos mortos. No zoológico há também tumbas nos diferentes estilos das várias regiões de Madagascar. Não é tudo a mesma coisa. Igual em todas é só que os familiares são enterrados juntos, em tumbas de família, e sem caixão. Ninguém é enterrado com caixão, mas com roupas. Também não é embalsamento, pois não há ervas e nem qualquer forma de preservação. O morto é só enrolado nas roupas mesmo, como mortalhas.

A cada 7 anos, os familiares então desenterram o morto. Removem os ossos, e os trazem para uma festa em casa. Na visão malgaxe, como em muitas outras, as almas continuam vivas e velando pela família. Fazem, portanto, esse reencontro a cada sete anos. Se a família for rica, pode fazer com maior frequência.

Se você achou isso aí impressionante, agora escute essa: no sul de Madagascar, a tradição local é ninguém herdar nada. Quando você morre, seus pertences são todos jogados na tumba junto com você. Incendeiam a sua casa, e se você tinha gado (o que é comum lá), matam todos os animais e jogam as carcaças sobre o seu túmulo. Seus filhos precisar começar do zero. Um dos rituais de passagem do homem adolescente à idade adulta é, assim, roubar um boi zebu da manada de alguém, pra começar a constituir seu próprio patrimônio. Olha que beleza. Segundo me contaram, isso acaba gerando um problema sério de crianças abandonadas naquela região lá.
Estilo das tumbas do leste de Madagascar. Colocam um tronco de madeira por cima, pra evitar que animais comam o cadáver, e 7 anos depois vêm retirá-lo para a celebração.
Tumba de pedra ao estilo do sul do país, com (literalmente) as cabeças de gado zebu que pertenciam ao morto.

Era o meu último dia em Madagascar, e voltamos ao hotel. Eu pensei em comprar mais alguns souvenirs, e passei numa lojinha de cosméticos ali perto, onde fui atendido por uma francesa. Madagascar tem muito desses sabonetes artesanais com ervas medicinais, óleos essenciais, essas coisas. O ylang-ylang, pra quem conhece, é bem comum aqui, embora seja nativo das Filipinas. Só que, como visam os visitantes estrangeiros, tudo custa o olho da cara. A francesa, polida, ia me explicando as propriedades dos óleos até mais do que eu queria ouvir, quando começa a tocar no rádio: "Eu quero tchuuu, eu quero tcha, e quero tchu tcha tcha...". Eu ri; ela me olhou; e eu expliquei porque estava rindo. "C'est une belle chanson", me disse ela interrompendo-se, com o ar etéreo de um comercial da L'Oréal. Eu tive que me segurar para não rir mais.

Não peguei muito, devido ao preço, e não demorei a seguir para o aeroporto  o mais zoneado onde jamais estive. A fila para fazer o check-in saía do aeroporto, pra você ter uma ideia. Aconselho chegar com bastante antecedência, embora não haja quase nada para fazer lá. Meu voo era às 01:40 da manhã, mas às 10 da noite eu já estava em filas quilométricas. Me pareceu haver um business de pessoas vendendo lugar na fila, igual em repartições públicas pra renovar documentação no Brasil  mas não comprei. Duas horas depois e suado, cheguei ao portão de embarque. A Air France ainda checaria todo mundo quatro vezes entre o portão de embarque e a aeronave, se por medo de terrorismo, do ebola ou de quê, eu não sei. 
A muvuca do aeroporto de Antananarivo.
Entre bagunça, simplicidade, simpatia e belezas, saio com um olhar positivo sobre Madagascar. As pessoas são muito gentis, animadas, e com presença de espírito. As dificuldades práticas são as mesmas que você encontra em outros países em desenvolvimento. Se quer conhecer da cultura e da natureza daqui, é preciso enfrentá-las. "Não aguenta, bebe leite", dizia um amigo meu. Mas, verdade seja dita, não é nada tão impossível assim. É como o Brasil, só que numa língua e contexto social diferentes. Acho fundamental visitar esses países pra que se veja que o mundo não consiste em Brasil + lá fora, um "lá fora" que imagina só Estados Unidos e Europa. O aqui fora é enorme, e tem muitas cores. Madagascar tem algumas das mais curiosas delas.

