sábado, 27 de abril de 2013

Os segredos de Nara (e de como fazer brigadeiro de chá verde)

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Se estiver interessado(a) em Nara, veja Nara, a primeira capital e o maior Buda do Japão

Se estiver interessado(a) nos brigadeiros de chá verde, veja Uma receita nipo-brasileira: Como fazer brigadeiro de chá verde

Nara é uma cidade bastante budista, marcada por gazelas que circulam livres, e de acordo com o Google Earth é também o lugar mais distante (do meu ponto de partida, Feira de Santana) onde já fui. Mais distante que Nara e o Japão só quando eu for a Guam ou às Filipinas  então aguardem que um dia desses eu vou!
Estátua do Buda com uma criança sobre a lótus, em Nara.

Pra dar um pouco de contexto, Nara foi capital do Japão (710-794) antes mesmo de Kyoto. Durante os anos 600 o Japão recebeu forte influência da China: administração centralizada, técnicas e estilos arquitetônicos, e também as filosofias confucionista e budista. A China estava experimentando uma era de ouro, de unidade e de muito desenvolvimento intelectual e organizativo com as dinastias Sui (581-618) e Tang (618-907), e muito disso se filtrou para o Japão. A corte imperial Japonesa assim empreendeu uma série de reformas (as chamadas "Reformas Taika") para consolidar seu poder central, adotando princípios de administração chinesa. Nara foi, assim, a primeira capital do Japão sob o budismo.

A título de curiosidade, vale dizer que a corte japonesa foi além e teve a brilhante ideia de alterar as lendas e mitos populares inserindo-se nelas, construindo uma ideia de que eram herdeiros dos deuses e de que portanto governavam segundo uma forma de "direito divino". Por exemplo, inventaram histórias envolvendo os deuses criadores do Japão nas lendas populares e tesouros imperiais que ainda hoje são guardados como relíquias. É como se os suecos ou os dinamarqueses dissessem que tem guardado o martelo de Thor ou alguma coisa assim.

Para os fãs de Naruto, é dessas lendas que vêm os nomes Amaterasu, Susano'o e Tsukuyomi, os três deuses mais importantes. Nessas lendas a corte inseriu a espada Kusanagi (que dizem guardar até hoje), com a qual Susano'o matou a serpente de oito cabeças, um espelho (que já estava na corte) e que disseram ter sido usado pela deusa Amaterasu, e uma conta de colar em forma de vírgula, que se tornou insígnia imperial. São as três relíquias do império ainda hoje.
Insígnia imperial usada nas edificações. (Qualquer semelhança com o "sharingan" em Naruto não é mera coincidência)

Mas vamos a Nara. Era uma sexta-feira, fria mas ensolarada. Eu deixei o albergue sozinho pela manhã, deixando as minhas coisas em Kyoto, já que é uma viagem curta de não mais que 30-40min. Além disso, meus amigos ainda me cobravam fazer os brigadeiros de chá verde antes de ir embora. Era, portanto, uma viagem de um dia só (até porque Nara é pequena).

Lá, chegando de trem, me dirigi logo ao Parque de Nara, onde estão concentradas as principais atrações  inclusive o grande daibutsu, a maior estátua de Buda do Japão.

À entrada você logo encontra o Kofuku-ji, um templo (budista) estabelecido em 710, e um dos oito patrimônios mundiais reconhecidos pela UNESCO na cidade.
Templo budista Kofuku-ji, em Nara.
Pagode perto do Templo Kofuku-ji, em Nara.

Outro aspecto interessante é que na área do Parque de Nara há uma grande quantidade de gazelas passeando livremente em meio às pessoas, e você pode comprar um biscoito de ração pra alimentá-las (com um grande aviso de "Impróprio para o consumo humano"). No xintoísmo elas são tratadas como mensageiras dos deuses.
Gazelas passeiam pelo Parque de Nara.
Gazelas em meio às pessoas num calçadão de lojas no Parque de Nara.
Gazela olhando minha câmera.
Às vezes os vendedores tem que fechar as lojas, pois elas não são nada tímidas e querem entrar.
Tio japonês com biscoito na mão e que foi cercado.

