domingo, 28 de junho de 2015

Em Yazd (Irã): Malandragem à iraniana e arquitetura persa no deserto

Yazd, Irã.
Nunca antes havia eu escutado "I love you" três vezes numa mesma corrida de táxi. Muito menos do taxista. Este se chamava Ali (como provavelmente outros 10 milhões de iranianos), e essa deve ter sido a corrida de táxi mais divertida eu que já fiz na vida. Entrecortamos a cidade de Yazd, no interior do Irã, por quilômetros de ruelas e becos a todo vapor, sem pegar uma avenida, com Ali dirigindo com uma única mão no volante, a outra descansando pra o lado de fora da janela, e falando sem parar comigo em persa, e rindo. Não falava uma única frase inteira em inglês exceto aquela. E quanto mais rápido ele dirigia, mais ele ria, daqueles caras que riem quase sozinhos e que fazem você começar a se perguntar se não é doido. Ao menos esse não tentou me enganar.

Bem vindos a Yazd, coração do deserto iraniano, no miolo do país. Aqui neste post mostrarei bela arquitetura islâmica persa perdida neste ermo, e falarei um pouco da malandragem à iraniana que experimentei em primeira mão.

Parada técnica à beira de estrada no caminho entre Shiraz a Yazd, no seco miolo do Irã. 
Moça aguardando a partida do ônibus.
Outro ônibus chegando.
Nos detivemos por uns 20 minutos nessa beira de estrada aí que você vê nas fotos. Um lugar desértico, poeirento, e que faz você lembrar as guerras no Iraque e o que se vê do Oriente Médio na mídia. 

Esse cafundó aí tinha um posto de gasolina vagabundo, uma lojinha vendendo lanches de mercearia em embalagens muito coloridas (salgadinho, refrigerante, etc.), e um par de banheiros que fazia você invocar o nome de Allah antes de entrar. Já a poeira, quando começava a juntar no horizonte e vir na sua direção, fazia você torcer a cara e soltar um palavrão. Lembro quando passou um caminhão e veio um turbilhão de poeira atrás, as mulheres todas usando seus véus para cobrir o rosto e encolhendo-se. Eu, tudo o que pude fazer foi me virar pra trás pra que pelo menos não entrasse no olho. O cabelo fica uma maravilha.

O calor não estava tanto, pois era abril (primavera), mas no verão a sensação térmica pode chegar a gostosos 50 graus. A terra é erma de um jeito que dá pena. E o pior: com a degradação ambiental contínua, tem cada vez menos água, e com a mudança climática global, mais aridez e calor. Estamos caminhando para um inferno à là Mad Max nestas partes do mundo.   

A vista através do vidro fumê do ônibus. Esta paisagem estéril se estende por horas e horas de viagem. E o que você não vê nas imagens de televisão é a imundície de lixo que os motoristas atiram pelas janelas e que fica rolando por esse ermo. Todos aqueles pontos ali de cor diferente da areia são embalagens e outros dejetos jogados da estrada.

Claro, bate também sempre a pergunta: Imagina se o pneu furasse aqui? Mas não tivemos problemas. Os ônibus interurbanos no Irã são, sem ironia, dos melhores que eu já tomei no mundo, senão os melhores. São espaçosos, com tapete no chão, água e lanche inclusos, e poltronas bem largas, pois são apenas três (e não quatro) assentos em cada fileira. Você pode ir todo escarrapachado na cadeira, como eu fui. 

Seis horas depois, chegamos à rodoviária de Yazd, que fica afastada da cidade. Ao chegar você vê toda periferia, e parece que você está chegando na Faixa de Gaza.
Vista da periferia de Yazd. 

Olha que coisa linda. Vocês já devem estar se perguntando: E que raios você foi fazer aí, afinal


Yazd é famosa sobretudo pelo seu centro histórico medieval de ruelas e becos de adobe em cor de areia. No entanto, achei-o morto demais. Não havia viv'alma, nem grandes decorações, nem mercado, nem nada além de paredes e becos quietos. Vi melhor no Marrocos e no Catar. O que realmente me chamou a atenção aqui em Yazd foi a linda arquitetura persa das mesquitas e demais prédios da Idade Moderna (dos idos de 1500-1600, para ser exato), com seus ladrilhos trabalhados, arcos mouriscos e luzes em cor. Foi o que valeu a pena ver após me haver com os espertos daqui. 
Ruelas do centro histórico em Yazd. Vi muito mais interessante no Marrocos.
Pra contrastar com a foto anterior. Esta aqui é uma loja no centro novo de Yazd. Por alguma razão estranha, os iranianos gostam de pôr expressões faciais nos seus manequins.

"Minha família vive aqui há 400 anos. A gente tem todos os registros", disse-nos tranquilamente o jovem taxista que nos levou da rodoviária, quando lhe perguntei se ele era de Yazd. No centro tínhamos um hotel simples reservado (na verdade, é mais tipo uma pousada, mas aqui eles chamam de hotel pra dar mais status, como vocês verão depois).

"Da parte de todo mundo ou só do seu pai?", perguntei eu com a minha sinceridade nordestina característica, que não tem muita cerimônia em perguntar da vida dos outros e que gosta de saber direito do "causo".


"Só do meu pai", respondeu ele. "Da parte da minha mãe a nossa família descende do profeta [Maomé]", disse ele com a mesma tranquilidade, como se fosse a coisa mais corriqueira. Eu fiquei com aquela cara sem saber o que dizer, só tomando cuidado pra não rir. Ele estava sério e sereno. Verdade seja dita, diz a lenda que as pessoas com o sobrenome Sayed descendem de Maomé, mas há milhões deles, e mesmo nos países islâmicos não é todo mundo que realmente leva isso a sério.


"Então você é metade árabe?", perguntou-lhe prontamente a minha amiga turca, perspicaz. 


