quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Chegando a Plovdiv, no leste búlgaro



Casario e ruas antigas em Plovdiv, segunda maior cidade da Bulgária.

Seis a sete horas separam Istambul de Plovdiv, no leste búlgaro. Não acho que muitos brasileiros façam esse trajeto. Ao que turcos, búlgaros, e turistas europeus e norte-americanos passaram, eu fiquei para trás com os policiais de fronteira, que pareciam nunca terem visto um passaporte brasileiro. Checavam no sistema se havia mesmo isenção de visto (como há). Basicamente, todos descem do ônibus e passam a pé por um portãozinho lateral e por uma saleta onde os passaportes são inspecionados. Uns 10 minutos depois, me liberaram. Logo antes de cruzar a fronteira, eu havia gasto minhas últimas liras turcas comprando um pacote de batata Pringles num enorme shopping vazio onde havia mais funcionários que clientes. Um deserto de concreto, onde as bandeiras da Turquia, da Bulgária e da União Europeia balançavam hasteadas. Agora era hora de conseguir alguns levs búlgaros (a moeda) e conhecer um novo país.

Em Plovdiv me esperava Romina, uma amiga búlgara. Mas antes mesmo de chegar lá você já vê a transição na paisagem. A Bulgária é um país bastante simples, e relativamente pobre para os padrões europeus. Passou a fazer parte da União Europeia em 2007, mas ainda é vista como uma prima pobre. Da janela do ônibus via muitas casas humildes, alguns carros velhos, e uns descampados agrícolas. Para efeitos comparativos, parece ter mais ou menos o mesmo nível de infraestrutura do Brasil. Ou seja, não é uma zona como a Índia, mas também não se compara à arrumação de países ricos como a Holanda ou a Alemanha. É, como em geral nos países do leste europeu, arrumadinha, mas com calçadas quebradas ali, umas casas abandonadas aqui, e pessoas de jeito em geral modesto, diferente do jeito cheio-de-si que a gente vê nos países ricos.

Em Plovdiv, a rodoviária era modesta. Umas bodegas aqui e ali, barraquinha com cara de ponto de ônibus, e pátio de cimento. O tempo estava friozinho, com o outono já querendo se instalar, e alguns meninos agasalhados corriam lá e cá. Eu, doido pra ir no banheiro (já que os ônibus turcos não têm banheiro) mas sem dinheiro búlgaro pra pagar o da rodoviária, aguardava Romina andando pra lá e pra cá.
O deserto de concreto do lado turco da fronteira, com o shopping center quase vazio logo ali. Hasteadas, a bandeira turca em vermelho à direita, a azul da União Europeia à esquerda, e junto dessa a da Bulgária, em listras horizontais de verde, vermelho e branco.
Rua em Plovdiv. Jeito do Brasil? Na placa a escrita búlgara, que usa o alfabeto cirílico (o mesmo do russo).
Banquinha de frutas na calçada.
Fim de tarde em Plovdiv.

Basicamente não havia Plano B caso Romina não aparecesse. Mas tínhamos contato por celular, e após uns 20 minutos de espera ela deu as caras, com Buágo (o namorado) e Nadia, uma amiga. Eu não estava lá com muita fome, mas fomos comer. A culinária búlgara, eu logo descobriria, é uma culinária de caminhoneiro. Fígado de porco, coração de boi, língua, tripa, sopa de estômago... Haja estômago. Me falaram que eu deveria experimentar tarator, uma sopa fria com iogurte e pepino. Foi a minha felicidade: "Pronto. Vou ficar só com a sopinha mesmo. Não estou com muita fome". "Mas a sopa é pra beber", me retrucaram. "E pra comer?".

A sopa veio naquelas canecas de vidro grosso, de cerveja. Não é terrível, mas, bem, é meio litro de coalhada com sal e pedaços de pepino dentro. Os últimos goles foram literalmente de arrepiar. Já imaginando o que podia ser, pedi um suco de laranja pra rebater. O pessoal ainda pediu churrasco no espeto com cebola, limão e tomate, e eu achei um risoto de ervilha na manteiga, que não estava mau.
Nós tomando sopa de iogurte na caneca de cerveja.
Churrasquinho com cebola, limão e tomate pro pessoal. Minha caneca de sopa terminada. Pauleira.

Mas o lugar era agradável. Tocava músicas americanas dos anos 80 e, por algum motivo, acho que metade de todo o repertório foram músicas de Michael Jackson.