É engraçado porque elas te seguem mesmo, se perceberem que você está com comida na mão. Quando você menos percebe já tem uma gangue ao seu redor. Mas não fazem nada não, embora haja avisos pra se tomar cuidado.

Como já tenho visto muitos templos ao longo destes dias, optei por ir direto à estátua gigante do Buda e ir andar pelo parque.
Vista dentro do Parque de Nara.
Templo Todai-ji, que abriga a maior estátua de Buda de todo o Japão.

O templo Todai-ji é a maior edificação de madeira do mundo. Veja pelo tamanho minúsculo das pessoas entrando nele na foto. Ele também abriga a maior estátua de Buda do Japão, com 16m. É um ponto de peregrinação para muitos japoneses. Aqui era o centro da religião budista e onde eram feitas as ordenações de monges durante a época em que Nara foi a capital.
Templo Todai-ji visto de frente.
Grande daibutsu de Nara, a maior estátua de Buda do Japão, com 16m.
Daibutsu de Nara visto de outro ângulo. Encará-lo é uma sensação poderosa.
Em frente ao Todai-ji.

Caminhei mais pelo parque, entre árvores e gazelas, de vez em quando avistando alguma máquina automática de bebidas perdida no meio do nada.
Pra quem ainda duvidava que essas máquinas se encontram aqui em QUALQUER lugar no Japão.

No parque havia também muita coisa cor-de-rosa para o Dia de São Valentim (celebrado com o Dia dos Namorados na América do Norte e na Europa). No Japão, contudo, a celebração é diferente. Aqui a mulheres dão presente no Dia de São Valentim, normalmente chocolate, de preferência caseiro, feito pela própria pessoa. Mas sem revolta, garotas: um mês depois, em março, há o chamado Dia Branco, em que os homens devem retribuir, de preferência com presentes com o triplo do valor do chocolate recebido. Paulada, hein? Outra coisa, para os solteiros: aqui não se presenteia somente o(a) namorado(a), mas amigos(as) ou qualquer pessoa do sexo oposto de quem você goste.

Passei um dia agradável na pequena cidade de Nara, mas o caminho de volta a Kyoto me aguardava. Cheguei lá já no fim do dia para a excentricidade culinária dos brigadeiros de chá verde.

Chegando na cozinha coletiva do albergue, as sacolas com os ingredientes e com meu nome escrito nelas já me esperavam. Meus amigos não estavam lá mas não aceitariam desculpas desta vez. O pó de chá verde (que eles chamam de ma-cha) eu já havia comprado, então era hora de pôr a mão na massa. Comecei, e depois eles chegaram ainda a tempo de ver a confecção.

Ingredientes: 2 colheres de manteiga, 1 lata de leite condensado (ou, se você estiver no Japão como eu, uns 3 tubos), 4 colheres de pó de chá verde.


Sacolas marcadas com meu nome na muvuca da cozinha coletiva do albergue.
Tubos de leite condensado e manteiga ali no pacotinho comprido.
O ingrediente principal: ma-cha, pó de chá verde.
Depois de derreter a manteiga na panela, adicione o leite condensado e depois misture o pó.
Vá mexendo até ganhar consistência. Pare quando começar a desgrudar da panela.
Não há chocolate granulado, então guarde um pouco do pó verde para rolar as bolinhas nele e dar mais sabor.

