sábado, 30 de janeiro de 2016

Zoeiras Peruanas: Da malandragem ao cuspe de lhama, e mais

As tias me enrolando. Paguei pra tirar uma foto com um filhote de lhama, e aí estou eu sendo enganado antes de me dar conta  muito depois  de que esse é um filhote de cabra. Quem quiser que caia naquele conto de que malandragem e criatividade só existem no Brasil.

"Somos de Peru, carajo!!", dizia o homem com voz de Velho Barreiro na gravação. Estávamos num tour pelos arredores de Arequipa e, por alguma razão que desconheço, puseram o conversê gravado de um velho da roça no final. O veículo era um daqueles ônibus turísticos abertos onde as pessoas sentam lá no alto, e ao final nos puseram esse monólogo  com som de gravação do Disque Piadas  em que o velho contava um 'causo' e concluía com a assertiva nacionalista.

Antes do velho, tivemos 4 horas de Katy, a nossa guia, uma daquelas pessoas que falam como se estivessem permanentemente sorrindo (tipo Netinho, o cantor de axé do clássico "Oh Miiiillaaa")  e você percebe isso na voz. Some-se àquilo o hábito, estilo professoras do infantil, de pronunciar as palavras sílaba por sílaba para explicar as coisas (A-re-qui-pa!). Ela usava chapéu amplo, luvas finas de ladra, e lembrava uma versão persistentemente alegre de Carmen Sandiego.

Não foi um tour que eu exatamente recomende. (Este é o tour campiña, oferecido em Arequipa pelos seus arredores semi-rurais. Me pareceu bobo e pouco bonito. Afora algumas hortinhas, o entorno de Arequipa é pobre e tão seco que, só de olhar, dá sede.)

O mais memorável no tour foi quase tomar uma cusparada de um parente de lhama. Fomos (naturalmente) a um lojão caro, incluído no tour, para turista. Esse era de alpacas, lhamas, e produtos de lã desses camelídeos dos Andes (veja detalhes deles aqui). Um deles é o guanaco, um selvagem e que quase me acertou gosma na cara.

"Lhama cospe?", perguntaram-me aos montes. A resposta é: Cospe, e cospe longe (ou seja, cospe com força, e tomar aquilo na cara não deve ser nada legal). É uma forma natural entre elas e seus parentes de demonstrar desagrado ou irritação. 

Resolveram mexer com o tal guanaco num corredor estreito, estilo zoológico, entre duas áreas gradeadas onde os animais estavam. Estávamos  eu e o meu grupo de turistas  transitando ali ("Olha como é bonitinho!") e dando ramo de planta para os animais comerem, até que o guanaco se irritou e lançou uma cusparada que, me pareceu, não acertou em ninguém. Só o grupo ficou dividido (entre os que já estavam mais à frente e os que ficaram pra trás), e daí em diante, colega, a sensação era de estar num corredor polonês com um sniper lá em cima esperando liquidar  com um líquido bem gosmento  o primeiro a passar. 

Eu, naturalmente, me encontrava com aqueles que não haviam passado ainda. Foi pura adrenalina. O bicho urrava  ou seja lá qual for o nome do som que guanaco faz  e preparava-se pra lançar outra dose quando uma mulher se atreveu a passar gritando e correndo, com as mãos na cabeça como se fosse proteger-se de alguma coisa caindo do céu. O cuspe varou o alto e foi parar na área do lado oposto. Foi sorte as lhamas não terem revidado e iniciado uma guerra, ou estaríamos ferrados.   

De repente, todos muniram-se daquele sentimento de "É agora ou nunca!" e atravessamos em grupo. Algum instinto primevo de defesa em manada deve ter entrado em ação aqui, e passamos ilesos. 

Boa diversão quando for visitar as lojas de lã de alpaca.
O meu amigo guanaco, antes de cuspe.

O Peru é uma zoação tão grande quanto o Brasil, caso você tivesse alguma dúvida. Nas ruas da própria Arequipa, naquele mesmo dia, eu encontraria a seguinte "briga" do vídeo abaixo, proporcionada por uma casa de celulares seduzindo as pessoas a trocaram os seus aparelhos analógicos por smartphones.

(E caso você seja daqueles que dizem que "mulher bonita só no Brasil", verá também que não é bem assim.)

