quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Visitando Moscou: o Kremlin, a Praça Vermelha, e lugares menos conhecidos

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A Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, em Moscou.
A mesma Rússia simples, retratada no post anterior, guarda belezas como a dessa magnífica igreja. Muita gente a vê em fotos e acha que é o Kremlin, mas não é. A Catedral de São Basílio (1561) é o exemplo maior dos domos em forma de cebola e da arquitetura colorida das igrejas russas ortodoxas (vertente oriental do cristianismo católico que têm tradições distintas da igreja de Roma e que não segue o papa).

Moscou é uma cidade de 12 milhões de habitantes, a segunda maior da Europa (após Istambul), com uma quantidade razoável de lugares a ver. Além da catedral acima na famosa Praça Vermelha, há a se ver o próprio Kremlin, outras igrejas e mosteiros a perder de vista, mercados populares, prédios da era soviética, e mais. Dá pra se passar uns três dias se você não quiser cavucar cada esconderijo de Moscou. Mas o mais importante é o astral, a vibe da cidade. Não por ela ser exatamente agradável, mas por ser certamente diferente da que você encontra em outros países da Europa. Se São Petersburgo cheira à Rússia imperial dos czares, Moscou cheira a União Soviética.

Meus amigos e eu começamos com o café da manhã improvisado no cafofo. Pão, queijo e outras coisas básicas compradas no mercado da esquina, onde as caixas  quase todas imigrantes asiáticas de ex-repúblicas soviéticas (Uzbequistão, Tadjiquistão, Cazaquistão...)  mal nos olhavam. Comíamos na mesa da cozinha enquanto a TV (sempre ligada nas alturas) passava uma entrevista com algum general no jornal da manhã. A impressão que você tem ao assistir os telejornais russos é de que o mundo é um lugar hostil e a nação está sempre em risco.

Deixamos lá aqueles caras (funcionários e hóspedes) que parecem não fazer nada lá o dia inteiro, e fomos à estação de trem. Precisávamos comprar antecipadamente passagens a São Petersburgo, sob risco de os preços subirem. Atenção, pois há uma dúzia de estações de trem em Moscou. A nossa, a Leningradsky, em referência ao antigo nome de São Petersburgo (Leningrado), por sorte era perto do albergue. Há um milhão de guichês e ninguém pra te orientar em inglês, por isso sugiro enfaticamente que você aprenda ao menos o básico de russo suficiente para perguntar "onde passagens São Petersburgo?", os números, etc. Modéstia à parte, meu básico de russo salvou a pátria nessa hora.

Escolhemos o guichê com base na cara das atendentes. A mais simpática nos pareceu ser Tatiana, uma jovem loura bem arrumada (as russas sempre estão arrumadas). A decisão se revelou acertada, pois ela foi paciente conosco e uma vez até sorriu (um feito, pois fazer um funcionário público russo sorrir é quase o décimo terceiro trabalho de Hércules). Saímos pra comemorar à frente da estação com vista para uma das famosas "catedrais de Stálin", prédios altos da era soviética. As pessoas na rua ou ignoravam nosso pedido pra tirar uma foto do grupo ou aceitavam com aquela cara de impaciência. Mesmo assim ainda conseguimos sorrir na foto.
Diante da estação Leningradsky em Moscou, com uma das "catedrais de Stálin" ao fundo.

Todas as principais atrações de Moscou estão na Praça Vermelha, o coração da cidade. Ali há uma área pavimentada aberta (onde ocorriam os desfiles militares na era soviética), a icônica Catedral de São Basílio, e a área murada chamada de Kremlin. Kremlin é, na realidade, um nome genérico que quer dizer "fortaleza". Toda cidade russa antiga tem uma, embora se pense que é só em Moscou. Dentro do Kremlin moscovita  que é, portanto, uma área cercada por muralhas  há o palácio de governo, igrejas e museus.
Muralhas do Kremlin em Moscou. A Catedral de São Basílio e a área aberta dos desfiles militares ficam do lado de fora.
A Praça Vermelha no inverno. Lá ao fundo meio vermelho é um museu de história; aqui ao lado é um shopping requintado.
A Catedral de São Basílio no inverno.
Contornando-se a Praça Vermelha, as muralhas do Kremlin prosseguem por uma área de jardins -- aqui cobertos de neve.

Se alguém estiver a se perguntar sobre o frio em Moscou, faz frio mesmo. Eu dei sorte de nesses dias de inverno só estar 9 graus negativos, mas às vezes vai a -20, -30... uma delícia.

Para entrar no Kremlin é preciso uma série de tickets caros, vendidos separadamente para cada seção e com entradas em horários fixos. As atrações turísticas na Rússia são normalmente caras pra caramba (~30-60 reais cada), então preparem os bolsos. Não há acesso ao palácio de governo propriamente dito (os guardas não deixarão você nem se aproximar; se olhar torto é capaz de já lhe chamarem a atenção). Mas é possível visitar o pátio interior do Kremlin com suas catedrais, uma torre, e o armorial/tesouro nacional, cada qual com um ticket de entrada diferente.

Apesar do preço alto, se você já chegou até aqui, vale a pena ir adiante e conhecer. No armorial não é permitido tirar fotos, mas há uma riqueza de posses da época imperial russa (bíblias enormes incrustadas com jóias, roupas chiques dos monarcas, armaduras decoradas, etc.). É bonito.