Fora dali já escurecia, mas ainda fomos dar uma andada pelo centro histórico de Plovdiv, muito bonitinho. Ali você deixa as ruas com ar de Brasil e os prédios com ares velhos e comunistas, e passa a uma época histórica da Bulgária dos séculos XVIII e XIX, época do ressurgimento da cultural nacional búlgara, que passou cerca de 500 anos sob domínio do Império Turco Otomano. (Você imagina aí o que são 500 anos de dominação estrangeira? Acho que qualquer sonho de independência passa a ser encarado como utopia. Que bom que alguns acreditaram).
Ruelas no centro histórico de Plovdiv.
Muretas e torres antigas no centro histórico de Plovdiv.
Vista da parte antiga da cidade.
Plovdiv, na verdade, é a cidade mais antiga sendo continuamente habitada de toda a Europa. São de 6000 AC os primeiros vestígios daqui, da antiga Trácia. Em 342 AC foi conquistada por Filipe II da Macedônia (pai de Alexandre), que a nomeou Philippopolis. Os trácios a reconquistaram e adaptadam o nome para Pulpudeva, origem do nome atual. Em seguida ela se tornou uma colônia romana, que devido às colinas os romanos rebatizaram de Trimontium (se fosse em Minas Gerais seria "Trêsmontes", pra fazer companhia a Sete Lagoas e outras).

Por aqui passava a Via Militaris, a estrada romana de quase 1000km que ligava Singidunum (atual Belgrado, capital da Sérvia) a várias outras cidades dos Bálcãs até Bizâncio (que viria a se tornar Constantinopla e depois Istambul). Aqui nos anos 70 acharam durante uma escavação um anfiteatro romano que segue até bem preservado.
Ruínas de anfiteatro romano em Plovdiv.

Passado o período romano, os eslavos colonizaram a região e Plovdiv ficou trocando de mãos entre os búlgaros e os bizantinos, até a região ser conquistada pelos turcos em 1364. Somente em 1878, após mais de 500 anos, os turcos foram expulsos. Tenham em mente que durante esse meio milênio de dominação turco-otomana na região as pessoas não ficavam confinadas em fronteiras com base em sua etnia. Havia gregos, turcos e búlgaros por toda parte, e muitas vezes misturados. Hoje, se você fala com alguém da região, quase sempre há um "Ah, eu sou turca mas meu avô era búlgaro", ou "Minha família é turca mas vivia na Grécia", etc. Só durante as guerras de independência do século XIX é que houve uma migração geral, temendo represálias, e foi cada um pro canto onde estão hoje.

Mas chega de história pois já era de noite, e ainda tínhamos uma jornada de algumas horas pra fazer de carro até Sófia, a capital, onde meu albergue estava reservado.

Cheguei lá, já estava quieto o centro, onde eu ficaria. Num beco de uma praça, meu albergue, naquela porta marrom ali à esquerda, em frente ao sex shop. Era só o começo.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

No palácio do sultão

Entrada para o Palácio Topkapi, de onde governavam os sultões turcos otomanos.

Minha estadia em Istambul estava chegando ao fim. Mas não eu podia partir sem saber mais do sultão, seu harem, e descobrir aqui relíquias bíblicas que eu nem imaginei que ainda existissem (se é que existem mesmo e esses turcos não estão me enrolando).

O último dia da minha estadia em Istambul começou tarde. O show de rock turco no dia anterior foi uma beleza, e eu fiquei impressionado de ver (1) como parece o Brasil e (2) a quantidade de gente na rua mesmo às 3h da manhã, quando estávamos retornando. Parecia carnaval, por mais que fosse só um final de semana comum. Claramente, Istambul é mais segura que as metrópoles brasileiras. E os táxis também são bem mais baratos.

Meu café, já no final da manhã, não teve café. Foi um chá preto com limão (sempre naquele copinho de vidro bom de queimar a mão) e mais umas coisinhas genéricas de patisseria, no Smit Sarayi perto da casa da minha amiga Filiz, onde estávamos. Dali eu faria sozinho o meu caminho para o centro e de lá para Sultanahmet, o distrito onde estão as maiores atrações históricas  o mesmo onde ficam a Hagia Sophia, a Cisterna da Basílica e a Mesquita Azul, retratadas nos posts anteriores. É lá também que fica o Palácio Topkapi, de onde governavam os sultões turcos. (Mas não caia na besteira de achar que consegue ver todas essas atrações em um só dia; o palácio sozinho já toma quase uma tarde).