Ali, saindo de Arequipa, me aguardava outra linda viagem de ônibus de 6 horas até a cidade de Puno (ver Emoções de ônibus no interior do Peru). De lá uma viagem de trem me aguardava até Cusco, a capital histórica dos incas, no alto das montanhas, a 3.400m de altitude.
Uma casa de frango assado em Arequipa. Será que esses renascem das cinzas?

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Guia básico para comprar roupas de lã de alpaca nos Andes

Veja uma versão de melhor visualização deste post no novo site, em:

A vontade que dá é a de levar essas lhamas pra criar no quintal de casa, mas não dá.

Por onde quer que vá na Bolívia, no Peru ou no Equador, você estará rodeado de vendedores e ofertas de produtos supostamente feitos de lã de lhama ou de alpaca. Ou melhor ainda, de "alpaca bebê", que é como chamam a lã  mais fina  da primeira vez que uma alpaca é tosquiada (lamento desapontar quem achou que era lã de alpaca recém nascida). Tudo, até acrílico, eles dirão que é alpaca bebê. É também como se já não existissem mais carneiros e nem ovelhas no mundo. Melhor ficar alerta pra não levar gato por lebre (ou carneiro por alpaca).

Deixem-me compartir algumas dicas que aprendi no Andes para garantir que a sua roupa de alpaca é de alpaca mesmo. Primeiro, vamos à alpaca.
Este bichinho bonitinho aí é a alpaca. É um dos 4 camelídeos nativos da América do Sul, ao lado da lhama, da vicunha, e do guanaco.
Esta é a vicunha, um camelídeo menor e que vive em altitudes maiores. Seu pêlo é o mais fino e prestigiado de todos. Na época dos incas, só os imperadores podiam vestir trajes feitos com pêlo de vicunha. Infelizmente, hoje ela é uma espécie ameaçada e produtos feitos com seu pêlo são extremamente raros, e caros (dizem que um mero cachecol custa 700 dólares). Portanto, muita atenção se algum tentar lhe vender algo supostamente feito de vicunha.  
E este é o guanaco, um camelídeo um pouco maior, não-domesticado, e que não é realmente usado pra fabricação de roupas. 
Os incas usavam as lhamas para transporte, exclusivamente, e não para fabricar roupas. Ainda hoje é assim. Há pêlo de lhama em tapetes e tal, mas não pra roupas pois ele pinica muito. Além disso, é um pêlo mais grosseiro, menos agradável ao toque (embora abraçar aquelas duas fofuras lá na foto inicial tenha sido ótimo.)

Pra se certificar que o seu cachecol, xale, gorro ou moletom é de alpaca mesmo, verifique o aspecto e o peso. Pêlo de alpaca é opaco. Sustente-o contra a luz, e se reluzir, é porque tem acrílico misturado. Se pinicar mais do que um pouquinho, é porque tem lã de lhama misturada. Quanto ao peso, fibras sintéticas (acrílico, rayon, etc) são levíssimas. Lã de alpaca é densa. Se o teu moletom não te parecer um tanto pesado, não é alpaca. (O terceiro critério é o preço. Lã de alpaca é mais nobre e, portanto, mais cara. Se parecer uma pechincha muito grande, desconfie.)

Já a lã de "alpaca bebê" é excepcionalmente macia ao toque. Muito mais que uma roupa de algodão. Parece bundinha de bebê mesmo. Se sentir um macio comum, de outras roupas, não é alpaca bebê. 

Sugiro que vá a alguma loja cara, onde é menos provável tentarem te enrolar, e pegue em roupas 100% alpaca e 100% alpaca bebê para educar o seu tato. Daí você poderá sair às compras com melhor conhecimento daquilo que está procurando.
Pronto. Agora que já sabe o que procurar, pode ficar igual aí à moça com sua roupa de alpaca.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Arequipa e a notável culinária peruana

Calma, não se trata de uma culinária de pombos. Esta é a praça central de Arequipa, sua Plaza de Armas, de arquitetura colonial espanhola. Arequipa é a segunda maior cidade do Peru (após a capital, Lima), e a cidade-natal de Mario Vargas Llosa, um dos Prêmio Nobel de literatura da América do Sul. Arequipa é também a melhor cidade do Peru em termos de gastronomia  os limeños que esperneem o quanto quiserem, mas é verdade.