"É... é.", respondeu ele quase resignado, como quem lida com uma verdade inconveniente. Os iranianos, que são persas, e os árabes não se dão lá muito bem.  


Chegamos ao centro de Yazd, que já não parece tão terrível quanto aquela visão de Gaza. É um centro simples, parecendo mesmo cidade do interior, com lojas despretensiosas e pessoas pra lá e pra cá, como no interior do Brasil. Algumas avenidas bonitas, e muitas mulheres de xador preto, traje conservador. 
 Homem pondo a garotinha na moto pra saírem pela calçada e sem capacete. Numa das avenidas principais do centro.
Comércio no centro de Yazd, e mulheres vestindo o xador.
Lojinha no centro. Como essa havia muitas. Eu tenho dificuldades em ver as mulheres vestidas assim e não imaginar que a ideia por detrás seja negar toda a sua existência pública, como se não estivessem ali, como se quisessem torná-las invisíveis. 
Sapateiro idoso humilde fazendo o seu trabalho sentado na calçada.

Há uma aura geral de simplicidade e despretensão no lugar. No entanto, quando turismo e dinheiro entram em cena, eles acendem logo a malandragem no coração de alguns. Nestes países pobres, mais do que em outros, eu percebo que há uma diferença grande entre a simpatia genuína das pessoas da rua e a malandragem dos que estão acostumados a lidar com turistas, e que gostam de dar uma de espertos.


O taxista descendente de Maomé nos cobrou caro, mas havíamos combinado o preço de antemão, e não havia muita opção naquele ermo de rodoviária. Agora foi a vez do hotel pousada querer nos passar a perna. 


Chegamos ao local bonito que havíamos visto e reservado pela internet, e o recepcionista atrás do balcão catou os nossos nomes no livro de reserva. "Ah não, o de vocês não é aqui não. Vocês vão ficar no outro", disse ele com um sorriso ligeiramente apologético. 


"Não lhe avisaram no e-mail de confirmação não?", perguntou ele tentando se redimir. Não. Mas enfim, deixamos pra lá. O taxista ainda estava ali e nos levou à outra propriedade, muito menos atraente, noutra parte do centro. O taxista se recusou a nos levar a outro hotel, pois conhecia os donos deste e ficaria mal pra ele. Eu entendi, até certo ponto. 

A cobra fumou foi quando, já no outro, uma moça na recepção nos conduziu não a um quarto como havíamos visto nas fotos do site da internet, mas a uma câmara subterrânea com ares de casamata de guerra e que ela chamava de quarto. A minha amiga turca pirou e rodou a baiana, apesar de o baiano ser eu, e nós ali quase fizemos uma segunda revolução iraniana. Khomeini da tumba deve ter sentido o afã. A funcionária engoliu um seco, pediu calma, e disse que esperássemos que ela ia chamar pra o gerente. 


Eu neste ponto preciso pausar para explicar um aspecto importante na cultura social iraniana. Os iranianos, ao contrário dos turcos e dos árabes, não são briguentos. Ao contrário, eles são polidos às vezes até demais
 cerimoniosos, matutos, e por não terem a cultura de dizer as coisas "na cara", podem ser notáveis mentirosos. 

Há um importante conceito persa chamado tarof, que se refere às várias normas de civilidade na sociedade iraniana (dar lugar aos idosos, abrir a porta e deixar passar primeiro aqueles que tem mais autoridade que você, etc.). São as normas de educação daqui. Só que a coisa vai bem mais além que no Brasil, e pode incluir uma série de fingimentos, tipo ofertas que você por educação não deve aceitar. ("Eu pago a conta toda", "Imagina, eu que pago", "Por favor, eu insisto".) A coisa vai longe. Diz a lenda que, se você for convidado à casa de um iraniano e elogiar muito uma peça de decoração, a educação mandará o dono oferecer aquilo a você, e o mesmo tarof requer que você agradeça a gentileza mas jamais aceite a oferta. E fica esse jogo florido pra lá e pra cá em tudo.

Em certa medida isso agrega um tempero às relações sociais, mas às vezes é demais pro meu gosto. Trabalhei certa vez com um professor iraniano na Holanda e era irritante quando soava ele falso, imodesto ou exagerado. Certa vez ele me apresentou aos seus alunos de mestrado: "Mairon é um pesquisador excepcional, que deu uma brilhante aula aqui no ano passado, escreveu um ex-ce-len-te capítulo pra o nosso livro...", e a rasgação seguia. Os alunos holandeses me olhavam como se eu estivesse prestes a transformar água em vinho. A minha orientadora indiana à época dizia que ele era "açucarado" demais. Nos cobria de elogios, mas não hesitava em manipular as coisas a seu favor pra obter o que queria por detrás daquela pantomima toda.  


Evidente que nem todos os iranianos são manipuladores. Mas aqui é mais ou menos assim que as relações se dão, e nesse jogo sofisticado você precisa saber distinguir gentilezas de pseudo-gentilezas. Ou chuta o pau do diacho da barraca.


Esperamos meia hora pelo tal gerente, eu e a minha amiga, confabulando, vendo como negociaríamos, e avaliando outras opções que tínhamos (basicamente nenhuma além de sair à deriva pela rua com bagagem, quase ao anoitecer, pra ver se acharíamos algo melhor). Depois de um tempo, finalmente apareceu a margarida. Aliás, chamá-lo de margarida é puro tarof, pois ele era um senhor rechonchudo de cabelos brancos e terno preto, com aquele ar de parlamentar safado, tipo os deputados sexagenários que vemos no aeroporto de Brasília. Pôs-se a falar conosco da porta da recepção, que dava para um jardim interno rebaixado onde estávamos. Comecei me identificando, pra ele saber de qual eu estava falando.  


 "Eu sou Mairon."