Já fico de olho para a minha próxima vinda à África. 


sábado, 18 de outubro de 2014

Era uma vez em Madagascar (Parte 2): Música e comida malgaxe em jantar com o presidente

Suazilândia, Madagascar, Senegal.

Meu dia começou com a cerimônia mensal de hasteamento da bandeira de Madagascar no Ministério da Agricultura. Deram-nos todos  eu e uns 40 africanos  chapéus de palha, e ficamos ali como agricultores ouvindo o microfone do ministro falhar. Sujeito simpático, o ministro. Fala espanhol, inclusive. Mas na ocasião ele optou pela língua nacional, o malagássy. Seu tradutor era uma figura sui generis: um malgaxe moreno escuro de seus quase 40 anos, cabelo liso curtinho, lábios finos, nariz de batata, com a cara feia de algum gnomo saído do Senhor dos Anéis, sempre com expressão de ofendido (daqueles a quem você dá bom dia e ele pensa se responde ou não), trajado com um terno branco de mafioso italiano. Seu microfone também falhava, contrastando com o palavreado bonito e os "do fundo do seu coração" que ele repetia.

Esse tradutor ainda reapareceria, à noite, como mestre de cerimônia do nosso fatídico jantar com o presidente.  
Olhem a pose de xerife.
Do ministério saímos para o Palácio da Rainha Ranavalona II, relatado no post anterior (aqui). Após ouvir a história da tradição malgaxe de circuncisar os meninos e comer a pele removida do pênis com banana, fomos ao almoço. Não digo que conheci tudo, mas durante esta breve estadia vi e provei uma série de coisas. 

Vejam, por exemplo, a mafé de zebu, um guisado de carne de boi zebu. (Parece nome de carta preta de Magic, ou de algum despacho). Esse boi é muito comum aqui. Há também o saka-saka, feito com folha de mandioca cozida, igual a uma maniçoba (quem é nordestino ou do norte do Brasil deve conhecer). Só que essa aqui era com peixe.

Encontrei também cocada cor-de-rosa. Perguntei se era misturado com goiaba. "O que é que dá essa cor rosa?", perguntei a um dos garçons. "Corante", me respondeu ele com a maior naturalidade. Inocente, eu. Vejam abaixo esses e outros.
A cocada cor-de-rosa. Muito açúcar. Na Bahia a gente faz melhor.
Mafé de Zebu, com o nome ali pra ninguém achar que eu inventei.
Saka-Saka (maniçoba) de peixe.
O "Dovi do Zimbábue", uma receita africana de frango com pasta de amendoim.
E algo mais familiar na sobremesa, um bolo fino com banana frita em cima. Nham!

Um dos alimentos símbolo de Madagascar  e das coisas que mais vão tentar te vender aqui  é baunilha. Embora ela seja nativa do México (cultivada há séculos pelos indígenas de lá), a baunilha de Madagascar é considerada a melhor do mundo. Vendem as vagens secas, umas tirinhas pretas. (Na verdade, baunilha vem do espanhol vainilla, que vem do latim vagina, que significa vagem. Eita.).