Passei 3 dias aqui, o que me pareceu suficiente. Cheguei após a tortuosa viagem de ônibus desde Puno (ver Emoções de ônibus no interior do Peru), às margens do Lago Titicaca e da fronteira com a Bolívia (ver O Lago Titicaca e a Copacabana original, na Bolívia).

A culinária peruana, por sua vez, merece uma vida inteira. *Suspiro*. É a culinária mais impressionante da América do Sul (afora o Brasil, na minha humilde opinião). Pimentas, pescados, milhos de mil cores, etc. Comecemos devagarinho, pelo dia em que eu cheguei.
Milho roxo, pra quem achava que milho era de uma cor só. O milho é cultivado há milênios na região dos Andes, e foi daqui e do México que ele se espalhou para o mundo. Há dezenas de tipos e cores, embora no Brasil só conheçamos amarelo e branco. (Se a indústria de alimentos trabalhasse com a biodiversidade e não a pseudo-diversidade  corredores inteiros de supermercado com cereais matinais de "sabores" diferentes que, na verdade, são do mesmo milho de monocultura  teríamos uma alimentação melhor e mais conhecimento das coisas da natureza.)
Cesta com diversos tipos e cores naturais de milho no Peru. E essa é apenas uma pequena amostra.
Arequipa tem um centro histórico cujo coração é a Plaza de Armas, cercada por ruas antigas e que são a parte mais bela da cidade. Como é habitual na América hispânica, o desenho urbano é o das cidades históricas em forma de grade, com quarteirões quase idênticos e ruas que se cruzam — diferente de quando você navega Salvador ou Olinda, por exemplo, cheias de curvas e de ziguezagues. 

Fora daquele centro, são ruas comuns e deveras poluídas pelo tráfego de carros cujos escapamentos parecem ser dos Anos 70. Questões políticas de leniência com a indústria automotiva, alguém me sugeriu. Você também notará a abundância enorme de táxis (parece haver mais táxis que carros particulares na cidade). São baratos, mas há sempre aquele risco de enrolação, ainda mais num lugar como o Peru e turístico. Sugiro, portanto, hospedar-se no centro a uma distância que dê pra ir a pé à Plaza de Armas, que é onde tudo acontece.
A Basílica Catedral de Arequipa (1656), na Plaza de Armas.
Moças atravessando a rua aos jardins da praça. Agradabilíssima praça, segura, tranquila, muito arborizada, e agradável. Muito superior ao péssimo padrão de praças no Brasil, em geral inexistentes ou abandonadas. 
Fachada da Igreja da Companhia de Jesus ao entardecer em Arequipa. Tudo nos arredores da praça central.

Sabe quando você viaja, passa alguns dias numa cidade e elege o seu restaurante favorito ao qual fica voltando? Em Arequipa, isso não é necessário. São tantos os bons restaurantes que o que você lamenta não é não ter visto mais da cidade, mas não ter comido mais da cidade, não ter tido mais jantares em Arequipa.

A minha vivência gastronômica na cidade foi ascendente. Não começou muito bem. 

Iniciei, na primeira manhã  empolgadíssimo pra experimentar de tudo típico  com uma chicha morada de lanchonete em forma de smoothie (suco batido com gelo). A chicha é um refresco feito com aquele milho roxo mostrado acima, misturado a abacaxi e/ou limão para dar sabor. Todo site de divulgação automaticamente dirá que é "delicioso". Mentira. Se você já tomou suco grosso de milho verde (com gosto de milho) no Brasil, se decepcionará, pois a chicha é uma garapa rala e você nem sente gosto nenhum de milho, só um breve azedinho do limão ou abacaxi. Não é ruim, mas não espere se encantar.

(Tomei uma decente num restaurante uma vez, mas a da lanchonete em formato de smoothie foi artificialíssima, com gosto de refresco de rodoviária feito de pó.)
Meu smoothie de chicha morada em Arequipa. Lindo, não é? Mas só tinha cor. O gosto era quase de Tang Uva batido com gelo. Lembro-me de ter corrido urgentemente atrás de uma outra coisa pra trocar o gosto na boca.
Esta chicha morada foi num restaurante fino. Legal, mas, apesar da cor forte, o gosto não é. É uma garapa simples, não espere uma iguaria. 