"Eu sou o gerente." 
(Quase taquei uma pedra no véio)
 "Nós reservamos um quarto para duas pessoas. O que a moça nos mostrou não é o que nós reservamos. Aquilo ali é um dormitório, numa acomodação que não tem absolutamente nada, nem janela. Ou mudamos o quarto, ou mudamos o preço."
 "Ok, ok, não tem problema, disse ele com ar conciliador. Vocês ficam de graça. Pronto. São meus convidados. O importante é vocês ficarem satisfeitos."

Tarof em ação. O véio nos jogou um verde, e a cortesia iraniana nos mandaria rejeitar a possibilidade de ficarmos sem pagar. Só que nós não somos iranianos. 

 "Sério? Então a gente pode ficar as duas noites sem pagar?"
O véio sacou que o tarof não estava funcionando, e resolveu alterar a estratégia. O brilho nos seus olhos sabidos começava a mudar.
 "Na saída vocês pagam a quantia que quiserem, de acordo com a satisfação de vocês." 

Jogo arriscado. Ele poderia facilmente cobrar o preço que havia sido inicialmente combinado por e-mail e argumentar que nós aceitamos ficar no quarto que nos foi fornecido.


 "Ou então nós trocamos vocês de quarto. Pronto. Se não gostaram daquele, eu tenho outro. É tudo novo, recém reformado". E ele nos conduziu a um outro quarto que era idêntico ao anterior.

 "Isso aqui é um dormitório. A gente lhe paga 10 dólares por noite e nada mais", disse eu já perdendo a paciência.
 "Dormitório?", reagiu ele ligeiramente ofendido. "Isto aqui é um ho-tel. O governo nos registrou como ho-tel!"

Porque esse fiscal do governo deve ser da mesma laia que você, me deu vontade de dizer. Ele podia chamar de hotel o quanto quisesse, mas estava longe de ser igual ao mostrado no site, e ele próprio admitiu que esta acomodação era inferior à primeira aonde fomos. 


A negociação continuou, eu o chamei de trapaceiro na frente dos outros hóspedes (devo ter violado todos os princípios da boa-educação iraniana), e no final conseguimos mudar o preço. Ficamos no quarto chinfrim, a casamata de guerra, mas pelo menos saiu barato, um terço do preço original. O que incomoda é ter que ficar a toda hora brigando pra não ser enrolado. 

A casamata subterrânea feita quarto. A única coisa bonita era o tapete. A TV quase deu pipoco quando eu pus na tomada, e o frigobar era de enfeite.

Mas eu falei da bela arquitetura islâmica persa, e vê-la foi o ponto bonito da estadia em Yazd. Visitamos mesquitas e jardins, com seus minaretes em luzes, vitrais coloridos, belos ladrilhos, e até uma cafeteria com fonte e córrego dentro, à maneira dos antigos palácios islâmicos.

Aquela torre é um apanhador de ventos, que batem no alto, entram e ventilam o interior. Nos jardins Dowlat Abad, onde também fica a cafeteria mostrada.
Portas de vitrais persas coloridos... (ainda no jardim)...
... e este é o teto, que deve provocar orgasmos em geômetras e demais matemáticos.
Eu com a "Mesquita da Sexta-Feira" iluminada ao fundo.
A Mesquita da Sexta-Feira de frente. (A sexta é o dia sagrado para os muçulmanos, o dia da congregação, e em muitos casos, como no Irã, o dia de folga na semana, enquanto que o domingo é um dia de trabalho normal).
No interior.

Muitos ladrilhos trabalhados.
O chamado Amir Chakhmagh, um complexo do século XV com mesquita, banhos públicos etc., no centro de Yazd.
Eu na praça principal da cidade.

A princípio deixei Yazd com um gosto amargo na boca, das malandragens com que tive que lidar. Mas, olhando agora e relembrando, acho até que valeu. 

Valeu também por ter visitado sítios estranhos que eu jamais havia visto noutro lugar do mundo, da religião que Zaratustra (Zoroastro) fundou aqui nestas terras há milênios, e praticada ainda hoje. Yazd é o centro do zoroastrismo no Irã. Mas essa conversa fica para a próxima. 




quinta-feira, 11 de junho de 2015

Em Pasárgada e Persépolis: Mergulhando na Pérsia antiga

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Em Pasárgada e Persépolis: Mergulhando na Pérsia antiga

Olhando do alto as ruínas de Persépolis.
"Cá no Irã, quando lhe perguntarem de onde você é, diga que não sabe, porque não é casado ainda. É um ditado aqui. Afinal, a gente sempre vai parar onde a família da mulher está. Veja eu, sou aqui de Shiraz e acabei indo morar em Kashan", disse-me o senhor iraniano idoso que nos acompanhou no passeio. 

Era um senhor simpático, quieto, de seus 70 anos, daqueles que andam no seu próprio passo, com as mãos para trás e olhando tudo. Daqueles que sabem muita coisa e não puxam muita conversa, mas se você começar a conversar com ele, a coisa vai longe. Imaginem comigo. 


Ah! Ele corrigia o guia sempre que necessário, para desespero do mesmo. O nosso guia fazia um tipo Enrique Iglesias versão persa, com cabelo lambido pra cima, anel de bruxo com uma pedra preta para fazer estilo, e aquele jeito descolado "this is wonderful", "that is really beautiful", com uma camiseta roxa mostrando os cabelos do peito. Nos disse que havia passado 15 dias acompanhando um coroa carioca pelo Irã. Eu quis brincar dizendo que isso no Brasil levantaria suspeitas acerca da sexualidade dele, mas fiquei quieto. Sáti, era o nome dele. Legal. Parecia frequentador de Miami Beach, se você o visse e o ouvisse falar, e fiquei surpreso quando ele me disse que jamais havia viajado para fora do Irã.


De Shiraz, cá no sul do Irã, é um passeio curto (vai e volta no mesmo dia) até Persépolis e/ou Pasárgada. Facilmente você acha agências e hotéis que fazem esse passeio. O nosso incluiu ambas, além de um curioso almoço sentado no chão na casa de um músico.