Não comprei nenhuma vagina de baunilha em Madagascar, mas tomei o sorvete. Como costuma ocorrer nos países em desenvolvimento, o melhor é normalmente exportado. O melhor sorvete de baunilha que já tomei foi numa sorveteria italiana  que dizia explicitamente usar baunilha de Madagascar. Já aqui em Madagascar ele não foi mau; foi melhor que sorvete de supermercado; mas não foi nada revolucionário. Talvez em algum outro lugar. Boa mesmo foi a quantidade.
Nem entrava no copo. O outro sabor era manga, bonzinho também.
Por influência francesa, havia disponível também sorvete de tomate. Perdoem-me, mas nem a minha curiosidade etnográfica e meu amor por vocês foi capaz de me fazer pedir isso. Quem quiser experimentar, é só vir aqui. Eu digo com segurança que se trata de influência francesa. Na França é muito comum encontrar suco de tomate. (Ainda me lembro que, numa festa minha com gente de várias nacionalidades, uma amiga francesa trouxe suco de tomate com ostra, e ela foi a única que bebeu  era também a única francesa na festa). 

Outra influência francesa notável é o foie gras, servido ad nauseam nas refeições onde querem fazer a coisa parecer chique. (Pra quem não conhece, esse é o patê francês de fígado de ganso, uma das comidas mais cruéis que existem. Ele requer a alimentação forçada [com tubos goela abaixo] de gansos com uma dieta rica em gordura para engordar o fígado e deixá-lo enorme e "cremoso"  basicamente uma hepatite brutal. Para depois gente se achar chique passando aquilo no pão. O foie gras é proibido na Califórnia, Índia, Turquia, Itália, Alemanha, Reino Unido, e nos países nórdicos europeus. Ficou proibido a partir de 2014 na Cidade de São Paulo, e há projeto de lei visando proibi-lo no estado do Paraná). 

Contrastando com a pretensa "chiqueza" da elite, desejosa de parecer-se com os antigos colonizadores, está a pobreza obscena da maioria da população. Isso é típico na África. O caminho que tomamos até o jantar com o presidente passou por lugares dos mais pobres que eu já vi na vida. Se a capital, Antananarivo, se parece com a periferia das metrópoles brasileiras, a periferia de Antananarivo se parece com o que há de mais pobre no Brasil  ou pior.
Lixo, galinhas e pessoas nos trilhos. Parecem zumbis em em algum cenário pós-apocalíptico como em The Walking Dead. Mas estes estão bem vivos.
Beira de estrada.

Sendo justo com Madagascar, o país me pareceu menos desigual que a média africana. Pareceu-me haver uma classe média pequena, mas pouquíssima gente rica. Os donos das coisas aqui são quase sempre estrangeiros. Até o presidente me pareceu um sujeito sem muita pompa. A residência oficial onde jantamos tinha piscina e salão de festas, mas nada além do que há em milhares de casas de classe alta no Brasil  relativamente pouco se você pensar que é o presidente.   

Eram umas 6 da tarde quando chegamos ao local. Um grande salão cortado por um tapete vermelho nos acomodou, umas 150 pessoas. No tapete vermelho, só o presidente pisaria. Era engraçado os mais volumosos pulando o tapete. De um lado do salão, os malgaxes, com garrafas de vinho à mesa. Do outro, nós estrangeiros, com água e fanta. Bateu 8h e nada havia ainda sido servido  estômagos em polvorosa, e as pessoas bebendo fanta quente para ver se ajudava.

Ao chegar o presidente (atrasado), deram início à cerimônia. Era um jantar solene, com muitos prêmios a apresentar e gente demais pra falar enquanto perecíamos de inanição. Ao microfone, o tradutor do terno branco empolgava-se como se estivesse apresentando o show de calouros. Você querendo comida, e ele animado: "Agora vamos assistir às danças de cada uma das 22 províncias de Madagascar!!", e você leva a mão à testa. Ele gradualmente adquiria um tom de animador de auditório. Gritava. E falava perto demais do microfone. Nem parecia mais o sujeito de ar ofendido da solenidade da manhã. (Acho que houve algum catalisador alcoólico atuando).

Quando a comida chegou, foi uma avalanche. Meus disciplinados amigos italianos teriam tido um treco: veio vinho, junto com uísque no meio da refeição, cuscuz, peixe, foie gras, bife, queijo, camarão cru e o **ralho a quatro.