No mesmo almoço em que tomei essa chicha morada fui apresentado ao ceviche, outro prato que é assinatura da culinária peruana. O ceviche é tradicionalmente consumido no almoço, não no jantar, pois se trata de peixe fresco, num caldo de limão, cebolas cortadas e pimentão ou pimentas. Em geral, é acompanhado de outros alimentos peruanos: a batata doce e grãos de milho amarelo-claro que aqui nos Andes é chamado de choclo.

Só tem um detalhe: o peixe vem cru. Parece óbvio pra quem já conhece o prato, mas não é. A suposição razoável mais básica num restaurante é que a comida virá cozida. Quando chegou o ceviche à mesa, minha mãe  sempre muito tranquila e serena em situações como essa  deu um revertério.

 "O peixe está cru?!", perguntou ela, chocada.
 "Si, señora, el pes en el ceviche es crudo."
 "Mas não estava especificado no cardápio que o peixe vem cru.", intervim eu.
 "Pero todos conocen el ceviche, señor."
 "Lamento dizer, mas não. Vocês têm cardápio em inglês. Claramente servem a estrangeiros. Tudo o que lhes custaria seria uma palavra entre parênteses, 'cru', especificando, e evitariam esse tipo de coisa."

Minha mãe, da cor da pimenta, já estava dizendo que levassem embora. (É ótimo ver senhoras fazendo essas coisas que gente jovem teria mais dificuldade de fazer.) 
 "Se le gustaría, lo cocinamos más, señora.
 '"Mais" não, porque está completamente cru. Eu só como peixe cozido.'

Levaram embora pra cozinhar. Vinte minutos depois, retorna o peixe tão cru quanto estava antes. O prato voltou igual.
 "Isso não está cozido", declarou ela estupefata. "Eu sei cozinhar peixe!", acrescentou, adicionando pimenta ao quiprocó.
 "Es que es cozido en el limón, señora, y no con el fuego"

Por mais solidariedade que eu tivesse com o garçom, isso é de chamar peixe cru marinado no limão de "cozido" é um chuncho sem tamanho.    

Minha mãe devolveu o peixe e pediu outra coisa, confirmando se desta vez a comida viria cozida. Eu comi o ceviche  e muitas outras vezes desde então. Não é dos meus pratos favoritos  você sente, basicamente, o gosto do limão. Tem mesmo gosto de peixe cru marinado. Mas, às vezes, cai bem. Só saibam o que estão pedindo. 
O fatídico ceviche.
A partir daí a coisa começou a melhorar. Experimentaríamos Papa à la Huancaína, batatas com molho de pimenta huancaína, uma pimenta alaranjada saborosa; o Chupe de Camarones característico de Arequipa, um prato de camarões no caldo cremoso apimentado; "torta" de quínoa, o grãos mais típico dos Andes; e muito mais. 

Como vocês já devem ter se dado conta, a culinária peruana é apimentada. Do mesmo jeito que temos as churrascarias e pizzarias, aqui há as Picanterías, especializadas em deliciosos pratos picantes.  Embora eu seja da Bahia, conheça bem o México, a Tailândia, e tenha morado na Indonésia e na Índia, terras onde a comida já começa apimentada desde o café da manhã, foi do Peru a pimenta mais violenta que já experimentei: Rocoto. Tem o inocente aspecto de um pimentãozinho vermelho gordinho, mas faz você cuspir fogo como um dragão. 

(Pra quem não sabe, todas as batatas e pimentas coloridas, assim como também os pimentões e os tomates, são nativos das Américas e eram desconhecidos do Velho Mundo. Em termos de pimentas, na África, Ásia e Europa eles só conheciam variedades de pimenta do reino, que são grãos nativos do sul da Índia).
Papa à là huancaína, batata num molho bem condimentado e picante. 
Torta de quínoa, uma entrada fria mas saborosa.
Chupe de camarones, um prato de camarões no molho cremoso picante, com pedaços de batatas e de um sabugo de milho dentro. De-li-ci-o-so. É típico de Arequipa.

Já no reino dos doces, você achará bastante sobremesa com leite e ovos. O tres leches, por exemplo, é muito comum aqui. Há a torta  um bolo simples, com uma parte molhada de leite condensado embaixo e uma cobertura de creme de leite em cima  e umas variedades que lembram uma mistura de bolo com pudim, todas ótimas. Mas esse eu comi tão rápido que nem tirei foto. Vai uma da internet. 