Uma tarde era o que eu tinha, então almocei por ali mesmo (há vários restaurantes buffet na região, e o preço não é alto demais) e entrei.
Meu café da manhã com Filiz.
Portal de entrada externo para adentrar o Palácio Topkapi,

Diferentemente de outros países onde a monarquia se manteve simbolicamente (ex. Holanda, Reino Unido, Suécia) ou efetivamente (ex. Arábia Saudita, Marrocos, Emirados Árabes), na Turquia ela foi abolida completamente. Após a Primeira Guerra Mundial o império caiu e se formou uma república. Portanto, o Palácio Topkapi hoje é um museu, não mais habitado mas ainda guardando muitas relíquias e tesouros daquela época.

O palácio foi inaugurado em 1465, logo depois da conquista de Constantinopla, e serviu de trono para os sultões turcos até 1856, quando o sultão da época optou por um outro palácio mais ao estilo europeu. Você bastante tempo por jardins até chegar ao palácio propriamente dito, que na verdade é espalhado por vários prédios menores, em vez de ser tudo concentrado numa construção só. Há varandas, água correndo, mirantes, etc.
Áreas abertas no Palácio Topkapi.
Varanda com vista para o Estreito do Bósforo.
O sol nas varandas e jardins.
Jardins do palácio.
Jardins do palácio.
Áreas abertas no Palácio Topkapi, com vista para a cidade.

As saletas pra você entrar são inúmeras dentro desse complexo, embora nem todas elas estejam acessíveis ao público. Os interiores são um banho de arte islâmica, com os azulejos e seus motivos florais (de onde Portugal e, em seguida, nós adquirimos o hábito), caligrafia árabe, pátios internos e cômodos atapetados.
Corredores internos decorados.
Pia no interior decorada com ouro. Paredes todas revistidas com azulejos em motivos florais.
Pátios internos e muitas janelas para manter os cômodos arejados.
Interior atapetado, e mais decoração nas paredes e janelas.

Uma área particularmente interessante é o harem. Lá morava a mãe do sultão. É isso mesmo. O harem não é puteiro, mas sim a residência da família real. O tchan que o difere das residências reais europeias é que havia várias esposas (o islã permite até quatro) e um sem-número de concubinas. São centenas de cômodos, tais como banhos, aposentos individuais, salas coletivas, além de varandas fechadas. Tudo era guardado e administrado pelos famosos eunucos negros, trazidos ainda meninos (e já cortados) da Abissínia e da Núbia (hoje Etiópia e Sudão). Esses escravos eram tradicionalmente castrados por clérigos cristãos coptas aos oito anos, e perdiam tanto os testículos quanto o pênis, que era substituído por um bambu (me dá agonia só de escrever isso).

Esses eunucos negros trazidos a Constantinopla, contudo, podiam se tornar ricos e respeitados. O eunuco chefe, em especial, tinha uma função política ativa dentro do palácio. Era ele que governava o harem, e era um dos assessores principais do sultão. Mantinha uma rede de espiões e estava frequentemente envolvido nas intrigas internas. (Se você que assiste Game of Thrones ou lê As Crônicas de Gelo e Fogo achou parecido com o caso de Varys, o eunuco estrangeiro de Westeros, a semelhança certamente não é mera coincidência).
Reprodução nos aposentos da mãe do sultão.
A famosa sala das frutas, pelas ilustrações nas paredes.
Salão do trono do sultão na área do harem.

Por fim, a parte que mais me impressionou. Há várias salas com exposições de robes chiques, túnicas com ouro, jóias da coroa etc  o habitual de qualquer palácio real que você vá visitar aqui ou na Europa. Aqui, contudo, há uma impressionante coleção de relíquias sagradas bíblicas, tão impressionante que eu não fiquei completamente convencido de que são autênticas. Mas quem sou eu pra julgar. (Bem, alguém que sabe que as pessoas, sobretudo os governos, são mais do que capazes de inventar tais coisas pra aumentar seu poder e influência).