O tradutor seguia cada vez mais animado, agora gritando para que as pessoas fizessem a "dança do crocodilo". A música ia mudando, e uma amiga de Lesoto próxima a mim começou a fazer aquela dança de quem está recebendo o santo, chacoalhando o corpo no ritmo. Vocês certamente imaginam que eu fui lá e dancei todos os ritmos da Bahia.

Trouxeram-nos então pão, e alguém perguntou quando é que viria a sobremesa. "Sobremesa? Depois do prato principal", respondeu um garçom para uma outra amiga minha estupefata com aquela cara de "What?!". Depois de quase nos matarem de fome, agora queriam nos empanturrar. 

Só que, depois de um dia longo, as pessoas estavam cansadas, e às 10 da noite e com trabalhos na manhã seguinte, a maior parte das pessoas não pensava em noitar. Veio uma tigela imensa de arroz à nossa mesa, e começava o burburinho sobre como voltar ao hotel.

"Nããão! Não vão embora!!!", gritava o tradutor ao microfone. "Está só começando!!!". Não vi a cor da sobremesa. Quando vi chegar uma vasilha enorme de mafé de zebu à mesa, saí pela culatra.  A música ainda tocava, mas o salão ia se esvaziando e eu só ouvia o tradutor berrar lá dentro. No outro dia, voltou ao ar ofendido de sempre. Se o ofendemos ou não, não sei, mas o jantar foi uma pândega.  

A estadia em Madagascar ainda continuaria, e termina com o próximo post, final. Deixo vocês por ora com as fotos e vídeos do jantar. 
O intocável tapete vermelho presidencial cortando o salão.
No evento com meu amigo Mao. (Não, como você pode ver, ele não é chinês).
Após a passagem do presidente, alguns começaram a pisar no tapete. Aqui com umas amigas suázis (em vermelho) e uma de Lesoto.
A música, tocada naquele instrumento comprido rodeado de cordas, soa como uma harpa.

Uma das danças folclóricas de Madagascar, lembrando uma quadrilha do Nordeste.


Continua com a parte final de Madagascar, a seguir.

domingo, 12 de outubro de 2014

Era uma vez em Madagascar: Antananarivo e região

Antananarivo, a capital de Madagascar.

Madagascar, eis a ilha de verdade, que muitos conhecem apenas pelos filmes de animação. Há quem a chame de "o oitavo continente", já que 90% da fauna e flora desta ilha (do tamanho de Minas Gerais) é endêmica e, portanto, só existe aqui. Já outros são mais poéticos, e chamam Madagascar de a "ilha do amor", como na música do Olodum  que sempre ensinou mais História e cultura da África ao Brasil do que o nosso ensino escolar eurocêntrico (relembre aqui). 

A natureza pode muito bem ser fruto do amor de Deus, mas a miséria social é obra clara da falta de amor dos homens. Madagascar é pobre, pobre, pobre de marré-de-ci, sugada até hoje pelos franceses, de quem foram colônia até 1960. Para se ter uma ideia, metade de toda a população sofre desnutrição, e só 10% tem acesso a eletricidade. Ainda assim, são das pessoas mais simpáticas que já encontrei mundo afora. Os campeões em simpatia na África até agora, ao meu ver. Na verdade, eles gostam de dizer: "Aqui  entre nós, Madagascar não é África"

Você talvez não saiba, mas os malgaxes (o povo de Madagascar) não são negros, não falam nenhuma língua africana, e culturalmente são muito diferentes do continente ao qual as placas tectônicas e a geografia política os agregaram. Nesta viagem eu descobri um pouquinho dessas diferenças  e algumas das histórias mais embasbacantes que já ouvi. Quem estiver afoito pode abaixar a barra de rolagem, mas quem quiser a história inteira, tem primeiro o prólogo de como eu cheguei até aqui, pois eu quase não chego.