E o mais típico de Arequipa, que é o queso helado. Calma, não é queijo com açúcar. A ideia do nome é só porque se faz com a parte gorda do leite, como se fosse pra fazer queijo. Na prática, é um sorvete de creme daqueles bem amarelos e com gosto mesmo de creme. Delicioso. Às vezes ainda jogam uma canela por cima.
Torta tres leches.
O queso helado que comi num restaurante. Você acha facilmente na rua também. 
Vendedora de queso helado em Arequipa.
Mas, pra não dizer que eu não falei das flores, visite também o Monasterio de Santa Catalina de Siena em Arequipa. O nome é em homenagem à Santa Catarina que viveu em Siena, na Itália.

O lugar é lindo, com jardins, fontes, e caminhos em espaços azuis, vermelhos ou branco. É tão lindo quanto é horrorosa a ideia de imaginar ali centenas de mulheres trancafiadas e isoladas do mundo, quase sempre por imposição da família, além de meninas regularmente ameaçadas e impotentes diante de seus pais ("Ou se casa com fulano, ou vai para o convento!"). 

Inaugurou-se em 1579, e em seu apogeu juntou quase 500 ocupantes, entre monjas e donzelas serventes. Hoje ainda há pouco mais de uma dúzia, reclusas numa parte não visitável do mosteiro. A maior parte é acessível  e labiríntica. 
Monasterio de Santa Catalina. 
Corredores extensos, como numa verdadeira cidadela.
Branco.
Azul. Por toda parte, muitas flores e arquitetura de estilo mudéjar, que é o que comumente se chama de "colonial" espanhol ou português, e que consiste largamente no uso de elementos árabes  como esse pátios  com adições cristãs aqui e ali. 

Venha a Arequipa e delicie-se, com a língua e com os olhos.


sábado, 16 de janeiro de 2016

Emoções de ônibus no interior do Peru: Lindas vistas e sensações fortes de Puno a Arequipa

"Hay chicharrones! Hay chicharrones!", anunciavam as vendedoras gordas pelo corredor do ônibus até Arequipa. Senhoras pesadas, usando roupas compridas e chapeuzinho preso com a tira abaixo do queixo, e que vendiam pedaços de frango frito em pequenos sacos plásticos onde grandes grãos de milho branco também boiavam no óleo. Uma visão apetitosa. Os peruanos compravam aquilo e comiam aos montes, fazendo subir no ônibus o delicioso cheiro de óleo frito.

O nosso ônibus era quase hermeticamente fechado. Não havia ar condicionado. Ou melhor, havia, mas não funcionava  assim como tampouco as lâmpadas de leitura, a televisão, e o chique botão de chamar a comissária, como em avião. Um ônibus leito, só que não. Na real, tínhamos apenas basculantes, não janelas, e que a maioria dos passageiros preferia deixar fechado para evitar o vento. Era asfixia pura, feita pior pela altitude de 3.500m onde trafegávamos.

Viajar de ônibus pelo Peru é regado a sensações fortes, não limitadas às lindas vistas das montanhas dos Andes ou do deserto de Nazca, que se expandem a perder de vista. 
Da janela do ônibus, entre as cidades de Puno e Arequipa, no sul do Peru.
Vejam, à esquerda, a pequeneza do veículo branco diante da imensidão.
Extensas planícies áridas até a costa do Peru. A altura dos Andes bloqueia a umidade que de outro modo chegaria da Amazônia, deixando o ambiente aqui bastante seco. (Mais adiante, ao norte, estão as famosas Linhas de Nazca, aqueles imensos desenhos indígenas antigos em formas diversas a serem vistos de cima, em sobrevoo.) 

Estamos no meu ônibus desde a fronteira boliviana, na cidade de Copacabana (ver O Lago Tititcaca e a Copacabana original, na Bolívia), até a cidade peruana de Arequipa. No caminho, uma breve troca de ônibus em Puno, na margem peruana do lago.