Seja como for, vamos ver o que você acha. Aqui estão em exposição: um dente que Maomé perdeu em batalha no século VII; fios da barba do profeta; uma pegada sua em barro endurecido; armas suas e uma espada de Abu Bakr (um dos companheiros mais próximos de Maomé), e mais algumas outras relíquias especificamente islâmicas. Dessas eu não duvido. Agora continuemos: o cajado de Moisés (sim, aquele do Antigo Testamento, que abriu o Mar Vermelho, recebeu os 10 Mandamentos, etc.); o turbante de José (não o padrasto de Jesus, mas o filho de Jacó, da época dos judeus no Egito); e a espada de Davi, o que lutou contra Golias e se tornou Rei de Israel na Bíblia. Perto dali, um sacerdote lê sentado o Alcorão continuamente, para todos ouvirem. Infelizmente, não é possível tirar fotos dessa seção, então você vai ter que vir pessoalmente aqui a Istambul se quiser vê-las.

Acreditar ou não fica a seu critério. A explicação oficial é que pelos idos de 1500 os turcos otomanos haviam conquistado os vários reinos árabes e assim herdado (ou melhor, tomado) essas relíquias. No entanto, há um grande "buraco" na História, que não diz como os árabes supostamente obtiveram relíquias de milênios antes, de personagens cujos registros históricos são tão escassos, como Moisés ou Davi.
Retrato pintado de Suleiman, o Magnífico, um dos sultões turcos mais importantes. Comandou o apogeu do Império Turco Otomano entre 1520 e 1566, com conquistas no Oriente Médio, norte da África até a Argélia, e da Hungria, chegando mesmo a atacar Viena, na Áustria. Era também poeta, ourives, e falava cinco idiomas. Quebrando a tradição, casou-se com uma concubina cristã, Roxelana, com quem teve o filho herdeiro, Selim II, que o sucederia após a sua morte.

A tarde já estava no fim quando terminei a visita. Dali ainda voltei ao centro, jantei com Filiz, e com a ajuda dela comprei uma passagem de ônibus para a Bulgária para o dia seguinte. Dali até a cidade de Plovdiv, no leste búlgaro, não eram mais do que 6 horas. Eu sairia de manhã e chegaria lá ainda à tarde. Levaria comigo as lembranças desta cidade maravilhosa e de ótimos dias. Pessoas muito parecidas com as do Brasil, e uma nação rica de história, beleza, musicalidade, e  mais do que eu imaginava  gastronomia. Era hora de me despedir deste e zarpar para mais um outro país.

Até a próxima, Istambul!

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Perca-se em Istambul


Perder-se em Istambul é fundamental. E não é difícil. Basta meter-se nas inúmeras e infindáveis ruelas, que vão por aqui e por ali, e onde sempre tem gente. Como eu disse, esta cidade é um pouco como um formigueiro histórico, onde nunca se sabe quando se vai esbarrar numa torre bizantina, numa mesquita turca, ou mesmo em algo mais antigo. De quebra, há os interessantíssimos redutos mais populares, como os bazares, as casas de velharias, e as lojas de doces artesanais.

Um bom lugar pra se perder é Karakoy, um dos distritos mais antigos de Istambul. Entre 1273 e 1453 os italianos genoveses controlavam aqui uma cidadela, Gálata, encravada na cidade. A vizinhança se diversificou após a conquista turca, e passou a albergar uma grande quantidade de judeus fugidos da inquisição espanhola a partir de 1492.

Para chegar aqui, fui à Praça Taksim (centro dos protestos turcos em 2013) e desci todo o movimentadíssimo calçadão Istiklal, cheio de lojas, restaurantes e o que você imaginar. Dali, mais pra o final, qualquer rua lateral serve ao seu propósito de perder-se. Pra melhorar, várias das ruas são íngremes, o que adoça ainda mais a sensação de estar se metendo em algum esconderijo. Vasculhei muitas lojas, comprei livros que achei em inglês sobre a cidade, e achei até igreja cristã e outros brasileiros perdidos.
Centro da Praça Taksim, coração de Istambul e local dos protestos de 2013.
O movimentadíssimo calçadão de Istiklal. Junta ainda mais gente.
Ruelas no bairro de Karakoy.
Ruelas em Karakoy, cheias de lojinhas. Ótimas pra se perder.
A Torre de Gálata, erigida pelos genoveses em 1348.

Dali você pode (se encontrar o caminho) chegar à Ponte de Gálata, que cruza não o Bósforo mas o chamado Chifre de Ouro (Corno de Ouro para os portugueses), um braço de mar que adentra o lado europeu e separa esta área comercial de Karakoy da outra área antigamente mais nobre (Sultanahmet), onde ficam a Hagia Sophia, a Mesquita Azul, e o Palácio Otomano Topkapi. É nesse Chifre de Ouro que ficava a esquadra bizantina.