Voilà! Receita simples e fácil, se você achar o pó (que deve ser achável em lojas de comidas japonesas). O sabor? Hmmm... Tem o gosto doce do leite condensado, mais aquele sabor forte concentrado de chá verde com o amarguinho no final. Distribuímos na cozinha do albergue dizendo que era um doce típico japonês, e as pessoas caíram. Os ocidentais faziam aquela cara de "Hm, diferente esse gosto; é, se come, mas não gostei muito não", mas diziam que tinham achado "interessante". Já os japoneses, que obviamente sabiam que aquilo não era doce típico coisíssima nenhuma, adoraram. Acho que estão mais habituados ao sabor do chá verde. Disseram que eu não me espantasse se na próxima vez que vier ao Japão encontrasse esse doce como mania nacional, sendo produzido em escala industrial.

Dada a aprovação, levamos alguns para a família de uma japonesa amiga minha e do letão. Iríamos para a casa dela no dia seguinte, em Osaka, convidados para um jantar de família. Me despediria portanto de Kyoto. A metrópole de Osaka (segunda maior cidade do Japão depois de Tóquio) era o meu próximo destino.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Bem zen pelos jardins de Kyoto - Parte 2

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Kyoto, Japão (Parte 2): Os Jardins de Rocha Zen

Naquela manhã tivemos um desjejum inusitado: sorvete de limão. Alexandra de l'amor tinha uma receita especial a experimentar, e na noite em que chegamos dos templos nos pusemos a fazer. Havíamos passado no supermercado, e achamos limão e leite condensado em meio a algumas coisas não-identificadas e a outras identificadas mas inesperadas, tal como pão de queijo. A preparação na cozinha do albergue à noite foi uma festa, com muitos tubos usados de leite condensado (que aqui é vendido como se fosse pasta de dente), e a cara de choque do povo no outro dia de manhã: "Vocês estão tomando sorvete como café da manhã???".
Pão de queijo congelado no Japão.

Coisas de férias. Logo o choque se transformou em inveja e todos os que experimentaram o nosso sorvete adoraram. De bucho cheio, zarpamos desta vez para o lado oeste de Kyoto, em direção ao Pavilhão de Ouro (Kinkaku-ji), que dizem ser um verdadeiro cartão postal.

E é. O Pavilhão de Ouro fica cercado de jardins e por um lago, e tem estado ali desde 1400 e pouco. Era originalmente a mansão de um xogum, Yoshimitsu Ashikaga, que deixou em seu testamento que a casa fosse transformada em templo após a sua morte. É desde 1994 patrimônio mundial da humanidade  assim como nada menos que outros 16 sítios em Kyoto, uma das cidades mais "tombadas" do mundo.
Kinkaku-ji, ou Pavilhão de Ouro, em Kyoto.



O templo é controlado pela corrente Rinzai do budismo zen, tida como a mais rígida do Japão. Enquanto que outras se focam na meditação livre, em que você tenta ficar ciente da sua mente e do passar dos pensamentos, a Rinzai usa bastante os koan (questões ou formulações aparentemente ilógicas sobre os quais você reflete) e samu, que não é a ambulância mas sim o nome dado às tarefas físicas ou cotidianas realizadas com o propósito de evitar as divagações da mente e trazê-la para a situação presente (quantas vezes já não vimos em filme os aprendizes limpando as escadarias do templo ou fazendo coisas do tipo?).

Uma das melhores expressões desse tipo de reflexão zen são os chamados "jardins de rochas", onde normalmente não há nenhuma planta, só rochas. A ideia também não é estar no jardim mas sim observá-lo, pois a disposição das rochas é feita cuidadosamente, representando alguma paisagem real ou metafórica. Por exemplo, esse abaixo, no templo Daisen-in, representa a passagem pelo rio da vida.


Já este outro, no templo Ryoan-Ji, o artista não se deu ao trabalho de explicar, e até hoje as interpretações variam. Há quem diga que são cumes de montanhas através das nuvens no céu, mas aí fica aberto a interpretação.

Quando fomos nesse Ryoan-Ji havia uma turma de escola visitando também. A meninada olhando o jardim de rochas com aquelas caras perdidas de "É pra eu achar o que disso?".