Viagem de ônibus no interior do Peru há de dois tipos. No primeiro, mais caro, você viaja confortavelmente em poltronas espaçosas, ar condicionado, chazinho de coca para enfrentar a altitude e lanche embalado servido a bordo. Você certamente será acompanhado por outros turistas mais endinheirados, já que os peruanos em geral não se dão ao trabalho de pagar o triplo ou o quádruplo do preço normal para fazer o mesmo trajeto. Caso esta seja a sua escolha, busque os serviços da empresa Cruz del Sur

Na outra modalidade  a que eu escolhi  você viaja com o povão. Eu gosto de conhecer como vivem as pessoas, e tenho uma certa resistência a gastar muito em conforto. De quebra, a Cruz del Sur não tinha ônibus no horário que eu precisava, então fui de Julsa, uma empresa comum. Troquei dólares por soles (a moeda peruana) na rodoviária de Puno e lá comprei uns vagabundos lanches  antes de embarcar. 

Em retrospecto, só recomendo aos fortes de espírito.
Na rodoviária de Puno, já do lado peruano, com o Lago Titicaca ainda visível ali ao fundo.
Nunca antes até ali eu havia comprado às 10:15h uma passagem para o ônibus de 10:00h. (Vocês reclamam do Brasil, mas ele é um dos raríssimos países em desenvolvimento onde ônibus interurbanos saem no horário.) O homem no guichê me garantiu que o ônibus ainda estava no pátio e que eu embarcaria sem problemas. Saímos às 10:50h, depois que juntaram mais passageiros.

Seis horas separam Puno de Arequipa, a segunda maior cidade do Peru (após a capital, Lima). A primeira visão depois de deixar Puno é Juliaca, uma séria candidata a cidade mais feia que eu já vi na vida. É uma disgrameira pobre pior do que a média das periferias do Brasil. Depois é que entramos pela aridez desértica mostrada acima, até que presença humana novamente só veremos ao nos aproximarmos de Arequipa.
Terra batida, restos de cartazes colados, e tuk-tuks (esse veículos aí de três rodas) no interior do Peru.
Mais visões da linda Juliaca, com o povo pobre aí carregado. (Antes de chamá-los de preguiçosos, vá viver um dia aí com as tribulações deles.)
Vendinhas de beira de estrada "no meio do nada" começam a aparecer depois de algumas horas de viagem cruzando o deserto.
Muito antes de aparecer Arequipa, aparece El Misti, o portentoso vulcão de 5.822m, no horizonte.

Enquanto isso, dentro do ônibus, acumulavam-se papeis de doce, embalagens rasgadas de chocolate, garrafas plásticas vazias e todo tipo de lixo que ia caindo pelo chão. Começavam também a entrar pessoas, vendedores ambulantes indo desse nada a algum lugar, e que vendiam  afora os já citados aromáticos chicharrones  "aguita de manzana" (uma espécie de suco de maçã caseiro posto em garrafas Pepsi), gelatina caseira em copos plásticos, etc.  Espero que a sua imunidade esteja alta.

Numa dada hora chegou até um pregador, que por 10 minutos nos falou da Bíblia naquele tom de voz metódico de quem está acostumado a pregar em público. Quis nos vender, depois, uns torrones horríveis, daqueles brancos que são puro açúcar e que não valem nem 10 centavos. 
O pregador.
Mas a passagem que mais marcou mesmo foi a do rapaz estrangeiro repreendido em público pelo cobrador do ônibus porque cagou no banheiro. Ele era hispânico, de algum outro país latino-americano que não identifiquei, e pelo visto não familiarizado com essa norma aqui no Peru. O rapaz estava poucos assentos à minha frente. O cobrador quis saber, em alto em bom som, de onde é que o rapaz era que não sabia que banheiro de ônibus é só para urinar e que agora estava todo cagado (a descarga, pelo visto, não desceu. Não fui verificar.) 

"Que puedo hacer ahora, señor?", reagiu o rapaz educadamente enquanto todo o povo assistia ao debate sobre a caganeira. O cobrador, raivoso, disse que ele devia saber. O rapaz retrucou que aquilo deveria estar escrito em algum lugar. O cobrador virou as costas indignado. O rapaz foi atrás dizendo "quiero hablar" e apontando que insultar o passageiro em público não era a solução. Bueno, se vier ao Peru, já sabe.    