Este grande campo ficava às portas de Persépolis, e dali vinha a estrada que trazia à antiga capital persa.

Persépolis, hoje sítio tombado pela UNESCO, são ruínas fascinantes. A cidade foi erguida no reino de Dario, por volta do ano 515 AC, para ser a capital cerimonial do império dos Aquemênidas.

Seu professor de história talvez tenha lhe ensinado que persas e medos (e daí vem a palavra médico, em referência às práticas de saúde deles) são sinônimos. Só que não. Os persas eram povos do sul do atual Irã, onde ainda hoje existe uma província chamada Fars, onde estamos agora, do seu nome antigo Pars. A Média era um outro reino um pouco mais ao norte, com outro povo, os medos. Foi o rei persa Ciro, o Grande, quem por volta de 550 AC conquistou as terras vizinhas, submeteu os outros povos, e assim fundou a primeira grande dinastia do império persa, os Aquemênidas  em referência a um suposto rei ancestral chamado Aquemenes.

Ciro (Kurosh, em persa) conquistou a Média, a Lídia (na atual Turquia), a Babilônia, expandiu seu império da Índia ao mar mediterrâneo, e proclamou-se Rei dos Quatro Cantos do Mundo (de onde vem a expressão). Em verdade, o hábito de ter uma corte, de haver audiências com o rei, de prostrar-se diante da autoridade, etc., muito desse cerimonial depois adotado pelos europeus, surgiu aqui. Alexandre, o Grande, foi o primeiro a adota-lo, e depois viriam os romanos, as igrejas, os reis medievais, e hoje em dia o que a gente vê na ficção. (Contraste, por exemplo, com o costume de outros povos, como o chinês e o japonês, onde a tradição era diferente e as pessoas jamais sequer viam o imperador).

Ciro fundou Pasárgada, a primeira capital. Seu filho, Cambyses, reinou brevemente e a transferiu para Susa, até que Dario o sucedeu, fundou Persépolis, e expandiu o império até o seu apogeu.
Entrada de Persépolis.
Palácio Apadana, o coração de Persépolis. Eram 72 colunas de mais de 20m sustentando o teto e ornamentando o salão de audiências do Rei Dario, aonde iam encontrar-se com ele e dar-lhe presentes as 23 nações submetidas à sua autoridade. 
Este mural original está em Teerã, no Museu Nacional. Ele mostra uma audiência com Dario no trono.
De volta a Persépolis. Neste mural, as procissões de vários povos, cada qual com seus trajes e oferendas típicas.
Estes, se não me engano, são os armênios levando vinho. Os hindus, por exemplo, são retratados descalços, como é comum entre eles até os dias de hoje. É um exercício interessante de História tentar identificar os vários povos da época. 
Quase tudo foi destruído pelo exército de Alexandre, o Grande, que conquistou Persépolis em 330 AC. No entanto, passar por aqueles portais ainda é uma experiência mágica.

Outro mural recorrente aqui em Persépolis, e na simbologia persa de maneira geral, é o leão mordendo o touro. O touro era símbolo de força, fertilidade, e da lua (daí muitas das deidades antigas dessa parte do mundo terem sido deusas da fertilidade ou divindades com cara de touro, e de os romanos depois consumirem testículo de touro para ter virilidade). Já o leão é o sol, que irradia na primavera e cuja constelação (que já havia sido reconhecida pelos mesopotâmios antes dos persas) aparece brilhante no céu do hemisfério norte durante sua primavera, março a junho. Não é à toa, portanto, que os iranianos até hoje celebram o ano novo (aqui chamado de Nowruz) no dia 21 de março, início da primavera  e gostam de perguntar aos ocidentais "Por que é que vocês celebram no dia 1 de janeiro? Não acontece absolutamente nada pra se dizer que o ano é novo em 1 de janeiro". E eu acho que eles têm certa razão.
Mural do leão atacando o touro. Imagem recorrente na simbologia persa.
O sol, na astrologia, continua sendo o astro símbolo do signo de leão. E, como biólogo e conservacionista, não devo deixar de indicar que o leão era comum na Ásia. Hoje ele quase que só existe na África, e a população de leões asiáticos  que é uma subespécie (Panthera leo persica é restrita a pouco mais de 500 sobreviventes protegidos no oeste da Índia. Uma pena que a expansão desgovernada do homem tenha feito do leão, da Europa à China, algo mais comum da iconografia do que da realidade.

Outra parte de Persépolis tem tumbas de reis persas posteriores (embora ainda da mesma dinastia aquemênida), como Artaxerxes II. Não dá pra entrar, mas você se imagina facinho em algum filme ou jogo estilo Indiana Jones ou Tomb Raider
Entrada para a tumba de Artaxerxes II (reino 404-358 AC).

Saindo dali fomos a uma necrópole maior, chamada Naqsh-e rustam, onde foram enterrados Dario, seu filho Xerxes (cujo nome significa "governante sobre heróis"), e seu filho Artaxerxes, cujos reinados foram consecutivos. Estes, a esta altura, se intitulavam também faraós do Egito, que havia sido conquistado. O império persa no seu apogeu ia da Líbia às Índias, e compreendia  dizem os historiadores  aproximadamente 50 milhões de pessoas, ou 44% da estimada população mundial à época, a maior percentagem jamais alcançada por qualquer governo em toda a história da humanidade. 
Tumbas de Dario, Xerxes e outros antigos reis persas na necrópole Naqsh-e rustam, aqui no sul do Irã. Olhe a miudeza das pessoas em comparação. Ao vivo, como você é capaz de imaginar, é uma visão muito imponente.
Aquele relevo ali no meio foi adicionado mais tarde. Faz referência ao rei persa Shapur I (241-272 DC), já séculos depois, membro da dinastia Sassânida, que combateu os romanos. Shapur derrotou dois imperadores romanos em batalhas na Mesopotâmia. Ajoelhado está Filipe, o árabe, imperador romano derrotado em 244 DC e que pagou aos persas pra ser deixado voltar vivo pra casa. De pé está o imperador Valeriano, que em 260 DC foi feito preso pelas tropas persas do mesmo Shapur.