Já no pátio do Kremlin você pode visitar várias igrejas ortodoxas. Chega uma hora que enjoa porque elas são muito parecidas, mas como é algo que a gente quase não encontra no Brasil, vale a pena entrar e conhecer pelo menos algumas.  Aquela na esquerda da foto abaixo é a igreja de São Miguel Arcanjo.
No pátio das catedrais no interior do Kremlin.
Canhão de 1586, da época imperial russa, no interior do Kremlin.
Reserve pelo menos um dia ou um dia e meio para ver essas atrações, pois os horários fixos de entrada (só uns quatro por dia) vão te limitar. Afora essas atrações, o que mais há nos arredores do Kremlin são lojas caras, fast-foods, etc. A visão dos soldados russos fazendo fila no McDonald's pra mim foi antológica. Lênin deve estar se revirando no túmulo.
Soldados russos fazendo fila pra comprar no McDonald's, em plenos arredores da Praça Vermelha. (E, sim, McDonald's está escrito no alfabeto cirílico). 
Falando em Lênin, também é possível ver rapidamente a múmia de Lênin preservada, num pequeno mausoléu na Praça Vermelha. Infelizmente essa "atração" estava fechada por alguns meses quando eu visitei, mas dizem que vale a pena. Os russos continuam a apreciá-lo, ao contrário de Stálin, que hoje você só verá em camisetas souvenir pra turista. As várias estátuas de si próprio que ele mandou construir foram derrubadas ainda na própria época soviética, no regime de Nikita Khrushchev, seu sucessor.

E o Balé Bolshói? Está perto dessa área central do Kremlin e da Praça Vermelha, mas se quiser assistir, reserve pela internet com alguns meses de antecedência. Eu não consegui e acabei indo ver o rival, o balé Mariinsky de São Petersburgo.
O Teatro Bolshói em Moscou.

Já vistas as atrações principais, fomos à Igreja do Cristo Redentor, enorme, a minha favorita em Moscou. Fica a uma curta caminhada do centro. Lá você verá os fiéis russos fazendo fila para beijar as imagens (hábito no cristianismo ortodoxo). Na tradição cristã ortodoxa as imagens são em geral pinturas, não esculturas. Então tomem-lhe beijos. Quando entrei na igreja havia uma fila imensa pra beijar uma imagem em especial, e após cada beijo um diácono ia limpando o vidro da pintura com uma flanelinha.
Igreja do Cristo Redentor, em Moscou no inverno.
Igreja do Cristo Redentor. Magnífica por dentro. Em 1931 essa igreja foi dinamitada pelo governo soviético, que quis usar as toneladas de ouro das cúpulas para pagar as contas públicas. Ela foi reerguida somente entre 1990-2000, após o fim do regime soviético.

Daí a alcunha de "catedrais de Stálin" para os prédios que os soviéticos erguiam sobre os escombros das igrejas e por toda a cidade.
Uma das "catedrais de Stálin", vista de perto. 

Outra visita interessante foi ao Mosteiro Novodevichy. São jardins, pequenas capelas e um cemitério onde estão enterradas figuras eminentes como Nikita Khrushchev (líder soviético 1953-1964), Boris Yeltsin, e Pyotr Kropotkin (um dos pais do anarco-comunismo). O mosteiro é um lugar tranquilo e sublime, tanto no verão quanto no inverno. Vale a pena se você quiser sentir esse ambiente russo ortodoxo num lugar mais autêntico, não-turístico.
Mosteiro Novodevichy no verão.
Mosteiro Novodevichy no inverno.
Interior de igreja ortodoxa em Novodevichy. Os fiéis acompanham a celebração de pé, e as mulheres tradicionalmente cobrem a cabeça dentro da igreja. Em lugares menos turísticos isso será exigido de mulheres turistas também.

E se você quer souvenirs (e não for inverno), não deixe de ir ao Izmaylovsky Park. Não há parque, mas um grande mercadão aberto. Há quase tudo que você acha em outras partes de Moscou, só que mais barato. Atenção especial para as dezenas de estilos de tabuleiro de xadrez. O jogo é super popular na Rússia.
Alguns tipos variados de tabuleiros de xadrez à venda.
Dois senhores jogando uma partida no mercadão de Izmaylovsky.

Moscou não será a cidade mais charmosa que você já viu, nem necessariamente a mais agradável. A beleza das ruas meio que se limita às partes históricas. Além disso, a infraestrutura capenga (com exceção do metrô) e o mau atendimento talvez te criem certa repulsa. Apesar disso, não deixa de ser uma visita historicamente importante. Gostaria de morar em Moscou? Não. Mas gostei muito de tê-la visitado. Além da História, há o contato com uma cultural social bem peculiar, diferente da europeia. E, vamos e venhamos, ainda que muito do geralzão seja feio, há aquelas vistas de Moscou que fazem a visita valer a pena.
Entardecer sobre o Rio Moskva em Moscou, com o Kremlin e suas igrejas à direita.
A Praça Vermelha numa noite de inverno.