Dali seguimos para o bosque de bambu de Arashiyama  de algo zen sem plantas para algo zen com muitas plantas. Desde que assisti a O Tigre o Dragão fiquei fã dessas florestas de bambu asiáticas. Arashiyama não é exatamente uma floresta, é bem menor, mas ainda assim dá aquela sensação. A sensação, se eu ousar descrevê-la, é de paz e pequenez. Paz porque você sente aquela tranquilidade enquanto ouve só o farfalhar causado pelo vento nas plantas. Pequenez porque você se percebe tão pequeno cercado por aqueles bambus enormes, deixando claro que o bosque é muito maior que você.
Bosque de bambu de Arashiyama, Kyoto.

A vontade era de ficar ali por horas, mas a tarde estava caindo eu ainda queria ter tempo para visitar o Fushimi Inari, o templo xintoísta dos mil portais, tido como um dos mais interessantes de Kyoto. Acabou, no entanto, que a gente teve aquela brilhante ideia de "pegar um atalho" na saída do bosque, e aí já viu. Rodamos perdidos por mais de 1 hora nos arredores do bosque, passando por beira de rio, áreas residenciais e até cemitério. Apesar do atraso, valeu a pena se perder, pois passamos por umas áreas bem bonitas.
Parecendo coisa de filme, onde algum samurai honroso foi enterrado ou coisa assim. Mas nenhum de nós soube ler o que está escrito na pedra. 
Rio junto a Kyoto.


Cemitério em Kyoto. Vale lembrar que os japoneses tradicionalmente são cremados, e não enterrados. Então aí normalmente ficam somente as urnas com as cinzas das famílias, sob os cuidados do filho mais velho (o "cabeça" da família).

A visita ao Templo dos Mil Portais ficou para a manhã seguinte, mas não fez mal. Fechou com chave de ouro os passeios pelos templos de Kyoto, pois acabou sendo o meu favorito. Ele aparece no filme Memórias de uma Geisha (2005), quando a personagem principal  ainda jovem  sai correndo por um corredor cheio de portais.

Esse templo, ao contrário dos outros neste post, é xintoísta e não budista. É um templo ao deus Inari, deus do arroz, que como vocês podem imaginar é bastante venerado no Japão. Por toda parte também se pode ver estátuas de raposas (kitsune), que são consideradas amigas e emissárias do deus do arroz, além de guardiãs (por isso frequentemente elas estão com uma chave na boca, que supostamente seria a chave do celeiro).
Entrada principal para o templo xintoísta Fushimi Inari, templo dos mil portais.
Pavilhão principal do templo, com as estátuas de raposas de guarda de um lado e do outro.
Raposa guardiã simbolizada com a chave do celeiro de arroz na boca.
Japoneses orando no templo. Novamente, aquelas fitas penduradas estão amarradas a uns guizos grandes em cima, que fazem barulho quando você mexe. Ali é pra chamar a atenção dos espíritos à sua prece. Ou você faz isso ou bate duas palmas. Frequentemente, as pessoas fazem ambos.

Os primeiros altares foram construídos no ano 711. Já o pavilhão principal é mais novo, de 1499. (Não é à toa que os europeus e asiáticos riem quando a gente aqui das Américas fala em algo "antigo" que é do século XIX, ou algo recente assim).

Este templo, na verdade, é toda uma colina, com esses pavilhões principais na base e caminhos que seriam de trilha pela colina, mas que são verdadeiros corredores recobertos de portais. A sensação é interessante, e quanto mais longe você vai, menos pessoas tem. Como a colina é recoberta de floresta, dizem que há raposas de verdade e mais fauna, mas é difícil de ver.
Pelos corredores de mil portais do Fushimi Inari. Na verdade, há milhares desses portais.
Se você estiver a se perguntar, esses portais são feitos de madeira.
Visão de dentro do corredor.
E assim vai subindo a colina. Você levará horas pra circular por tudo.