Shapur II, que viria depois, é até hoje o único rei na História conhecida a ter sido coroado in utero, com a cerimônia quando ele estava ainda na barriga de sua mãe.

Achei muito interessante ver monumentos a esse triunfos não-ocidentais dos quais pouco temos conhecimento.

Ainda ali, antes de seguirmos para almoçar, o guia nos disse que tomaríamos sorvete. Um sorvete típico da região de Shiraz, feito de leite. O mesmo que eu havia tomado no dia anterior, e que tem sabor de puro açúcar. Passe longe desse negócio.
Sorvete de leite da região de Shiraz. A consistência é boa, embora um tanto viscosa, mas tem puro gosto de açúcar.

O almoço foi na casa de um músico, um homem persa bem apessoado, que parecia o povo da História antiga, e que claramente tinha acordo com a agência de turismo para nos receber. Sentamos todos no chão, sobre o tapete, num cômodo simples da sua casa de adobe (para a turma mais nova que acha que adobe é só o programa, adobe é há muito mais tempo o nome dado ao antecedente do tijolo, material de construção feito com barro seco e palha). 
Imagem da antiga cidadela de Bam (ca. 500 AC), noutra parte do Irã. Do que resta hoje, esta é a maior área urbana de adobe da antiguidade

A nossa refeição incluía sopa de frango, pão chato, salada de folhas, arroz, um purê de berinjela com mostarda, iogurte (que aqui no Oriente Médio é quase sempre consumido salgado, com a comida), batatas amassadas com legumes crus, e algumas verduras cozidos. O vegetariano aqui teve que ficar nas folhas com o arroz, verdura e purê. O purê estava bom, embora minhas opções fossem muito limitadas. Falei que era vegetariano e eles ficaram sem entender. Mas o que mais me chamou a atenção foi um dos pratos de arroz, que continha o arroz queimado do fundo da panela, que eles puseram em pedaços crocantes que as pessoas saboreavam com a mão. Doido.
O nosso anfitrião e o nosso almoço.
O arroz do fundo da panela, crocante para quem quiser saborear. Nunca tinha visto isso ser servido.
O nosso anfitrião depois se pôr a cantar e a tocar viola. Minto, não é uma viola, mas um instrumento de cordas da região cujo nome eu esqueci. O som é um pouco diferente, e o canto lembrava aquele monotonal árabe. Pra quem não sabe, os muçulmanos inventaram a maioria dos primeiros instrumentos de corda e foram os que introduziram os violões na Europa, sobretudo em Portugal e Espanha, e de onde depois viria a forte tradição musical violeira da América Latina.
O nosso anfitrião tocando e algumas das meninas turistas, uma alemã e duas francesas.
Bebericando um belo chá digestivo na casa dos outros.
Pátio muito simples no interior da casa de adobe, nesse vilarejo iraniano.

No carro, o senhor iraniano que nos acompanhou resolveu elogiar o meu inglês. "Você fala muito bem. É diferente de muitos outros, como os franceses, por exemplo, que falam um inglês horrível". O mais engraçado foi que as meninas francesas estavam bem atrás de nós quando ele disse isso. Ele ainda não sabia que elas eram francesas. Cinco minutos depois ele iria conversar com elas e descobrir, e se dar conta da gafe. 

E enfim chegamos a Pasárgada, a capital mais antiga, da qual resta pouquíssimo. Em verdade, há basicamente a tumba de Ciro, o Grande, e algumas fundações.

Vim-me embora para Pasárgada, literalmente, pois cá eu sou amigo do rei. Dizia assim Manuel Bandeira, pra quem não sabe a origem da expressão (eu mesmo não sabia). O poema aparece num livro seu chamado Libertinagem, de 1930, em que ele se refere a Pasárgada como essa cidade utópica onde a vida é (ou era) feliz.


Caminhante, eu sou Ciro, quem deu aos persas um império, e fui rei da Ásia
Não repare, portanto, este pouco de terra que cobre o meu corpo. 

Essa acima, dizem, era a inscrição que ficava em sua tumba, e que Alexandre, o Grande, encontrou quando a abriu, em cerca de 330 AC. (Ciro viveu dois séculos antes, e era admirado por Alexandre). A inscrição não existe mais, nem os ouros que daqui foram levados, e Alexandre é basicamente a única fonte de que esta é mesmo a tumba de Ciro. 
A tumba de Ciro, no formato antigo de zigurate. É o que restou de Pasárgada.


Eu e o senhor iraniano.
Vendo do alto o que um dia foi Pasárgada.
Uma base de coluna, o que restou.

O "Cilindro de Ciro", um rolo de argila com inscrições em persa antigo, é tido por muitos como a mais antiga carta de governo ou de direitos. As inscrições datam de quando Ciro conquistou a Babilônia, em 539 AC, e anunciou receber bênçãos do deus babilônio Marduk e libertar os escravos e governar para todos os povos. Seu feito está registrado no Livro de Esdras, dos judeus, que eram um dos povos subjugados na Babilônia. O cilindro foi achado nas ruínas da Babilônia, no atual Iraque, em 1879 pelos ingleses e eles nunca deram ao Irã. Permanece no Museu Britânico. Foi, segundo dizem, o exemplo primeiro de uma declaração de estado plurinacional, para muitos povos e de várias fés. A questão parece nunca deixar de ser atual. Quem sabe tenhamos muito mais dos antigos persas do que imaginamos; muito mais, imaterialmente, do que essa coluna quebrada aí acima.   


quinta-feira, 4 de junho de 2015

As flores de Shiraz e o lado poético da Pérsia

Jardins ao redor da tumba de Hafez, talvez o mais celebrado poeta persa de todos os tempos.