A emoção final, após essa comédia, foi a dos desfiladeiros imensos por onde passávamos. Eram tão assombrosos que só passava um veículo por vez  e mesmo assim a uns 10-15km/h  pelas curvas sem acostamento ou barreira que nos separassem do despenhadeiro. De vez em quando tomba alguém.  

Passado aquilo, chegamos aos arredores arenosos de Arequipa, com El Misti ainda mais perto, visível por detrás das construções de periferia. Era fim de dia, e pela janela do ônibus víamos o sol de pôr sobre aquele cenário. 
O lugar é tão seco que só de olhar já me dá sede.
Finalizar aquela viagem e descer do ônibus seriam uma glória e um alívio. Tínhamos outra dessas de volta pra Puno dali a três dias. Felizmente, entre uma e outra, tivemos a agradável Arequipa, não só uma cidade bonita, como também uma pausa na altitude rarefeita (a cidade está "apenas" 2.300m acima do nível do mar, o que é relativamente tranquilo pra respirar), e pela deliciosa culinária peruana que experimentaríamos ali. Fica pra depois.
Vista dos arredores de Arequipa, com as montanhas nevadas ao fundo. 
El Misti, sempre presente.
Terminei esta viagem seguro de jamais faria as 22h de ônibus que separam Cusco e Lima.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Lago Titicaca e a Copacabana original, na Bolívia

Os cariocas terão uma queda de pressão ao saber, mas "Copacabana" não é um nome originalmente do Rio, ou sequer brasileiro. É um nome indígena dos Andes, que viajantes bolivianos trouxeram à praia do Rio de Janeiro no século XVII. Desde antes da invasão dos espanhóis às Américas, há nas margens do Lago Titicaca  hoje na fronteira entre a Bolívia e o Peru  um povoado com o nome de Copacabana. As hipóteses sobre a etimologia exata do nome variam, a mais aceita na Bolívia é a do significado Kota Kahuana ("vista do lago") na língua Aimara, nativa da região.

Dizem que nos idos de 1500 houve uma aparição de Nossa Senhora a um pescador daqui, que talhou uma imagem sua em madeira. Ela ficou conhecida como a Nossa Senhora de Copacabana, ainda hoje a santa mais cultuada da Bolívia e de partes do Peru. No século XVII, mercadores de prata dessa região em viagem à cidade do Rio de Janeiro lá ergueram uma capela à santa, na praia que então era conhecida no Brasil pelo seu nome Tupi, sacopenapã (significando "caminho dos socós", que são aves da família das garças). Com o tempo, a capela de Copacabana deu seu nome à praia e ao bairro. A capela ficava onde hoje é o Forte de Copacabana, lá construído em 1914.
Imagem da Virgen de la Candelaria de Copacabana, talhada pelo índio aimara Francisco Tito Yupanqui em 1583. (Calma, cariocas, não pensem que também o nome Candelária vem dali. Candelária, em português ou espanhol, é o nome dado à celebração católica da Purificação de Nossa Senhora dia 2 de fevereiro, quando tradicionalmente se faz uma procissão com velas pela igreja. "Candela" é vela em espanhol, daí outras palavras relacionadas, como candelabro). 

A cidade boliviana de Copacabana continua hoje sendo o pequeno povoado de sempre, construído ao redor do Santuário, só que ele é hoje muito mais turístico. Numa tarde você percorre ele todo a pé. Há a visitar, basicamente, o Santuário de Nossa Senhora de Copacabana e as margens do lago.

O Lago Titicaca é o maior lago da América do Sul e o mais elevado lago navegável do mundo, a 3.812m de altitude. Você nem se dá conta de que está a essa altura toda, exceto pela baixa de oxigênio no ar e uma certa dificuldade pra respirar, se você não estiver nessa altura já há algum tempo.

Cheguei num ônibus vindo de La Paz, básico porém confortável, como comumente o caso no Brasil. Li bastante sobre bloqueios de estradas na Bolívia, mas não vi nada disso. O curioso é que, como Copacabana fica numa ponta sinuosa às margens do lago, o ônibus o atravessa numa balsa para não ter que fazer uma volta muito grande. (Nisso, curiosamente, você provavelmente precisará já mostrar a sua documentação às autoridades peruanas, pois Copacabana é tão na fronteira que eles entendem que dali você já poderá facilmente entrar no Peru.)