Atravessada a ponte, você pode pegar um bonde elétrico que te leva aonde quiser. Meu plano era seguir nele até o famoso Grand Bazaar (altamente turístico), e de lá voltar caminhando até o porto, onde pegaria um ferry para reencontrar minha amiga Filiz do lado asiático da cidade, onde jantaríamos.

"Tudo que você encontra no Grand Bazaar você pode encontrar mais barato fora dele", preveniu-me uma outra turca amiga minha, antes de eu viajar. E é verdade, os preços lá são altos e o bazar é altamente turístico. Mas mesmo assim vale a pena dar uma conferida nele com os próprios olhos.
Uma das muitas entradas do Grand Bazaar. Picado de gente. Sempre.
Corredores do Grand Bazaar, sempre com turistas.

Como você deve imaginar, o Grand Bazaar é um enorme mercadão tradicional. Teve início em 1455, dois anos após a conquista da cidade pelos turcos. A princípio vendia têxteis, mas logo passou a acumular mercadorias vindas das várias partes dos Império Turco Otomano e do mundo. Hoje, o prédio continua tradicional, mas os preços em geral são altos e dirigidos ao público turista, que vem aqui em grande número. Pelas lojas você vê: louças, tapetes, roupas, mobílias, jóias, artigos em couro, e mais uma infinidade de coisas. O bazar é inclusive separado por departamentos. Ótimo de se perder entre eles e nunca mais achar a entrada por onde você veio. Entre os artigos mais característicos estão os narguilés (ou shisha), aqueles aparatos típicos árabes e turcos de fumar pela mangueirinha, com um filtro de água.

Mas afora o café e uma sobremesa de arroz meio vagabunda, eu só fiz uma compra. E foi uma compra disputada, com um cidadão que achou de achar que eu era árabe. Era uma loja de tecidos, almofadados, etc. Muito bonita. O vendedor me viu olhar e logo me cumprimentou em árabe (o velho e bom "Salamaleikum"). E falou mais alguma coisa em árabe que eu não entendi (mas que dá pra perceber que não é turco). Como meu árabe é praticamente zero, tive de quebrar o disfarce com um "Hi" bem inglês. Ao longo da próxima meia hora ficamos barganhando preço, uma atividade que pode ser divertida se você estiver de bom humor mas que pode ser irritante se você estiver sem paciência. Certa vez na Índia me disseram que uma barganha só é justa quando as duas partes saem insatisfeitas com o preço. Se for este o caso, a barganha então foi boa. Seja como for, consegui uma bela toalha de mesa.

Diz a lenda que nem sempre foi assim, que até o séc XIX a ética comercial entre os turcos era outra, regida sobretudo pelo islã, que combate a usura, a ganância, e promove uma mentalidade muito mais comunitária que de ganho individual. No entanto, hoje com a ética capitalista vá preparado para negociações bem interesseiras.
Grand Bazaar. Mais de 3.000 lojas em 61 corredores labirínticos que desafiam o seu senso de direção.
Lojas no Grand Bazaar.
Grand Bazaar, paraíso dos sacoleiros (lembrando aos meus leitores sacoleiros que sai mais barato comprar na rua que aqui).

Já eram meados da tarde quando deixei o Grand Bazaar e comecei a fazer o meu caminho de volta ao porto. Até pensei em pegar o bonde de volta, mas estava lotadíssimo (de turistas). Além disso, eu comecei a ver lojas interessantes no caminho e não resisti  sobretudo às lojas de doces. Essas lojas de doces tradicionais na Turquia são bem características. Deles os mais famosos são os Turkish delights (traduzido literalmente como "deleites turcos", mas conhecidos em Portugal por "manjar turco"). São doces bem simples, feitos de goma e açúcar, às vezes com adicionais como nozes, pistache, côco, menta, ou caldo de alguma fruta como uva ou limão.