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PRÓLOGO

No aeroporto de Amsterdã, eu me preparava para tomar meu voo noturno até a África. Chegaria a Nairóbi, no Quênia, para conexão pela manhã, e de lá outro avião a Madagascar. Só que não; a cia aérea (Kenya Airways, que foi pra a minha lista suja) fez overbooking e a funcionária, em ar todo apologético, veio-me dizer que não havia assento pra mim, que eu aguardasse até a última hora pra ver se achariam um, ou não. Atravessei controle de passaporte, segurança, tudo, e fui até o portão de embarque, onde esperaria até saber. Deixei o meu cartão de embarque com a mulher e assentei-me. Foi quando conheci Chris, o carteiro inglês.

Não, não imagine um gentleman. Chris tinha meia-idade e cabelo grisalho, mas fazia mais o tipo inglês peão medieval, daqueles que aparecem arrumando encrenca em taverna de Game of Thrones, Senhor dos Aneis ou produções parecidas. Chris já não tinha metade dos dentes, e o restante estava meio estragado. Você facilmente o imaginaria acompanhado de uma caneca de bebida. Falava aquele inglês britânico da roça (como visto nessas séries), cheio de gírias e com uns palavrões aqui e ali. Ele estava sentado ao meu lado e me abordou de repente com um pacotinho de pastilhas, como quem anuncia um assalto e aponta uma arma  à là as aberturas de filme de James Bond. Quando recusei, ele fez uma breve cara de ofendido. A próxima investida dele seria irrecusável. 

"Eu sou Chris, by the way", me disse ele virando-se novamente e estendendo a mão de repente. Gosto desses sujeitos, embora não gostasse que ele  como característico do arquétipo de taverneiro   falasse cuspindo. E como falava. 

 "I love that bitch", me dizia ele com visível candura sobre a sua noiva, apesar do linguajar. Iria se casar domingo. Contou-me que havia estado na África pela última vez nos anos 90, e agora embarcaria a Nairóbi para encontrar a noiva. Segundo ele, ela era mais jovem, tinha duas filhas, e ele iria lá para "facilitar as coisas" na embaixada do Reino Unido. "Ela não se importa com os meus dentes ou a minha idade, sabe? Quero dizer, ela quer que eu conserte os dentes, mas gosta de mim mesmo assim. Ela não está interessada no que eu tenho." Sei, sei. "Tô doido pra chegar lá. Nairóbi vai tremer!", dizia ele batendo e esfregando as mãos enquanto ria alto. 

"E você?", virou ele de repente. Todos os seus movimentos eram súbitos. "Eu estou esperando a mulher com o meu cartão de embarque", respondi olhando para o relógio. "Sua esposa?", perguntou ele. "Não, a moça da cia aérea". Era hora, o portão já estava quase fechando, e Chris levantou-se para desaparecer em meio aos demais passageiros embarcando. 

- "Se eu ouvir falar que teve terremoto no Quênia...", disse eu, jocoso.
- "Pode me culpar! Hehehe!", respondeu ele alto, desaparecendo. Nunca mais o vi.

Fui dos últimos a embarcar. A funcionária finalmente me conseguiu um assento (daqueles piores, que não são nem janela e nem corredor; mas a essa altura já estava contente só de embarcar). 

Rumo a Nairóbi, onde chegaríamos de manhãzinha.
Desembarque no Aeroporto de Nairóbi, no Quênia. "Muito lindo", como as pessoas gostam de dizer hoje em dia. Aqueles funcionários com as plaquinhas são para orientar os passageiros a onde ir.

O Aeroporto de Nairóbi, embora esteja longe de ser dos piores na África, é uma esculhambação. Os africanos (como os indianos, chineses, árabes... todos esses mais que os brasileiros) parecem ter uma alergia profunda a fila. Prontamente vira o pega-pra-capar do bolo de gente ao balcão. E nem sempre os balconistas têm a audácia necessária pra pôr ordem, embora aqui eu precise reconhecer que os funcionários da Kenya Airways tiveram. 