Não cobri cada metro quadrado das trilhas, mas circulei o bastante para curtir a caminhada por entre os portais e ver alguns dos altares mais simples que ficam mais ao alto, em meio à mata. A sensação em alguns pontos é a de estar num templo no meio da floresta, o que eu pessoalmente acho bem interessante. Não fiz a trilha inteira porque já era de manhã, e eu estava a caminho de Nara, outra cidade histórica próxima e que merece ser visitada.

Mas eu continuava instalado em Kyoto. Nara é só uma viagem de 40 minutos. E nesse último dia os amigos estavam dispostos a me fazer de mestre cuca. "Você gostou do sorvete, agora é a sua vez", disse uma matuta Alexandra. Eu faço aquele sorriso sem graça de quem está com preguiça de ir pra a cozinha. "Eu lembro que você fazia aquelas bolinhas de chocolate, que eram muito boas. Você bem que podia fazer", interpleou o letão, que já morou comigo um ano no Canadá e já tinha experimentado meus brigadeiros. Pronto, o cerco estava se fechando. Ainda tentei me esquivar em vão dizendo que eu não sabia onde eles tinham comprado leite condensado, e que ia ser difícil achar chocolate em pó, que não é assim tão comum no Japão. Foi aí que eu tomei o xeque-mate e que o letão veio com a ideia principal: "E se a gente usar pó de chá verde em vez de chocolate?? A gente compra os ingredientes e você faz". Pronto, não tinha mais pra onde correr. Tive ao menos a decência de repartir os custos e arcar com a compra do pó de chá verde, mas o destino estava traçado e a gororoba que estava por vir.

No dia seguinte, esse em que visitei o Fushimi Inari pela manhã, segui para Nara e voltaria à noite para a preparação desses brigadeiros à japonesa.
Tenryu-ji, templo do dragão celeste junto do bosque de Arashiyama.

sábado, 20 de abril de 2013

Bem zen pelos jardins de Kyoto

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Kyoto, Japão (Parte 1): Jardins zen, o Caminho do Filósofo, e o Pavilhão de Prata (Ginkaku-ji),

Era chegada a hora de finalmente visitar Kyoto. Como capital histórica do Japão, aqui o que mais há a se visitar são templos e mansões antigas (muitas delas também convertidas em templos, em sua maioria ainda na época do Japão medieval). Os elementos dos templos japoneses eu já detalhei neste post específico, em Tóquio. Já aqui em Kyoto o show à parte são os jardins quase sempre presentes nos arredores dos templos, e que fazem um diferencial maravilhoso.

Vamos caminhar por alguns deles, incluindo o Pavilhão de Ouro, o Templo dos Mil Portais, e o Bosque de Bambu de Arashiyama (que faz você se lembrar de O Tigre e o Dragão ou de O Clã das Adagas Voadoras).
Escadaria e portão para o Templo Sho-ren-in, em Kyoto.

Naquela manhã marcante em que eu levantei sem saber se o meu cachorro estava vivo ou condenado a uma injeção letal, a perspectiva era tranquilizar-se. Era uma manhã cinzenta e de chuvisco, bem invernal, e meu amigo letão havia vindo pra Kyoto pra visitar a cidade também. Acertamos de explorar a cidade juntos, e saímos do albergue nos meados da manhã, passando na loja de conveniência próxima para estocarmos uns sushis para o almoço na rua.

Em Kyoto as áreas de interesse estão quase todas à beira das colinas no leste da cidade ou no oeste, com a cidade moderna no meio. Então é preciso escolher qual direção tomar primeiro. Iniciamos nosso passeio com o leste, mais perto, passando pela área das geishas agora deserta, já que era de manhã, e começamos pelo templo por onde passei naquela noite. Lá acabamos por encontrar as que seriam as nossas companheiras de caminhada: Maria José, uma mexicana (portanto favor ler o "José" com sotaque espanhol), e Alexandra de la Mora, uma colombiana que eu passei a chamar de "Alexandra del amor". Estavam no albergue conosco e também procurando o que ver em Kyoto.
Área do templo xintoísta Yasaka, com a vendinha de amuletos já aberta e as colinas enevoadas ao fundo. 
As coisas que a gente às vezes encontra perto de templos no Japão e que fazem lembrar personagens de algum animê, Kung fu Panda, ou alguma coisa assim. Não achei quem me explicasse isso.