Já advirto que os industrializados vendidos em caixinhas são enjoativos, doces demais, feitos com xarope de glicose. Mas os feitos nessas lojas podem ser maravilhosos, e viciantes. Foram inventados por um doceiro turco no século XVIII, e no século XIX caíram no gosto da nobreza britânica quando um inglês veio aqui e levou um carregamento, dando o nome de "Turkish delight". Daí espalhou-se pela aristocracia europeia como uma guloseima de luxo. (Você a vê citada, por exemplo, em Narnia: o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, quando a rainha branca oferece o doce ao garoto Edmund no começo do filme).
Cena de Narnia em que a Rainha Branca oferece manjar turco a Edmund.
Loja de doces turcos, normalmente vendidos ao quilo. Os manjares são aqueles quadradinhos coloridos. Esses aqui mais abaixo (sucuk lokum) são feitos com suco de uva e nozes no interior. A textura parece a de um plástico, mas é uma delícia.
Frutas secas e outros doces para além dos Turkish delights.

Nem vi a noite cair. Cheguei ao porto, e Filiz havia me dado as instruções do ferry a pegar para o lado asiático da cidade. O ferry aqui faz parte do transporte público, e há várias linhas. Pra onde é mesmo que eu tinha que ir? Kadikoy. Quase confundo com Karakoy e vou pro lugar errado. Mas perguntando a um e a outro localizei o pier de onde meu ferry sairia. Havia ainda algum tempo a esperar, e ali eu me achei, mesclado aos turcos, circundado por vendedores de peixe assado na grelha, alguns bêbados aqui e ali, e toda sorte de gente pobre. Ao meu lado, um cidadão mantinha alguns coelhos brancos numa caixa de papelão sobre um banquinho de madeira. Depois me explicaram tem a ver com a sorte; você paga ao homem e o coelho mordisca um papelzinho com uma mensagem pra você. Lamentável a situação, tanto dos coelhos quanto do homem.

Meu ferry chegou. Embarco com o povão no que é um chão de madeira e umas "salas" cobertas cheias de cadeiras de plástico: uma no nível principal e outra igual no andar de cima. O cheiro de fumaça do motor do barco se espalha, mas não é o fim do mundo. Uma correntinha fecha a entrada\saída, supostamente para impedir que você caia na água. É horário de retorno do trabalho, então o ferry vai cheio. Fui em pé, como num metrô lotado, segurando em alguma barra de ferro que passava no teto. O chão molhado convidava algum desatento a escorregar. Mas a vista valia a pena: luzes refletidas no mar, a Hagia Sophia à noite e os minaretes iluminados.
O homem e seus coelhos.
Hagia Sophia à noite.
Luzes nos minaretes e nas lojas do cais.

Meia hora depois chegamos ao bairro de Kadikoy, no lado asiático, onde Filiz me esperava. Aqui quase não há turistas também, mas os turcos são tantos que nem haveria espaço mesmo. Caminhamos por umas ruas estreitas, com barracas bem arrumadinhas de frutas, verduras e peixe dos dois lados. Toda sorte de comida. Os balcões dos restaurantes ficavam praticamente na rua. Os barraqueiros e o movimento faziam parecer que era sábado de manhã na feira, só que à noite.

Depois de um pouco circular, achamos um restaurante. Quase não havia lugar vago. Era um buffet, e as opções davam água na boca. Aqui na Turquia os pratos são bonitos, coloridos e chamativos. E ao contrário do que eu imaginei, a vida foi fácil para um vegetariano. A seleção de doces também era invejável, a ponto de você ficar naquele dilema (ou trilema) acerca de que sobremesa pedir. Filiz, no entanto, foi categórica: "A gente pede todos os que você quiser e, se sobrar, sobrou". Como eu disse no post anterior, ela é boa de boca. E, por sorte, não era caro, então pedimos 3 sobremesas pra dividir. Foi outra refeição maravilhosa.
Entre pimentões recheados com arroz temperado no azeite, verduras no creme, e legumes em molhos fortes. Allah!

A sobremesa incluiu o "pudim arca de Noé" (com avelãs, nozes, amêndoas, passas, e basicamente um pouco de tudo, como o nome sugere); uma forma de halva (um cuscuzinho de semolina com amêndoas); e um maravilhoso doce de abóbora. Uma perdição. Ou melhor, três perdições.

Dali ainda iríamos a um show de rock turco no centro. A noite era uma criança, e uma criança nada perdida.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Café da manhã turco às margens do Bósforo

Veja uma versão de melhor visualização deste post no novo site, em:

Passarinho pousa na minha cesta de pão do café da manhã às margens do Estreito do Bósforo.