"Boa poesia faz o universo revelar um segredo", dizia Hafez. Este homem do século XIV, nascido e falecido aqui em Shiraz, no sul do Irã, é por muitos considerado o maior poeta da história persa. Os iranianos aprendem seus versos e os usam como provérbios no dia-dia. É uma língua muito poética, em que muito é dito metaforicamente, como ocorre quando você conversa com aqueles idosos cheios de sabedoria popular.

Khwaja Shams-ud-Din Muhammad Hafez-e Shirazi (1325-1390) vai lhe surpreender. (Esses nomes persas e árabes são enormes porque eles agregam qualificativos. Não são nomes de família. É tipo "Juliana, a paulista, filha de Luíza, a conhecedora". Hafez é o nome dado aos que sabem o Alcorão inteiro de cabeça.) Ele escreveu centenas de gazéis, nome dado a curtos poemas líricos na tradição poética islâmica. Mais de 500 estão agregados na sua maior obra, o Diwan. O lirismo da sua época difere radicalmente da abordagem seca e rígida do islamismo de hoje.
Um dia, o sol admitiu:
Sou apenas uma sombra,
quisera poder mostrar-te a infinita incandescência
que lançou minha imagem brilhante.
Quisera poder mostrar-te, quando você se sentir só ou na escuridão,
a surpreendente luz do seu próprio ser.
 Assim Hafez falava da presença de Deus. E assim ele falava da vida:
Uma destas noites, um sábio me falou: "É preciso conheceres o segredo daquele que nos vende o vinho."
E ainda: "Não leves nada a sério. O mundo carrega de enormes fardos aqueles que dobram a cerviz."
Depois, estendeu-me uma taça onde o esplendor do céu se refletia tão vivamente que Zuhra se pôs a dançar:
"Filho, segue o meu conselho; não te inquietes com as noites deste mundo. Guarda as minhas palavras, elas são mais raras do que as pérolas"
"Aceita a vida como aceitas essa taça, de sorriso nos lábios, ainda que o coração esteja a sangrar. Não gemas como um alaúde; esconde as tuas chagas"
"Até o dia em que passares por trás do véu, nada compreenderás. Não podem ouvidos humanos ouvir a palavra do anjo"
"Na casa do amor, não te envaideças das tuas perguntas, nem da resposta."
Vinho, ó Saki, mais vinho: as loucuras de Hafez foram compreendidas pelo Senhor da alegria, Aquele que perdoa, Aquele que esquece...
Desenho posterior, do século XVIII, do que era imaginado de Hafez à sua época.

Diferente, não? Creio que evoca até um ar meio boêmio, mas profundamente sincero. Se a boemia clássica ocidental é muito aquilo de curtir a vida e aproveitar o momento, essa do Islã medieval tem um pano de fundo espiritual, ancorado na crença firme num Deus todo-poderoso. É curioso notar metáforas de vinho e dança, coisas que hoje nem de longe associamos ao Islã. 

Hafez era adepto do Sufismo, uma vertente mística do Islã que aponta para a experiência direta com Deus, através do contato com a natureza, com os outros, e dos desafios da vida. É o extremo oposto do Wahabismo, a atual corrente dominante patrocinada pela Arábia Saudita, que estamos acostumados a ver nos tempos de hoje. O teólogo árabe al-Wahhab (1703-1792) foi um influente radical que via qualquer desvio de sua interpretação literal do Alcorão e da lei islâmica como uma heresia imperdoável. Começou então  e continua até hoje  um matrimônio entre dirigentes sauditas ricos e essa visão tacanha, ao pé da letra do Islã, que não permite que mulher dirija carro (na Arábia Saudita), que se cubram de preto para quase negarem suas existências públicas, etc. Ao meu ver, é como foi o "Cristianismo" da Europa, usado para manipular e coagir as massas, por uma Igreja associada à monarquia  como fazem hoje os reis sauditas sentados em suas reservas de petróleo enquanto o povo é deixado pobre e no obscurantismo.

Mas, na Idade Média, o mundo islâmico era muito mais desenvolvido e estava muito à frente da Europa. Avançados tanto nas ideias (matemática, medicina, astronomia, fundaram as primeiras universidades, etc.) quanto em tecnologias (instrumentos de navegação que depois seriam passados aos portugueses, cultivos agrícolas como o açúcar, o café e os cítricos, fabricação de vidro, perfumes etc.). Por exemplo, foi um certo persa chamado al-Khwarizmi (780-850 DC) que em grande medida desenvolveu a matemática dos algarismos que hoje conhecemos, a álgebra (al-jabr), e a ideia dos algoritmos, hoje muito usados muito na computação.

Aí eu acho engraçado a historiografia convencional eurocêntrica retratar a Idade Média como um período atrasado, de "trevas", como se o mundo fosse só a Europa, e depois falar do esplendor europeu do Renascimento, das revoluções científica e industrial  tudo financiado pela rapinagem do ouro e prata das Américas  como se fossem epifanias repentinas de Galileu, Newton, Copérnico e outros, e como se eles jamais tivessem se baseado em avanços anteriores desenvolvidos por não-europeus. É como se tivéssemos dado um pulo do gato, da Grécia Antiga para a Europa moderna, sem ninguém entre uma coisa e outra, e como se o desenvolvimento do conhecimento humano fosse uma atribuição exclusivamente europeia.