Mas antes de seguir visitando templos e jardins era preciso algo: eu, depois do café da manhã, sempre gosto de um cafézinho de verdade. Mas como aqui não tem café de verdade, o jeito era apelar para as maquininhas onipresentes.
Uni-duni-tê...  e aí? Essa era a seção de bebidas quentes da máquina (indicada pela cor vermelha). Escolha difícil. 
Acabei optanto pela "montanha esmeralda" azul, que se revelou ser um "pingado" desses de bar, café com leite, só que manufaturado e com conservantes dentro da lata. Imagina a maravilha.

Pronto, agora eu estava preparado para seguir. Já ali perto estava o templo budista Sho-ren-in, um dos mais belos que visitei.
Entrada para o Templo budista Sho-ren-in.
Interior do Sho-ren-in, com vista para os seus jardins.
Interior do Sho-ren-in. Tatami no chão e portas leves de correr.

Estava frio como o cacete, mas era preciso retirar os sapatos para entrar. O interior todo de tatami, com as paredes e portas feitas do que me pareceu madeira leve e papel. Por toda parte uma arte, e aqui e ali uma imagem do Buda para meditação e prece. Tudo isso com a vista para os jardins do lado de fora. Dá vontade de passar o dia num lugar assim.
Telas no interior do templo.
Imagens e Buda e almofadas para ajoelhar-se ou sentar em prece ou meditação.
Jardins nos arredores do Sho-ren-in.



Esse templo é um dos mais tradicionais de Kyoto. Desde que foi fundado, o sacerdote principal era sempre alguém da família do imperador  pra ninguém achar que isso era exclusividade da Europa, com seus bispos e reais aparentados. Isso só se alterou com a queda do xogunato e o início da Era Meiji (1868), quando o Japão se abriu ao ocidente. Esses sacerdotes, ainda hoje, pertencem à mesma corrente Tendai do budismo que fundou o templo no Monte Kurama, e que também tem um templo importante no Monte Hiei (sim, há um Monte Hiei. Os fãs de YuYu Hakushô podem todos agora fazer aquela cara de "Aaaaah, foi daí que eles pegaram os noooomes").

Antes que pudéssemos rumar pra um próximo, a fome começou a bater. Já era hora de almoço, mas não achamos nenhum restaurante nas redondezas, então resolvemos atacar os sushis estocados, e compramos algo extra numa loja de conveniência por perto (elas estão realmente por TODA parte no Japão). Meu amigo letão comprou um ovo e eu comprei um sorvete revestido de película de arroz.
Ovo cozido já empacotadinho. 
Sorvete revestido de uma película fina feita de arroz, e que ajuda o sorvete a não derreter e ficar pingando. Não sei se era pra comer assim, mas taquei-lhe o pauzinho. No interior, calda de morango. É tão artificial quanto você pode imaginar, mas é gostoso.

De lá seguimos pelo maior torii (portal xintoísta) que eu já vi, e seguimos para um templo que mais parecia a imagem que temos de um Templo Shaolin, daqueles com os grupos de monges treinando arte marcial numa área aberta.
Um enorme torii, portal xintoísta de purificação. O maior que já vi.
Entrada para a área do templo xintoísta Heian Jingu, em Kyoto.
Templo xintoísta Heian Jingu, em Kyoto.


Consegui imaginar direitinho os grupamentos de monges treinando arte marcial ali naquela área atrás.