E a viagem pela Rússia continua.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

À Rússia com amor: Chegando a Moscou e hospedando-se num cafofo

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A Rússia não é um destino fácil. Fácil é entrar, pois desde 2010 os brasileiros não precisam mais de visto (para a inveja boquiaberta de europeus e norte-americanos). Mas, uma vez lá dentro, prepare-se para olhares mal-encarados, impaciência nos serviços, e um nível de infraestrutura parecido com o Brasil, mas numa terra onde  a menos que você seja fluente em russo  ninguém fala a mesma língua que você (eles não sabem e não gostam de falar inglês). Apesar disso, a Rússia é uma terra de belezas próprias, muito interessante, e que vale a pena ser conhecida.

Para quem chegou até aqui após ler meu post da Finlândia (Lapônia), não se perca. Dali foi a minha segunda viagem à Rússia, entrando por São Petersburgo no inverno. A primeira ocorreu poucos meses antes daquilo, num mês de setembro, entrando por Moscou. Vou tomar essa primeira experiência como carro-chefe, e inserir coisas da segunda quando necessário.

Minha primeira chegada à Rússia foi de avião, partindo da Alemanha. No meio do trajeto, o capitão nos acalentou anunciando que uma peça-chave tinha dado defeito. Sem ela não seria possível chegar até Moscou, e era preciso retornar a Frankfurt. Que maravilha. Lá aguardamos 1h até a peça ser substituída, e decolamos novamente. Assim foi por água abaixo o meu plano de chegar a Moscou ainda à luz do dia, quando é mais fácil de se virar numa cidade desconhecida.

Éramos um grupo muito peculiar de amigos meus: uma engenheira mecânica chinesa, uma holandesa tímida jogadora de futebol (e praticante de boxe), uma cientista política italiana, e um brasileiro trabalhando com conservação da Amazônia no Acre. Ah, e eu. Não, não houve briga de boxe nem quebra-cabeças de engenharia -- como ocorreria se fosse filme americano. Mas nossa experiência não deixou de ser bem aventuresca.

Ninguém falava russo. Somente eu estudei da internet por uns dois meses e aprendi um basicão, além de saber ler o alfabeto cirílico, o que é muito importante, pois te permite por exemplo saber que ресtоран se lê "restoran", e deduzir que é um restaurante. São muitas palavras assim. Além disso, saber ler os sons (ainda que não saiba o significado) te permite se orientar no metrô de Moscou, onde os nomes das estações e os avisos de áudio são apenas em russo.
Vendinha simples nos arredores de Moscou. Não espere que essa tia fale algo além de russo.
Chegamos à noitinha ao aeroporto Domodedovo (não é o mesmo em que Snowden ficou, o Sheremetyevo), de onde um trem ou um ônibus te leva à estação de metrô mais próxima. Há gente suspeita por toda parte, pois os russos já tem um jeito taciturno, e as típicas caras de poucos amigos fazem você se sentir num filme de máfia.

Saímos de trem, até a Estação Paveletsky. Uma vez na rede de metrô, você está tranquilo. Ele custa barato e, com 12 linhas, cobre toda a cidade, a ponto de pouco existirem ônibus urbanos. Você verá muitos guardas e funcionários públicos uniformizados com cara de mau, entediados em suas cabinezinhas observando o movimento. Não quis dar razão pra tirá-los do tédio, então não tirei foto deles. Mas você os verá vigiando as escadas rolantes. A Rússia tem das estações de metrô mais fundas do mundo, da época da Guerra Fria, e a ideia era servirem também de abrigo anti-bombas. Leva minutos pra subir e descer em cada escada.
Numa estação de metrô em Moscou. Além de eficiente, o metrô de Moscou é um deslumbre. Cada estação é decorada de um jeito, e às vezes parece que você está num palácio ou num museu. Conheça tantas estações quanto puder.
O naipe das escadas rolantes do metrô na Rússia. Mal dá pra enxergar o fim. Às vezes se passam minutos.

Do metrô, uma caminhada breve nos levou até o albergue, um cafofo no quinto andar de um prédio velho sem elevador. (Havia elevador, mas daqueles onde só cabe uma pessoa, e que na maior parte das vezes está quebrado). Ao subir as escadas, você assiste aos moradores à porta dos seus apartamentos fumando, criando toda uma atmosfera completamente sufocante, que mistura cigarro e cheiro de prédio velho (aquela combinação de poeira, mofo e cimento).
Prédio do meu albergue, que ficava no último andar. Aquela à esquerda é a portinha do elevador. Por favor, imagine aquele oxigênio de prédio em obras abandonado, misturado com cigarro enquanto você sobe cinco andares de escada. 

A verdade é que a cultura de albergagem na Rússia não é como na Europa, voltada a jovens turistas estrangeiros. Aqui os albergues fazem mais o estilo cortiço, com famílias que se hospedam por meses, aquela tia bem dona-de-casa costurando na sala enquanto vê televisão, e grupos de senhoras lavando as roupas íntimas no banheiro. Eu, como tenho sorte, caí bem num desses.

Certa vez, pra usar o único banheiro às 6 da manhã eu precisei convencer as tias de que eu estava apertado a ponto de fazer nas calças, enquanto elas monopolizavam o banheiro coletivamente (entravam três, saíam duas, entrava uma outra). Me senti na época de vacas magras do pós-guerra.