As vistas para o lago são magníficas.
A vista para o Lago Titicaca ainda da janela do ônibus.
Às margens do lago. Nós travessamos de lancha e reencontramos o ônibus do outro lado, após ele atravessar numa balsa.
A vista na lancha para o lago, quase um mar.
Já do outro lado, antes de reembarcar no ônibus. (Ali atrás, caso você esteja lendo, é Comedor mesmo, tipo lanchonete/restaurante em espanhol.)

Chegando do outro lado, o ônibus lhe deixa numa das praças centrais de Copacabana. A cidadezinha, verdade seja dita, não é exatamente bonita. Os bolivianos e peruanos parecem sentir pouquíssima necessidade  e/ou terem pouquíssima condição  de rebocarem suas casas, então o mais comum é ver repetidamente por estas cidades do interior casas de múltiplos andares só no tijolo e com janelas de ferro e vidro. As ruas são repletas delas. De mais ajeitadinha, só mesmo a rua principal que desce para o lago, recheada de cafés e restaurantes com wi-fi (para turistas).
Rua principal de Copacabana. Mesmo lá, as ubíquas casas de tijolo sem reboco e janelas de metal e vidro.
O caminho para o lago.
Apesar do jeitão de "caminho da praia", não vi ninguém tomando banho de lago, pelo menos não aqui. (A esta altitude e neste clima ensolarado porém frio, tenho a impressão de que a temperatura da água é muito pouco convidativa.)

À beira do lago, vi apenas barcos de pescadores e de passeios  como os que levam para a Ilha do Sol e outras com heranças indígenas no meio do lago.
A beira do lago, ao final daquele caminho.
Caminhando uns 10 minutos na direção oposta você chega ao Santuário de NS de Copacabana, uma área colonial e até bonita, embora simples. A arquitetura é portentosa, mas não senti aquela pretensão de outros templos coloniais, talvez pela simplicidade das paredes brancas e de seus arredores.
Com o Santuário de Nossa Senhora de Copacabana atrás.
A entrada para o santuário. Vendedores abundam em frente e nos arredores, mas não no interior. A maioria dos produtos, no entanto, são de baixa qualidade (até pelo baixo poder aquisitivo dos visitantes), aquelas imagens de santo feitas na China e outros badulaques simples.
Estátua de Francisco Tito Yupanqui, que teria tido a visão da Nossa Senhora de Copacabana e talhado sua primeira imagem, no século XVI. 
Não deu para tirar fotos do interior, mas recomendo a visita.

Este não deixa de ser também um bom trampolim por onde seguir em viagem ao Peru. Achei uma noite aqui o suficiente. Mas antes de partir para o Peru, tratei de terminar de gastar todos os meus bolivianos (a moeda, não o salgado brasileiro), e preparar-me para adquirir soles peruanos do outro lado. (Leve dólares, pois não é em todo lugar que trocam real!)

Em termos de comida, como sempre gosto de pontuar, não achei nada de especial aqui. O que você vê  como também verá no Peru  é a tenebrosa Inca Kola, um refrigerante amarelo com gosto de chiclete. Lembrou-me o róseo guaraná jesus do Maranhão, e é tão horrível quanto. (Todo o meu amor aos maranhenses e ao Maranhão, mas aquele guaraná é brabo. O mesmo se algum amigo meu peruano estiver lendo isso aqui.)
O negócio é ruim e eles ainda vendem nessa garrafa enorme.
O sol caía por detrás do lago, dando a impressão de que havia vulcões em erupção (à là Mordor) nas montanhas além. A vista para o Titicaca é linda nesse entardecer.

No dia seguinte, tomaria uma chávena de chá de coca antes de partir para ter energia de carregar a bagagem no baixo oxigênio destes quase 4 mil metros, e seguiria para o Peru. Do outro lado do lago, a cidade peruana de Puno, e dali seguiríamos já diretamente para Arequipa, uma cidade maior. Arequipa fez o traslado valer a pena, mas foi uma das mais desgostosas viagens de ônibus da minha vida.

Deixo vocês, por ora, com o visual do lago à noitinha.
Docas do Lago Titicaca em Copacabana, ao anoitecer.
Rua principal à noitinha. (Não há muito o que fazer, já lhes digo.)
 Até o outro lado, no Peru!