Uma das coisas que mais me irritam na África é a postura arrogante dos ricos. (É como no Brasil, só que pior porque a desigualdade e o tradicionalismo são maiores). Fulano vestiu um paletó, calçou um sapato oleado, já acha que pode furar fila, falar aos funcionários (garçons, recepcionistas e outros) como se fossem servos, etc. Um bonito de paletó quis furar a fila bem na minha frente e ainda reclamou quando a mulher o mandou voltar pro final.

O relógio do aeroporto marcava a hora errada (tipo 40 minutos de atraso, o ideal pra enganar se você não estiver atento), mas localizei o meu portão e fui tomar café da manhã numa bodega  a única do terminal. Nada mau: um sanduíche de queijo e salgados com café. (NOTA: Os funcionários desses estabelecimentos na África e parte da Ásia tendem a ser lentos de um jeito que no Brasil eu nunca vi. A moça aqui da lanchonete tinha que preencher toda uma notinha à mão antes de aceitar o pagamento. Jamais compre algo ou utilize um serviço desses aqui quando estiver com pressa, ou perderá seu voo. Está avisado). Mas a moça era atenciosa e amigável, o que não é sempre o caso. Alguns são distantes como se você nem estivesse ali.  

Pondo de forma simplista, aqui na África há logo dois grupos de pessoas que ficam visíveis. Uma é essa classe trabalhadora mais simples  abatida, reticente, ou como diz um amigo meu de Uganda, "com cara de quem está com medo de atravessar a rua", pouco enérgica ou motivada, muitas vezes apática, ainda que com um leve brilho nos olhos de que ali ainda há esperança ou otimismo lá no fundo, apesar da realidade limitada. O segundo grupo são os que se acham os reis da cocada preta em seus paletós, e que chegam em outros países querendo botar banca também, em cima de funcionários de hotel e outros. Acostumaram-se a práticas sociais classistas. Afora o vampirismo dos países ricos, é essa elite inútil que atrasa os países pobres e segura as coisas do jeito que estão. 

Mas vamos a Madagascar. Tomei meu Embraer, e lá cheguei.
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Aeroporto de Antananarivo, em Madagascar. Acho que até o aeroporto de Feira de Santana é maior.
A saída do aeroporto, repleta de taxistas esperando noa botija.

Antananarivo (mais conhecida como "Tana") tem 2 a 3 milhões dos 22 milhões de malgaxes do país. É uma cidade inteira com a cara da periferia do Rio de Janeiro ou de Salvador: ruas estreitas, infra-estrutura precária, lixo acumulado, vendinhas de frutas junto a barraquinhas vendendo chip para celular, esgoto a céu aberto, crianças ocasionais brincando na lama, etc. Só no meu traslado do aeroporto ao hotel eu avistei duas meninas urinando e uma senhora escondendo-se atrás de um caçambão de lixo e suspendendo a saia. 

Uma nota breve pra quem pensa em visitar Madagascar ou veio até aqui em busca de informação sobre a logística da imigração: Brasileiros recebem visto na chegada, sem qualquer burocracia prévia, e foi dos processos mais rápidos e eficientes que já vi. Enquanto você espera a sua bagagem (é tudo no mesmo vão), eles põem os carimbos no seu passaporte e lhe devolvem antes mesmo de a sua mala chegar. Tudo em coisa de 5 a 10 minutos, e sem custo. Noções de francês ajudam muito na sua estadia, mas aqui na imigração você não precisa conversar com ninguém. Devido à crise do ebola, só me perguntaram se eu havia estado na África Ocidental, e com uma maquininha iam detectando se as pessoas estavam com febre. 
Ruas de "Tana".
Áreas mais afastadas do centro.