Os russos, em geral, são calorosos por dentro e frios por fora. Após você fazer certa amizade, eles poderão se revelar pessoas maravilhosas, bem humanas e bem "amizade de irmão" do tipo "eu entraria numa briga por você". Mas, como você terá pouca oportunidade de chegar a esse nível como turista, prepare-se para a rudeza ferrenha dos russos para com estranhos  sobretudo em serviços, tipo na lanchonete, na rodoviária, etc. O que você mais encontrará é uma cara que combina tédio, impaciência, e desprezo por você, como se a pessoa estivesse put@ da vida e a culpa fosse sua.

A mensagem é: prepare-se para uma firmeza de personalidade (que às vezes leva a um certo embrutecimento) e que eles também esperarão de você. Não sorria demais, pois é tomado como falsidade. O esquema aqui é ter uma atitude firme. (As mulheres, inclusive, muitas vezes te encaram de volta e sustentam seu olhar nos olhos por mais tempo do que em outros lugares).
Os russos também são provocantes. Propaganda de celular na rua.

No nosso cafofo, três armênios tomavam conta da coisa. Mantinham o aquecedor no máximo, e circulavam de calções, pulôver e meias pelo albergue. Numa bela noite, enquanto jantávamos milho de lata e coisas afins compradas no mercado da esquina, um deles veio perguntar se alguém ali falava francês. Eu aconteço de falar, e perguntei do que se tratava.

Na recepção, um senhor idoso engravatado rodava impaciente, queixando-se de um jeito que só os franceses sabem fazer. Não falava uma palavra de inglês ou russo. Aparentava ter uns 65 a 70 anos, já meio calvo, com cabelos brancos dos lados. (Não me perguntem como esse personagem veio parar aqui). Dei boa noite e perguntei do que ele precisava. Mal sabia eu o que viria dali. Ele queria saber como chegar numa cidade do interior onde "alguém" o aguardava. Aí ele me mostrou o e-mail mais recente, que começava com "Bonjoooooooooour, mon amooooooour", e continuava em tons sedutores, aparentemente de uma jovem russa apaixonada que o aguardava ansiosamente.

Na Europa é notória a fama das russas em busca de marido rico, e que às vezes procuram esses idosos interessados num pouco de "emoção", hehe. Só não imaginei que eu fosse me deparar em primeira mão com um caso desses. O e-mail era todo romântico, e o velho fez questão de ler algumas partes pra mim enquanto apontava a tela com o dedo. Como eu era a única pessoa com quem ele podia conversar, eu tinha que tomar cuidado, pois era só ele me ver que achava mais assunto para puxar conversa. A cidade aonde ele ia ficava a 23h de ônibus de Moscou, e eu nunca soube se o velho jamais chegou ao seu destino.

As coisas que me acontecem...
Bem, no próximo post eu passo à visita a Moscou, e ao que há de mais interessante a se ver.
Áreas populares. A Moscou mais simples, fora das áreas turísticas. Pra quem quiser treinar a leitura do alfabeto cirílico, ali está escrito "Vernissage" em letras vermelhas.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Visitando a Lapônia e o Papai Noel no Ártico

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Foi Ano Novo em Amsterdã. O cheiro dos fogos se misturava ao de maconha na rua. Não que os holandeses e turistas fumem sempre, mas nesta noite de réveillon havia o bastante para confundir os cheiros. E olhe que aqui os fogos de virada de ano não são poucos. Parece festa junina. Há muitos milionários que, para além da festa paga pelo governo, fazem as suas próprias, então há fogos por toda a cidade. Além disso, aqui todo mundo parece virar criança e o que mais se vê são adultos jogando bombas na rua como se fosse a coisa mais divertida do mundo. A prefeitura remove todas as caixas de correios das ruas e as retorna no dia seguinte, pra evitar prejuízo.

A chuva, no entanto, sacaneava a festa. Caía mais do que o chuvisco costumeiro da capital holandesa, caía um verdadeiro toró. E frio de seus 5 graus, pois era inverno. Mas nada que removesse as pessoas da rua. Quem não estava ali, estava em bares, hotéis, restaurantes, ou fizeram como minha amiga geminiana que foi pra uma rave de armazém, celebrar um raveillon. Meia-noite ela me ligou dizendo que a polícia havia baixado na festa e dispersado todo mundo, pois não havia licença (dos bombeiros) pra ocorrer.

Da minha parte, passada a meia-noite e o principal dos fogos, fui me abrigar da chuva. Estava com alguns amigos e familiares que vieram me visitar em Amsterdã. Nosso 1 de janeiro não seria de lerdeza pós-festa em casa, mas um dia agitado. Nós tínhamos voo marcado de manhã para Helsinque, na Finlândia, e de lá à noite um trem até a Lapônia, mais ao norte, no ártico. Seria o começo de uma rota que também depois nos levaria à Rússia.

E assim começou o meu ano.  
Entrada de 2013 em Amsterdã, Holanda.
Fogos de réveillon em Amsterdã.
Noite da virada em Amsterdã.
Ao chegar na minha casa em Amsterdã, colocamos as roupas molhadas na secadora e dormimos algumas poucas horas. Às 9 da manhã estávamos no aeroporto, zarpando para a capital finlandesa, Helsinque.