Enfim, é importante reconhecer os feitos dos outros povos. Adiantemos agora a fita. Alguns séculos depois, cá estou eu em Shiraz, visitando a tumba de Hafez e vendo o estado atual do Irã.
Esse iraniano aí de mochila é brasileiro.
Carro nas ruelas, meninos morenos vestidos em suéteres de mangas compridas e calças compridas (ainda que não fizesse frio), como é hábito aqui no Oriente Médio, chutando uma bola pela rua. Um tio que vinha de moto na direção contrária a nós, espremido entre o carro velho do taxista e a parede da ruela, nos sorri com seus três dentes que existiam só do lado direito da boca, como que pedindo desculpa. Mais à frente, um tio moreno escuro alto com cabelo liso de índio e o maior nariz de batata que eu já vi na vida fumava um cigarro do canto da boca e, atento, nos olhava passar. Estamos nos becos da cidade antiga de Shiraz, onde me hospedei.
Por estas ruelas trafegamos de carro.
Não vou mentir e dizer que é um centro histórico bonito e romântico  não é. É um centro histórico degradado, apertado, feio e pobre, com pouca gente a ser vista e motoristas loucos, ainda que muito hábeis, a trafegar. As belezas de Shiraz não estão no centro histórico.
Falando em habilidade, eu desafio muitos motoristas aí a conseguirem estacionar assim tão rente à parede.

Shiraz é uma cidade de médio porte, de cerca de 1.5 milhão de habitantes (dos 78 milhões do Irã), mas que concentra muita história e beleza. Pra começar, a poucos quilômetros daqui estão as ruínas das lendárias Pasárgada e Persépolis, capitais da Pérsia antiga em diferentes momentos. A própria Shiraz tem mais de 4 mil anos de história, e aqui perto encontraram a mais antiga amostra de vinho do mundo, de 7 mil anos atrás. Os persas já consumiam vinho antes dos gregos. Pouco dessa antiguidade restou, devido às muitas guerras ao longo dos séculos. O que permanece, todavia, é uma Shiraz notável por suas flores (sem mentira: desci do táxi e, ainda que não houvesse flores ali de junto, senti imediatamente o aroma de jasmim no ar, trazidos dos jardins, algo que jamais tinha me acontecido em cidade alguma), pela poesia e pelo vinho.

O vinho, no entanto, você aqui só vai achar se for no contrabando. Em todo o Irã a circulação de álcool é proibida por lei, já que o seu consumo é vetado pelo Islã. O Islã, contudo, agregou outras belezas à cidade, como o magnífico santuário Shah Cheragh e a mesquita Nasir al-Mulk, ambos deslumbrantes. Comecemos pela tumba de Hafez, que fomos visitar já que no dia em que chegamos, após um breve bordejo pelo centro.
Terminal de ônibus no centro de Shiraz. "Cadê o terminal?". Tolinho, acostumado com muito conforto tipo teto e lugar pra sentar. O terminal aqui é aquela área ali onde os ônibus estão parados, e só.
Naquela moto ali iam três adultos e a criança. Claro que ninguém com capacete. Visões corriqueiras aqui.

Tomamos transporte público para ir ter um lero com Hafez na sua tumba. Haviam-nos informado o número do ônibus, e enchi-me de orgulho quando consegui ler os numerais persas (ver o post anterior) escritos em tinta branca na lataria. Os ônibus aqui são tomáveis, ainda que precários como no interior do Brasil. Mas não há nem catraca e nem a figura do cobrador. Você paga ao motorista antes de descer. 

Só há um detalhe: aqui há uma divisória na metade do ônibus, homens entram pela porta da frente e vão na frente, mulheres entram pela porta do meio e vão atrás. A minha amiga, naturalmente, sem sabermos, entrou pela frente comigo. Dentro é que notamos. É tipo ônibus no interior do Brasil, em que quando você passa todo mundo olha pra você sem cerimônia. Perguntamos a alguém se daria problema, e um homem que falava inglês nos disse que pra nós estrangeiros, não. Pra mim, o mais estranho foi ver famílias entrarem, o pai ficar na frente, a mãe ir pro fundo, e a criança pequena ficar com um deles e meio sem entender porque um foi pra um lado e outro pro outro. Algumas no fundo estavam obviamente olhando e comentando que a minha amiga havia ido na frente, com os homens, e de outras vezes ela preferiu ir no fundo com as demais mulheres, creio que pra ficar mais à vontade. É estranho. 

O ônibus custa 2.000 riais (a moeda iraniana), 20 centavos de real. Só que eu me esqueci de pagar. Desci, fui embora e saí caminhando, e foi engraçado o ônibus me alcançar depois na rua e o motorista de lá me gritar atrás do honroso pagamento. Mas ele estava tranquilo, eu fiz aquela cara de "Ô! É mesmo!" e os outros homens deram risada.
Diante da tumba de Hafez, ali atrás. Os muçulmanos, ainda mais aqui no Irã, adoram fazer de tumbas monumentos a visitar. Esta aqui está circundada de belos jardins, espaços agradáveis, lojinha, restaurante, etc. Havia turistas, mas a maior parte das pessoas eram famílias de iranianos que vieram passear.
A criançada brincando na tumba de Hafez. Acho que ele não ligaria.
Pessoal conversando.
Belos jardins e colunatas ao redor.
Como havia ali um restaurante, aproveitamos para jantar. O prato foi sopa, algo onipresente aqui no Irã. Curiosamente, embora vegetarianismo seja incomum aqui, as sopas sempre eram todas vegetarianas, para o meu deleite. Temperos, feijão, folhas levemente acres, iogurte às vezes. De sobremesa, sorvete de baunilha, que não estava mau. O troco veio parte em dinheiro, parte em chiclete de banana, tipo em mercearia de antigamente.
Eu nem chupei o chiclete. A minha amiga se apropriou. E olha aí a conta. Tem que aprender a ler pra não ser enganado. Nunca antes havia eu sentido tão "na cara" a importância da alfabetização.
As sopas, pra quem ficou curioso.