"E que mal pergunte, que raios você foi fazer aí?". Congresso sobre desenvolvimento rural sustentável, segurança alimentar, e adaptação às mudanças climáticas. Madagascar já é pobre e, como o restante da África, é quem mais está sofrendo com a mudança climática global (secas, alteração no padrão de chuvas, tufões no Oceano Índico, etc.). Tive, portanto, traslado até um bom hotel (Ibis)  um dos poucos prédios da cidade. Enquanto que em boa parte da África há as estradas para os carros hi-lux da minoria empoderada, em Madagascar parece que todo mundo é pobre ou, no máximo, classe média. Até os ministros de estado que eu tive a chance de conhecer me pareceram pessoas simples. 

Foi para encontrar-me com eles que andei num carro, pela primeira vez na vida, com escolta policial. Não pela insegurança, mas para abrir caminho no tráfego. 
Com um colega nigeriano e uma malgaxe no jantar com os ministros.

Não, a tia não é asiática, os ancestrais distantes dela é que são. Ela na verdade tem a cara típica dos malgaxes. O que você talvez não soubesse é que a ilha foi povoada por povos austronésios (da Indonésia, Polinésia...), e não por africanos. Imigrantes negros só vieram mais recentemente. A língua malgaxe também é da família daquelas bandas de lá do Pacífico. E, já tendo morado na Indonésia, lhes digo que o jeito de ser deles também é muito parecido: o ar um tanto pacato, a risada fácil, além de uma alimentação baseada sobretudo em arroz, como na Ásia. (Apesar da desnutrição crônica, cada malgaxe médio come 1kg de arroz em 2,5 dias). 

Caso a ficha da diferença entre Madagascar e a África continental ainda não tenha caído, veja aqui um vídeo curto da música tradicional deles, mais parecida com um cancioneiro latino-americano do que com a percussão e os ritmos típicos africanos. (Às vezes eu me sentia como se estivesse na plateia do programa Viola minha Viola de Inezita Barroso).



Neste jantar, acho que o meu traje do sul da Ásia fez os anfitriões me confundirem com o Prêmio Nobel da Paz de 2014. Não o indiano, mas a menina paquistanesa Malala. Esta abaixo era a plaquinha no meu lugar de sentar (havia "Brazil" escrito a mão do outro lado). 

Não estranhem o "Raobelina". Em Madagascar, as mulheres frequentemente têm esses nomes de proteína ou remédio. Algumas que eu conheci pessoalmente incluem: Lovanirina, Olitina, Onilinina, entre outras. (Não, não havia nem Aspirina e nem Anilina). 

Logo de entrada, recebemos suco de graviola com refill livre. Uma maravilha. Havia também um suco de frutas com bastante mamão. Já a janta em si não foi tão feliz pra mim; eles aqui comem muita carne, e na África quase nunca se lembram que algum convidado possa ser vegetariano. Me lasquei, e fiquei no arroz com salada e pimenta. Pelo menos havia umas saladas exóticas, com mamão verde etc.
Meu prato no jantar. O chamado "arroz vermelho" de Madagascar, salada crua de mamão verde à direita, manga abaixo, e coisas mais habituais. Um molho de pimenta verde chamado de piripiri incendiava o prato.

No dia seguinte, fomos visitar um pouco da cidade. Antananarivo tem quase que só um ponto turístico: o Palácio da Rainha Ranavalona II, do século XIX. Foi projetado em 1869 pelo arquiteto francês James Cameron (não confundir com o diretor de Titanic e Avatar). Mas cheguei tarde: em 1995 puseram fogo na estrutura e só sobraram as paredes. Ainda assim, a visita vale a pena pela vista que se tem da cidade, lá do alto. 

No perímetro, um guia nos acompanhou no entorno do palácio e foi nos explicando da história e da sociedade malgaxe. 