Lá, àquela latitude da Finlândia, havia ainda menos horas de luz que em Amsterdã. Pôr do sol às 4 e pouca da tarde. Somem-se aí os dias completamente encobertos, e temos uma temporada bem escura. Em pleno feriado de 1 de janeiro, Helsinque então nos parecia quase uma cidade fantasma.
Fim de tarde em Helsinque, 1 de janeiro de 2013.
Só vimos pessoas na estação central de trens, onde chegamos com um ônibus do aeroporto. Demos algumas voltas nas ruas gélidas, escuras e vazias da cidade, mas passamos a maior parte do tempo na estação. Lá as pessoas tomavam café e circulavam. Uma nota: eu nunca havia visto tamanha concentração de andróginos, nem de pessoas com cabelo em cores tão diferentes (cor de rosa, verde claro, azul-calcinha), somadas a pessoas com piercings em lugares exóticos, tipo entre os olhos, acima do nariz. Nas quatro horas que passei na estação, contei três casais de lésbicas. Não estou recriminando nada disso, mas não deixou de chamar a minha atenção pelo contraste com os outros países. Eu ainda não havia visto esse nível de liberalismo em nenhum lugar do mundo.

Os finlandeses, em geral, são quietos, mas ciosos de suas identidades individuais. É uma sociedade rica e bem organizada, como o restante dos países nórdicos. Mas note que eles não são escandinavos. Os povos escandinavos, descendentes dos vikings (Noruega, Suécia, Dinamarca e Islândia) têm origens comuns, enquanto que os finlandeses são de outro grupo étnico e linguístico. Têm um rosto meio quadrado, e a maior proporção de loiros(as) do mundo. Seus nomes, bem únicos, não são encontrados em nenhum outro lugar: ex. Taro, Pirkko, Marjo [lê-se Mário] para mulheres, e Velli, LalliIsto para homens. A comissária no meu trem se chamava Tiia (juro que não estou inventando).
A estação central de trens em Helsinque, palco de minhas observações.
Á noite saiu o nosso trem de quase 12h horas até Rovaniemi, a capital da Lapônia. A Lapônia, a conhecida terra do papai noel, é um lugar real. É a província mais ao norte na Finlândia, e representa um terço do país. Quase toda ela se encontra acima do Círculo Polar Ártico, daí a ideia de que o Papai Noel vive no pólo norte.

As lendas da origem do mito do Papai Noel são várias. A principal é sobre o bispo (depois canonizado) São Nicolau, que viveu na região da Lícia (na atual Turquia) no século IV e que ajudava os pobres. Se diz que ele punha moedas de ouro nos sapatos dos pobres como caridade. Ele sempre foi e continua muito popular no leste da Europa. Acredita-se que, na cristianização da Europa nórdica e germânica, suas histórias se misturaram com as lendas de inverno, especialmente com o festival pré-cristão de Yule, que a Igreja sabidamente procurou associar com o nascimento de Jesus Cristo, o Natal. Nessa época, dizia-se, o deus Odin saía numa procissão pelos céus em caçada (daí a ideia de o Papai Noel sair voando de trenó). O toque final foi dado pela Coca-Cola no final do século XIX nos Estados Unidos. Para sua propaganda, transformou os trajes amarelos de bispo em vermelhos, e a figura de São Nicolau (que não era gordo) na do "bom velhinho" atual.
Papai Noel moderno, adaptado pela propaganda da coca-cola.

Eram umas 10:30 da manhã quando chegamos. Estava ainda acabando de amanhecer.
Parada de trem em Rovaniemi. A sensação é de que você está  desembarcando do Expresso Polar, do filme, ou em Nárnia antes do degelo.
Rovaniemi, capital da Lapônia.

Não sei aonde as pessoas iam com tantas malas, pois não há quase nada na cidade. A estação de trem se resume a uma sala de espera e a um restaurante que só fica aberto até o fim da tarde. Avistei uns asiáticos e deduzi que estavam ali pela mesma razão que nós, a única razão que traz turistas à Lapônia: ver a Vila do Papai Noel.

Um ônibus urbano comum pára no meio de um campo de neve, e leva as pessoas até lá  o famoso ônibus n. 8, apelidado de "Santa Express". Fizeram a Vila bem onde passa o Círculo Polar Ártico, que se torna mais uma atração. Não chega a ser grande como um parque temático, e você deve estar preparado pra algo bem baseado em lojas, restaurantes, souvenirs, e essas coisas. Contudo, há também renas (de verdade), huskies pra te arrastar no trenó de cachorro, e é claro um fábrica de brinquedos do bom velhinho. (Acho que na verdade contratam vários velhinhos pra dar conta de tantos visitantes o dia todo).
Eu na linha do círculo polar ártico, com a latitude exata no chão. 
A Vila do Papai Noel na Lapônia (ao meio-dia)
Visitantes na vila.
Decoração permanente de Natal na Vila do Papai Noel. Mas, como ainda era 1 de janeiro, o espírito era autêntico.

A gente sabe que é um empreendimento capitalista, mas não deixa de ter uma magia natalina, no mínimo por toda a paisagem nevada e por você saber onde está. Não há custo de entrada, mas claro que tudo é caro, sobretudo se você quiser uma foto com o Papai Noel. E é claro que a criançada quer. E eu também quis (afinal, quantas vezes na vida você fará isso?).