Hoje o dia prometia. Café da manhã turco às margens do Bósforo, visita ao bazar, lojas de doces, ida ao lado asiático da cidade para jantar, e show de rock turco no centro à noite. Um sábado de turco bon-vivant em Istambul, pelas áreas menos turísticas da cidade. Minha guia foi a amiga da minha amiga: Filiz, que encontrei ao fim daquele dia de turista na cidade (ver post anterior). Perguntei a ela se era a pronúncia correta era liz ou Filíz; ela respondeu que era algo entre um e outro. Ao contrário do português, em muitas línguas simplesmente não existe sílaba tônica, e você tem de pronunciar tudo com a mesma entonação. Vivendo e aprendendo.

Nosso dia começou com um dos melhores cafés da manhã da minha vida. Não só pela comida, mas também pelo ambiente. Estávamos na margem europeia do Estreito do Bósforo, um lugar chave para todos os mil anos da era bizantina e também para a conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453. Hoje, quase seiscentos anos depois, estávamos num calçadão sem sinal de turistas nesta manhã de sábado. Filiz me disse que turistas não sabiam de lugares como esse aonde ela iria me levar, no distrito de Beshiktash, no norte da cidade. Não era tarde, mas o local já estava bem cheio: um restaurante avarandado, bem aberto, com canteiros de flores e bastante gente conversando, todos turcos. Fomos ao segundo piso e, por sorte, achamos uma mesa vaga bem na beirada, com uma bela vista para o calçadão, a água, e a Ásia do outro lado.
Calçadão à beira do lado europeu do Estreiro do Bósforo (do outro lado já é a Ásia). Vista da nossa mesa de café da manhã.

Filiz é boa de boca (estou me referindo ao sentido gastronômico), então solicitamos uma mesa cheia, um café da manhã turco completo. Nem coube na mesa, e parte teve que ficar sobre o parapeito, onde os pardais vieram nos visitar. O café da manhã turco é diferente, cheio de coisas interessantes, e você aprende a gostar. Eu nem precisei de aprendizado, foi amor à primeira vista.

À medida que as coisas iam chegando, íamos falando mal dos cafés da manhã mirrados da maior parte da Europa, normalmente restritos a uma xícara de café e algo doce (tipo pão com geleia). A maioria dos europeus fica arrepiada com a ideia comer algo mais substancioso de manhã. Por sorte, Filiz é do tipo de turca que faz questão de se distinguir dos europeus. Nós tínhamos: pimentões vermelhos cozidos com azeite de oliva, tomates cortados em rodelas, pão fino e chato, queijo branco, azeitonas pretas e verdes com especiarias, ovos mexidos, queijo assado, mostarda adocicada, e creme de nata no mel. (E gente me vem pra cá dizer que sucrilhos é café da manhã?!!). Tudo isso regado a muito chá preto no copinho de vidro bom de queimar a mão.
Nossa mesa (mais detalhes abaixo).
Queijo (parecido coalho) assado.
Nata no mel, pra você passar no pão. Uma maravilha, pura ou com queijo.
Filiz, eu, e nosso felicíssimo café da manhã turco.

Para a vossa surpresa, não conseguimos terminar tudo. Mas sobrou pouco, basicamente da nata no mel e umas duas azeitonas. Os passarinhos nos ajudaram com o pão. Agora era hora de andar bastante para fazer a digestão. Filiz precisou fazer algo em outra parte da cidade, e eu fiquei por minha conta. Nos encontraríamos novamente ao fim do dia. Assim fui caminhando por aquela "orla", vendo os turcos fazendo cooper, tomando sol com o cachorro, ou jogando gamão.
Tiozões turcos jogando gamão. Esse jogo de tabuleiro (que eu conheço de nome mas nem sei como se joga) parecia ser mania nacional entre os turcos.
O pessoal tomando sol na grama e, quiçá, preparando o churrasquinho.
Barraquinha vendendo ostras frescas com limão, além de chá preto (no bule) e refrescos. O cachorro ali do lado procura saber o que é.

Eu não pretendia fazer nada muito turístico hoje, mas você não simplesmente esbarra numa fortaleza de 500 anos e finge que não viu. Entrei. De quebra, deu pra fazer a digestão inteira e ainda queimar umas calorias daquela nata do café da manhã, pois haja escadas. Além da importância histórica disto aqui, você é recompensado com uma bela vista lá de cima.
Fortaleza às margens do Estreito do Bósforo.
Entrada para a fortaleza, de 1452.