Em miúdos, Madagascar era uma coleção de reinos e tribos independentes até o Século XIX. O principal reino era o de Imerina, aqui no centro da ilha. Já nos idos de 1890, a França  após disputa com a Inglaterra  conseguiu subjugar a ilha militarmente e fez de toda Madagascar um protetorado francês. A Rainha Ranavalona II foi a última a governar. Continuou sob os franceses, mas em 1897 foi acusada de estar por trás de uma rebelião (suprimida) e foi exilada na Argélia. Os franceses instituíram aqui o sistema da corveia medieval, isto é, faziam os malgaxes pagar impostos através de trabalho não-remunerado nas plantações dos franceses. A história colonial durou até 1960, com a vitória malgaxe na Guerra de Independência. O pai daquela senhora que vocês viram comigo na foto ali acima ficou oito anos preso nas mãos dos franceses. Até hoje o país sofre com a rapinagem estrangeira e vulnerabilidade econômica. Quebrou com a crise financeira de 2008/2009, o que levou a um golpe de estado, e só agora em 2014 é que um novo presidente democraticamente eleito tomou posse. 
Uma bela vista de Antananarivo, de onde não se percebe a pobreza ou a poluição daquele lago.
O que restou do Palácio da Rainha Ranavalona II, já parcialmente restaurado.
Ruínas no que eram os jardins do palácio.
Escultura da Rainha Ranavalona II, a última de Madagascar. (Vejam ali atrás também cactos com tronco de madeira, que eles conseguem desenvolver quando há água suficiente no ambiente).

"Rainha gostosa", comentou um dos africanos que fazia o tour comigo. (Verdade seja dita, é um contraste imenso com as típicas imagens das rainhas europeias, de senhoras flácidas, pálidas e cobertas de pano). Ali ao lado o guia também nos mostrou uma a cabana de madeira que era a reconstituição do Palácio do Rei, cujo original foi incendiado. "Só tem piromaníaco aqui, hein?", disse alguém.

Não podia tirar foto no interior, mas não havia basicamente nada além do chão de terra batida. O  rapaz explicava que um canto da cabana  digo, do palácio  era especial para orações, embaixo da cama do rei, onde no momento estava molhado com cara de que alguém havia urinado ali. Às vezes a precariedade era tanta que você ficava até sem jeito.
A reconstituição do palácio do rei. Não é que rei e rainha dormissem em palácios diferentes; é que eles são de épocas diferentes.
Tradicionalmente, era proibido dar as costas para o rei, então todos deviam sair caminhando de costas. Eu vi a hora de muitos tomarem umas belas quedas ali naqueles degraus.

São muitas as características sociais curiosas que descobri aqui (e.g. o verde é a cor da pureza, não o branco; muita gente vê ovos como símbolo de negatividade, pelo formato igual ao número zero, e foi o primeiro hotel de luxo onde vi ovos não serem servidos no café da manhã). Mas a mais curiosa de todas foi a seguinte. 

Os malgaxes em geral são cristãos, mas aquele cristianismo misturado com tradições locais, como em muito do Brasil. Só que, como os judeus, muçulmanos e outros, os homens malgaxes são todos circuncisados (isto é, têm a pele da cabeça do pênis removida quando crianças). Mas aqui isso não ocorre ao nascer, e sim após os 2 anos de idade, quando o garotinho está pronto para ser formalmente incorporado à família. Para isso, o seu avô paterno deve comer a pele removida do pênis do neto com banana, como sinal de aceite. Aqui pra nós, isso matou qualquer possibilidade de eu jamais constituir família em Madagascar.

Achei que estavam zoando, mas confirmei com várias pessoas que é isso mesmo. Só não consegui muita clareza acerca de se a pele é comida crua ou cozida. Se não comer, o menino não pode herdar nada e nem ser enterrado na tumba da família. Orra...

Por ora eu vou deixar vocês para o post não ficar enorme. Mas não pensem que as histórias acabaram. Ainda há outras mirabolantes a vir, além de mais coisas engraçadas, mais comidas, mais da cultura malgaxe, e um pouco mais de natureza.
Crianças me pedindo dinheiro na rua.