O escritório do Papai Noel fica numa grande casa de madeira, de dois andares, que parece mesmo uma oficina de brinquedos no estilo que a gente vê em filmes americanos. Os funcionários tomam o seu nome e você forma fila, com um grupo limitado de pessoas a cada meia hora. No trajeto, outros funcionários vendem certos produtos que vão desde o clássico ursão de pelúcia até colares de joias, para os adultos. Mas você não recebe o produto na hora: vai recebê-lo mais à frente, das mãos do Papai Noel, que estrategicamente estará lá para surpreender sua criança com um "Espere. Eu tenho uma coisa aqui pra você".

Você não pode usar a sua própria câmera; se quiser a foto, tem que comprar a que eles tiram de você, mas vale a pena.
Entrada para a oficina do Papai Noel.
Eu, minha mãe e um primo com o bom velhinho.
Entra para a história, pra o álbum de família ou pra aquelas coisas que você põe no seu currículo como já feitas.

Outra delas que realizei aqui foi andar em trenó de cachorro, puxado pelos huskies siberianos (finlandeses, creio). Preferi eles às renas porque as renas me pareceram entediadas, puxando gente pra lá e pra cá, enquanto que os cães estavam animados e pareciam se divertir com a folia. São mais de 10 puxando um trenó de três pessoas.
Rena pra passear. Elas me pareceram meio descontentes com o que estavam fazendo.
Trenó de huskies. (Eles não têm a menor cerimônia em fazer você passar por meio de galhos, etc.)

Afora o que eu mostrei, dá sempre, é claro, para brincar de atirar bola de neve nos outros, deslizar dos morretes, etc. Quem achar que isso é só pra criança nunca se divertiu com a neve. No mais, uma hora dá fome e você pode comer por lá (pra os carnívoros, há carne de rena). No geral, é um dia bem passado, em que você se ensopa naquela atmosfera natalina. Só não perca o último ônibus, pois não há nada além de pinheiro e neve nos arredores. O escurecer (às 2 da tarde) não vai te ajudar muito a se orientar em relação ao tempo.
No meio do nada, na Lapônia.
Estava frio? Estava, mas não era o fim do mundo. Somente poucos graus abaixo de zero (já peguei -33 no Canadá, o que é muuuuuito diferente). Aqui só as mãos ficavam meio ardidas, mas num dado momento achamos uma fogueira, dentro duma casa de madeira, bem estilo lenhador, com um ponche não-alcóolico 0800. Dá pra aguentar. Faz parte da experiência.

Quando saímos de lá eram umas 5 da tarde, de volta à estação. De lá nosso trem a Helsinque sairia à noite -- portanto mais uma viagem noturna. A dormida é na poltrona, mas não é desconfortável demais se você não tiver espírito de princesa. Mas, após chegar em Helsinque de manhã, não dormiríamos mais na Finlândia. Nosso destino era mais ao leste: São Petersburgo, já em território russo.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Edição especial Brasil: Numa terra Pataxó

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Dança com Lobos (1990) e O Último Samurai (2003) são filmes de narrativa simples, mas de profundo significado: um homem deixa a sua sociedade habitual e acaba convivendo com aqueles que vivem de um outro modo. "A way of life", é o nome da música-tema d'O Último Samurai, e não por acaso. Em ambos os filmes, os personagens acabam encontrando naquela nova sociedade muito do que já não encontravam nas suas.

Este ano fui agraciado com trabalhos aqui no Brasil, entre eles um projeto com os índios Pataxó, no sul da Bahia. Perto da conhecida Porto Seguro há mais de 800 hectares de uma reserva autônoma indígena, a Reserva da Jaqueira, cercada de áreas cobiçadas por redes hoteleiras, resorts de luxo, e condomínios de loteamento. Parte das áreas já foi garantida legalmente aos índios, parte segue em disputa. O que relato aqui é a minha breve experiência na região este ano, em três viagens curtas e alguns dias de trabalho.



Nossa primeira parada foi Porto Seguro. Rumamos de Feira de Santana, perdida no agreste da Bahia, numa van pela BR-101 até o extremo sul do estado. Chegamos no fim de um domingo, e fomos jantar no centro de Porto Seguro, uma área bem turística conhecida como a passarela do álcool. O caminho até a pousada era meio cabreiro, deserto e escuro, mas estávamos em grupo.

Ao final da nossa pizza, lá pelas 10 da noite, não foi grande surpresa quando se aproximou um mendigo (ou ao menos parecia) com mão na barriga e gemidos de dor, queixando-se de que havia tomado dois tiros. Pensamos que era um bêbado dizendo as asneiras de sempre, e seguimos comendo, até que vimos mesmo a camisa branca manchada de sangue e o fulano arreando no chão, na parede. A indiferença geral foi reveladora. Patologia social. Não há algo estranho quando alguém está a morrer do seu lado e todos continuam a saborear suas pizzas quatro-queijos como se nada estivesse acontecendo?