Vamos aos demais monumentos da cidade. Nós começamos o dia seguinte com a Fortaleza de Karim Khan, rei que em 1762 fez de Shiraz a capital do Irã. Shiraz foi a capital imediatamente antes de Teerã. Esse rei também construiu os bazares cobertos que existem até hoje. Seus herdeiros, contudo, foram destronados depois pela Dinastia Qajar, que em 1796 mudou a capital para Teerã.
Fortaleza de Karim Khan, do século XVIII, no centro mais novo de Shiraz, em meio a ruas amplas e jardins.
Os jardins ao redor.
O interior da fortaleza. É simples, e segue o padrão geral aqui no Irã (e, até certo ponto, dos países árabes também), de ter fontes de água e jardins de laranjeiras que aromatizam o ambiente.
Num dos muitos corredores do bazar coberto de Shiraz.
Casa de especiarias e temperos.

O difícil, como de outras vezes aqui no Irã, foi achar um lugar onde comer. Você esperaria que esse bazar fosse cheio de bodegas onde se fazer uma refeição, mas não. Não sei por que. Acabamos por comer num dos pouquíssimos restaurantes que achamos, mas um arroz maravilhoso, com berinjelas e tomates no caldo temperado. Os iranianos dizem que o arroz deles é mais saboroso porque, além de serem variedades distintas das que comemos no Ocidente, eles aqui cultivam por detrás das colinas, com o vento assim e a chuva assado etc etc... aí entra o charme iraniano aumentando a explicação. Só sei que é gostoso.

Dali procuramos visitar a famosa Mesquita Nasir al-Mulk, cheia de vitrais coloridos. Só que nos perdemos no caminho. O jeito foi começar a pedir informação. Imagine aí minha cara de persa tentando pronunciar Nasir al-Mulk sem sotaque quando eu perguntava. Logo perguntavam de onde eu era, com uma cara curiosa. Quando eu dizia Brasil, aí era uma festa. Só uma vez é que eu me passei por turco numa mesquita.

Teve um vendedor na rua que foi tão efusivo quando soube que eu era brasileiro que ele ficou vermelho de alegria, como a quem faltavam palavras (em inglês) para expressar, e puxou os dois indicadores das mãos um contra o outro como se fossem ganchos, pra dizer que Brasil e Irã "são assim ó". Cara animadíssimo. 

(Lembrai-vos todo dia que uma nação é o seu povo, e não o governo que está no poder temporariamente. Ser crítico do autoritarismo do Estado iraniano não impede de ter amizade pelo povo do Irã).
Interior da mesquita Nasir al-Mulk. É pequena, mas muito bonita.
Se você vier no início da manhã, poderá ver o sol irromper pelo vidro e jorrar colorido sobre o tapete.

O rapaz efusivo ainda nos deu uma dica: visitar a mansão e jardins de Naranjestan, ali perto. Altamente recomendado. Quando visitamos havia uma turma de meninos da escola primária, então foi uma fuzarca. A mansão, além de um belo jardim, tem belíssimos interiores laqueados em decoração tradicional persa.
Jardins da Mansão Naranjestan, em Shiraz.
Interiores belamente decorados.
A meninada correndo atrás da foto.
Esses meninos, num dado momento, estavam todos tomando um sorvete branco, que me apeteceu. Fiquei intrigado e resolvi procurar.

Descobri a barraca onde eles haviam conseguido o sorvete e fui comprar um pra mim. Não havia porções exatas (1 bola, 2 bolas), era um pratinho. Comprei. No maior espírito de menino, reclamei que no deles o cara botou mais. Ele, resignado, concordou e adicionou mais sorvete ao meu pote.

Arrependi-me. Não me lembro da última vez que tomei um sorvete tão ruim. O negócio pegajoso era açúcar puro. Dizem que é de leite. Sorvete tradicional de Shiraz. Boa bucha.
O foco da foto está na mansão porque esse sorvete não merece.
Na saída, como que pra me embrulhar ainda mais o estômago, passamos por açougues que tinham cabeças de camelo expostas à porta. Sério. Quiçá para avisar que havia carne fresca. Achei tão repugnante que nem foto tirei.

Vamos agora completar Shiraz com o que de mais bonito vi na cidade: o santuário Shah Cheragh. Lá ficam as tumbas de dois santos do Islã (eu falei, eles aqui gostam de visitar tumba), mas verdade seja dita, não há nada de mórbido no local. Trata-se de um grande espaço, murado, com um largo pátio interno de chafarizes e laranjeiras exalando aroma, circundado de belíssima arquitetura. 

Aqui as mulheres precisam agregar mais uma camada de roupa, um xador (manto que cobre o corpo e expõe só o rosto), que eles emprestam à entrada (a minha amiga reclamou que o que deram a ela estava sem lavar). O lugar fica aberto 24h e é lindo de visitar tanto de dia quanto de noite, com as luzes acesas. Do alto, alto-falantes lançam a cantoria de alguém recitando versos sagrados do Alcorão em certos momentos do dia. É um espaço muito agradável. 

Não deu pra tirar foto (pois era proibido), mas os interiores são revestidos de pequenos  espelhos que refletem a luz verde das lâmpadas. O chão é todo coberto de tapete. Mulheres pra um lado, homens pro outro. Aqui e ali, vi homens acomodados no chão estudando livros religiosos ou orando. Pareceu um "centro do saber" (islâmico, é óbvio), ou algo do tipo. E ali, por detrás de grades, as grandes tumbas cerradas a vidro, como mausoléus onde as pessoas encostavam a cabeça e beijavam em oração. Pra o lado de dentro do cercadinho você podia enfiar dinheiro, como que em doação para o santo. Após orarem, vi as pessoas habitualmente caminharem de costas para trás, como que para não dar as costas ao mausoléu. Lugar esplendoroso, dos mais bonitos que vi no Irã.
Shah Cheragh. O aroma das flores de laranjeira vai longe.



Numa noite dessas, terminamos indo tomar chocolate quente numa barraquinha de um casal iraniano jovem encantado por café, após visitar os Jardins Eram, dos mais belos da cidade. Deixo vocês por ora com as fotos de lá.  
Jardins Eram, em Shiraz.



No próximo post, a ida às ruínas de Persépolis e Pasárgada, um mergulho na Pérsia antiga.