(Só pra constar: vale informar que o Templo Shaolin fica na China, e que ele é UM templo específico, e não um nome genérico como a gente costuma usar pra "monges shaolin").

Você pode passar um mês em Kyoto e não conseguir ver todos os templos, então é preciso priorizar. Optamos por ver os mais famosos ou que tinham mais jardins, e rumamos pelo chamado Caminho do Filósofo em direção ao Pavilhão de Prata, uma rota que se há de fazer em Kyoto.

O Caminho do Filósofo é um trajeto com um canal e sob a sombra de cerejeiras, que estavam desfolhadas neste inverno mas que certamente formam uma vista e tanto na primavera. Dizem que o filósofo e professor japonês Nishida Kitaro fazia essa rota diariamente para espairar e refletir, tornando famoso o caminho. Ele  passa pela entrada de templos e tem belas vistas para as colinas do leste de Kyoto, culmina na entrada do Pavilhão de Prata.

Descontando-se o fato de que o Pavilhão de Prata (Ginkaku-ji) na verdade não tem nada de prata, é uma área bonita e com belos jardins. Foi fundado em 1480 como uma mansão de aposentadoria da família Ashikaga, mas o dono morreu antes que pudesse completar seu projeto de folhear o telhado a prata, numa tentativa de imitar o seu avô, que décadas antes havia construído  este com sucesso  o Pavilhão de Ouro (Kinkaku-ji), do outro lado de Kyoto.

Se quiserem o nome mais formal deste templo, chama-se oficialmente Templo da Misericórdia Brilhante (Jisho-ji). "Pavilhão de Prata" foi um apelido que ele ganhou depois durante a Era Tokugawa (1600-1868), parece até que de sacanagem.
Caminho do Filósofo, em Kyoto. Essas são cerejeiras, então imagine isso aí na primavera.
Ginkaku-ji, ou Pavilhão de Prata.
Decoração feita à mão na areia à beira do Pavilhão de Prata.
Vista dos jardins no Pavilhão de Prata.

Como já era fim de tarde, e em Kyoto quase todos os templos fecham às 4:30 ou 5:00 horas (portanto, planejem-se), após essa visita nós começamos a fazer o caminho de volta para a cidade, e à procura de algum lugar para jantar. Passamos por botecos e feitinhas, e você que acha que churrasquinho desses de rua só se vende aí no Brasil, saiba que está enganado: os japoneses ADORAM esse churrasquinho de beira de calçada.

Mas como íamos jantar, o pessoal ficou de fora. Só o meu amigo letão é que resolveu experimentar uma espécie de pão recheado com creme de chá verde. Santa mãe.
Churrasquinho em Kyoto. Vai?
Espécie de pão recheado com creme de chá verde. Enjoadíííssimo.

Como eu gosto sempre de partilhar as minhas refeições com vocês, deixem-me dizer que nós achamos um lugar bem tradicional pra jantar, desses com mesas baixinhas para que os clientes se sentem no chão, e com a refeição servida numa caixinha bento, dessa com os vários compartimentos. Eu, já experiente da minha dor nas costas do meu almoço no Monte Kurama, desta vez peguei um lugar de costas para a parede pra poder recostar. Fez toda a diferença -- mas, ainda assim, se você não estiver acostumado, as pernas doem, ou você fica parecendo galinha de primeiro ovo querendo a toda hora mudar de posição.
Jantar em Kyoto. Arroz temperado; molho de soja; ervinhas que eu não sei o nome; tempura de abóbora e de camarão ali em cima (ou seja, no ovo batido); cogumelos; e uma sopinha de macarrão com tofu, algas e outros. Essas estrelinhas cor de rosa parecendo saídas de Super Mario ou de Kirby são na verdade um processado de marisco e peixe (se é que existe de verdade algo de natural aí nesse negócio).
Meu amigo letão, eu, e nossas amigas mexicana (à esquerda) e colombiana (à direita).

Continua...