Chamamos a ambulância (que não chegou), e depois de uns 5 minutos as pessoas começaram a se dar conta de que  pra citar em palavras exatas  "de onde veio dois tiros vêm mais". E debandaram. De repente todo mundo pediu a conta e foi dando o fora. O cara continuava caído, já sentado no chão de costas pra a parede enquanto no bar\restaurante alguém gritava que "na hora que morrer um eles aparecem!". Saímos dali e fomos comer pastéis de belém numa doceria portuguesa próxima pra dar tempo de a ambulância aparecer. Pra o nosso azar, o baleado  e portanto as balas  haviam vindo exatamente da rua para voltar à pousada, então resolvemos matar tempo enquanto o cara morria ou era levado. Após 20 minutos o cara continuava lá. Era o tráfego do domingo à noite tão pesado assim? O que apareceu foi um táxi, que o pôs pra dentro e levou, sabe lá pra onde. Especulava-se desde o hospital até um dos mangues ali mesmo.

Bem vindos a Porto Seguro!
Cena do episódio, minutos antes.
Comecei esse post meio em clima de história de horror urbano, mas é simplesmente o que aconteceu. Não há mais assassinatos na história (embora fora dela eles continuem a ocorrer). Voltamos nas ruas escuras à pousada na tensão de como se estivéssemos num jogo de Resident Evil, inclusive com gente suspeita por perto, mas chegamos sem novos problemas, comentando o acontecido.
As ruas de Porto Seguro, mais tranquilas durante o dia.

No dia seguinte daríamos início a alguns trabalhos na cidade, e em seguida iríamos à Reserva da Jaqueira, que desenvolve trabalhos de conservação etno-ambiental (ou seja, de identidade cultural e também da biodiversidade) e é aberta a turistas. Há uma área de mata fechada, primária, e outra de mata secundária junto de onde vivem algumas famílias da etnia Pataxó. Falam português e já há uma mistura significativa com a cultura não-indígena da Bahia, mas se notam as diferenças, sobretudo entre os mais velhos. Os jovens agora é que estão aprendendo o que significa ser Pataxó. Ensina-se cada vez mais o Patxohã (a língua dos Pataxó), demais tradições, e faz-se um esforço para que não seja mais vergonha se apresentar como indígena no Brasil. Há aulas na própria reserva.
Área onde circulam os Pataxó, com kijemes, casas tradicionais de barro e piaçava.
Eu na reserva.
Crianças Pataxó na sala de aula, que tem mesas e cadeiras mas também faz coisas no chão. A estrutura é simples, mas o ensino parece ser bastante dedicado.
Crianças Pataxó.

A infraestrutura é bastante humilde: em geral não há luz elétrica, há pouca água encanada (há dois banheiros convencionais para turistas, mas os índios dizem não usar), o fogão é de lenha, e aqui se dorme em geral em redes. Galinhas, um cachorro muito simpático e um papagaio chamado de "mineiro" circulam pelo lugar, todos parte da comunidade. Pelas árvores há aí as aves da Mata Atlântica, já quase desaparecidas nos ambientes de crescente urbanização descoordenada.

Junto com eles nós comemos. Há pratos consideradas iguarias da culinária Pataxó, como o peixe assado na folha da patioba (uma planta local da Mata Atlântica), mas o dia-dia é mesmo arroz com feijão, salada, farinha de mandioca da grossa, e pratos bem parecidos com o habitual de qualquer baiano. Exceto um detalhe: os índios geralmente não adicionam sal à comida. É saudável, mas pra quem não está acostumado a comer assim, ele faz falta.
Peixe assado na folha da patioba. Está já detonado porque, como vocês podem ver, meus colegas pesquisadores não me deixaram nem bater a foto direito. Voaram em cima, hehe.
Meu almoço de todo dia na Reserva da Jaqueira. Feijão, arroz, farinha de mandioca da grossa e salada. Os outros também comiam frango ou carne.  Tudo normalmente sem sal, embora às vezes punham pra nós.
Papagaio "mineiro" olha pro interior do kijeme (casa traditional indígena feita de barro e piaçava) que serve de cozinha, onde o pessoal comia.
Interior do kijeme cozinha.

Nosso trabalho foi colaborativo com os Pataxó, foram oficinas realizadas para nós todos sobre atividades de conservação da biodiversidade, identidade e direitos indígenas... o que chamamos hoje de conservação bio-cultural.

Quando não estávamos nos trabalhos, acompanhamos as atividades para os turistas (apresentações de danças, trilhas, etc.). Aqui os Pataxó se vestem em trajes característicos, embora não estejam assim sempre (tal como os alemães que adotam seus trajes típicos no Oktoberfest mas depois tiram, ou qualquer europeu que apresente danças tradicionais mas depois retorne aos seus trajes modernos). O argumento é muito simples: nenhuma sociedade fica congelada no tempo. Não se deve esperar que os indígenas sejam diferentes. O japonês não deixa de ser japonês porque não sai mais vestido de quimono ou porque não mora mais em casas tradicionais de madeira e papel. O que importa, além do sangue, são a cultura e os valores.
Pataxós fazem um awê com os turistas, uma dança ritual em círculo, com incenso no meio, e em seus trajes tradicionais.

Não há mais caça, pois as populações animais já são bem diminutas e qualquer impacto pode levar à extinção dessas populações. Na verdade, os Pataxó têm é trabalho afastando caçadores não-índios, biopiratas, essas coisas.