Agora, em três curiosidades, a conquista desta cidade (então Constantinopla) pelos turcos.

1) Esta, a Fortaleza de Rumel Hisari, foi erigida pelos turcos já nos finalmentes da guerra contra os bizantinos, que tinham aqui (Constantinopla) a sua capital. O controle dos dois lados do estreito do Bósforo era crucial para impedir a chegada de reforços cristãos pelo mar -- neste caso, vindos do norte, pelo Mar Negro (se você estiver geograficamente perdido, veja o mapa abaixo). Em batalhas anteriores, os bizantinos já haviam usado uma grossa corrente de um lado ao outro para bloquear a passagem de navios inimigos e queimá-los com "fogo grego", aquele coquetel incendiário que continuava a queimar mesmo em contato com a água ou sobre o mar (se você leu As Crônicas de Gelo e Fogo, que originou a série Game of Thrones, e achou parecido com a Batalha do Blackwater, saiba que o autor se inspirou aqui). Há especulações, mas a receita original dos bizantinos se perdeu.
Mapa da região de Istambul, com as fronteiras de hoje.

2) O Império Bizantino já havia decaído muito desde os idos de 1200, e sofrido inclusive com pilhagens dos cruzados cristãos ocidentais em suas passagens por aqui para ir brigar com os árabes na Palestina. À época do cerco da cidade em 1453 os turcos otomanos já haviam conquistado grande parte do antigo território bizantino, tanto na Ásia quanto na Europa (como o que hoje são Sérvia, Bósnia, norte da Grécia e a Bulgária). Havia cristãos nas tropas turcas (ex. cavalaria sérvia) assim como turcos mercenário pagos pelos bizantinos. Então há certa nuance, não é tão preto-e-branco "cristãos contra muçulmanos" como alguns gostam de ver. E nisso daí, uma peça-chave foi um certo engenheiro húngaro chamado Orban. Ele confeccionou um canhão que, segundo ele, "derrubaria até as muralhas da Babilônia". Quis vender para o imperador bizantino, que não tinha mais dinheiro, e ele então vendeu para os turcos. O canhão tinha até nome: Basilica, tinha mais de 8m e lançava balas de meia tonelada. Precisou de 60 bois para trazê-lo a Constantinopla e apontá-lo contra as então impenetráveis Muralhas de Teodósio, a única fachada da cidade não voltada para a água.

3) O cerco de Constantinopla durou 2 meses, comandado pelo Sultão Mehmet II, de apenas 21 anos, contra o último imperador bizantino, Constantino XI Palaiologos. Curiosamente, em maio de 1453, durante o cerco, muita gente não sabe mas aconteceu um eclipse quase total da lua, no qual esta ficou parcialmente coberta pela sombra da Terra -- o que, segundo os astrônomos, pode dar à lua uma tonalidade avermelhada. Pronto. Foi o sinal profético que estava faltando. Ela foi entendida como uma "lua vermelha", uma "lua de sangue", e assim um presságio inédito para a queda também inédita.

A queda de Constantinopla significaria não só o fim de uma era greco-românica, mas também um susto para a Europa, que via cair o grande portão que segurava o avanço dos muçulmanos para o ocidente. Artistas e intelectuais gregos fugiram da cidade e migraram sobretudo para a Itália, o que segundo alguns seria uma das causas do Renascimento. E, nos séculos seguintes, os turcos seguiriam avançando ainda mais a oeste, invadindo as atuais Romênia, Hungria e outros nos idos de 1500 e 1600, chegando até a sitiar Viena duas vezes. As marcas da presença turca por séculos governando os Bálcãs e quase todo o sudeste europeu são indeléveis, e podem ser percebidas na cultura, na arquitetura, na culinária, e inclusive na genética das pessoas nesses países.

A cidade continuaria sendo Constantinopla até 1930, quando foi rebatizada de "Istambul" na formação da República Turca, após a queda do império.

E o meu dia ainda teria muito pela frente. Deixo vocês por ora com as fotos dessa fortaleza turca e das vistas do Bósforo lá de cima.
Vista a partir da Fortaleza Rumelhisari. Ásia do outro lado.
Vista do Estreito do Bósforo.
Alto da fortaleza. Na maior parte dos trechos não há parapeito algum, ou só de um lado. Então se beber, não suba.
Fortaleza à margem do Bósforo.
Casal turco, e a bandeira do país hasteada na torre.