Apesar disso, continuam a tradição do arco-e-flecha, e há inclusive "jogos Pataxó" de anos em anos, que juntam competidores de várias aldeias. Eu soube que o governo brasileiro está tentando pegar alguns pra competir pelo Brasil nas Olimpíadas, já que existe a modalidade arco-e-flecha mas o Brasil nunca ganha nada.

Esse indiozinho aí abaixo parecia o Legolas, e eu o flagrei atirando flechas com o pé.
Índio Pataxó atirando flecha com o pé.
Já eu precisei de uma aulinha básica de como atirar...
Um dos caciques me mostrando como arrumar a flecha no arco e disparar.
Meu disparo não foi mau. Mas quis fazer igual aqueles arqueiros de filme, que levantam a flecha para ela fazer uma curva no ar, e acabei acertando uma jaqueira lá atrás. Ainda bem que não ia passando ninguém. O negócio vai longe.

Mas a Reserva da Jaqueira está vinculada a uma "aldeia" maior, Coroa Vermelha, onde dizem que se celebrou a primeira missa, a da chegada de Cabral. Os Pataxó a chamam de aldeia, pois legalmente Coroa Vermelha é terra indígena e a maioria dos habitantes ali são índios, mas ao olhar não é muito diferente de áreas urbanas de qualquer outra parte da Bahia. Há o posto de gasolina, o supermercado, e até as igrejas evangélicas pentecostais.
Via principal em Coroa Vermelha. Se não fossem pelos rostos indígenas por toda parte, eu acharia que estava em qualquer outra parte da Bahia.

A esta altura já éramos somente eu e uma espanhola, Isabel. Ficamos numa pousada malacabada, administrada por um italiano simpático que arrastava o português e por sua mulher, do interior da Bahia, e com ar de piriguete. (Depois me disseram que se conheceram no carnaval de Salvador... Sei bem como é isso). Ficavam jogando baralho o dia todo e assistindo televisão. A piscina estava verde de biodiversidade e, no quarto, a cama me derrubou. A cena foi linda, comigo ouvindo "Nothing else matters" do Metallica no alto-falante do celular, aquela pressão toda, eu sento na cama e caio pra dentro com as pernas pro ar.

À tarde fomos à praia, ali perto, quase completamente deserta. Parecia abandonada, mas a água era boa  se você se afastar o bastante do riacho sujo que despeja dejetos ali, ele que um dia mereceu o nome de Rio Jardim. Degradado por urbanização descontrolada. Mas a praia ainda é bonita.
A ironia foi, no mesmo dia à noite, alguém dali nos dizer que aquela praia onde fomos era tranquila só até a 1h. Eu e a espanhola supomos que era 1h da manhã, mas que nada. A senhora respondeu com um sorriso: "1h da tarde". Isabel e eu nos entreolhamos. Havíamos ficado lá atééé o cair da tarde. A razão é que rola tráfico de drogas, agora chegando também aos aldeamentos indígenas.
Praia em Coroa Vermelha.
Praia relativamente deserta em Coroa Vermelha.
Área já um pouquinho menos deserta da praia, embora ainda bem vazia.

O tráfico de drogas (e a violência que o acompanha) são um problema sério em Porto Seguro, parcialmente devido aos consumidores turistas, e Coroa Vermelha não é muito diferente. Não é porque é indígena que a comunidade está imune a esses males sociais, hoje presentes em quase todas as zonas urbanas pobres no Brasil (e na América Latina de forma geral). O problema, seja pra índio ou pro pobre em geral, é que mesmo quando se garante o acesso à terra (ou à habitação, como no Minha casa, Minha vida) acha-se que aquilo é o bastante. Só que, sem desenvolvimento socio-econômico, vira point de tráfico.
Cruz em homenagem à primeira missa realizada pelos portugueses no Brasil. 
Mercadinho Pataxó em Coroa Vermelha. Sobretudo pra turista.

Depois de alguns beijus, muito açaí na tigela e trabalho feito, era hora de retornar a Feira de Santana. No caminho paramos num restaurante magnífico que mantém um ambiente bem Mata Atlântica e serve comidas e vende produtos artesanais da região. O tipo de comércio que valoriza as riquezas cultural e natural e que eu gostaria de ver muito mais no Brasil.
Restaurante à beira da estrada combina comida boa e ambiente natural agradável.
Doces, licores e quitutes regionais.
Entrada com molhos de cupuaçu, jaca, e banana com pimenta. Um melhor do que o outro. Tudo isso é riqueza brasileira sub-valorizada pra se comer porcaria industrializada "sabor artificial de cereja". 
Um espetacular suco de graviola. Suco de verdade.

A experiência indígena foi fenomenal. O contraste também é gritante, passando do episódio de patologia social em Porto Seguro ao ambiente radicalmente diferente da Reserva da Jaqueira, tão próxima mas tão distinta. Recomendo a todos irem lá. Não há como não se sentir mais brasileiro após um trabalho desses. Conhecer indígenas de forma autêntica -- na realidade e não nos preconceitos da gente elitista -- seria experiência boa pra todo mundo. É um pouco o que a reserva tenta fazer: descontruir preconceitos.

Não é romantizar; é reconhecer. Reconhecer que são dos que ainda guardam valores tão escassos na sociedade de hoje em dia.
Idosa Pataxó na Reserva indígena da Jaqueira.