sábado, 24 de maio de 2014

Paisagens do Marrocos: De Marrakech a Ouarzazate

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Eram 6:30 da manhã de uma quinta-feira na Praça Djemaa El-Fna, coração de Marrakech. A maior praça de toda a África. O sol ainda não raiou, e poucos bares estão abrindo. Gradualmente os vendedores de rua e das lojas vão chegando, gritando animados uns aos outros em árabe, e dando início ao mega-movimento que domina a praça durante o dia. Várias vans e outros carros circulam e estacionam pelo grande calçadão da praça, algo que só lhes é permitido fazer até as 9 da manhã.

Perto de nós, um tio calvo de bigode e paletó anda pra lá e pra cá segurando dois cigarros na mesma mão: um normal, que ele fumava, e uma cigarrilha cubana, que ele carregava apagada entre os dedos e que parecia ser só para a pose. Ele coordenava os vários motoristas e, como diria a minha avó, parecia ser "o chefe do bando", o homem do dinheiro.

Estávamos ali prontos para viajar, vários turistas. Em Marrakech, todas as agências de viagem parecem oferecer os mesmos passeios, o melhor deles ao Saara, uma jornada de três dias e duas noites atravessando a Cordilheira dos Atlas, os vales de pedras, e chegando enfim a Merzouga, às bordas do deserto. De lá você pode fazer passeio de camelo e ir acampar na areia. Essa era a rota.

Mustafá, o nosso motorista, circulava com seu cigarro (um só), um árabe meio enfezado, de seus 40 anos, cara lisa, corte curto de cabelo e cifose -- andava como se estivesse sempre com os ombros levantados, aquela pose de pistoleiro. Os passageiros estavam todos no calçadão esperando pra ver em que van iriam, até que aos poucos os "funcionários de solo" vão pegando o dinheiro sem lhe dar recibo nenhum e arrebanhando as pessoas pra dentro das vans. A coisa não é lá muito formal, nem particularmente cortesa, e a sensação é a de que você não tem controle de nada, mas é como funciona. Depois de esperarmos até umas 7:45, zarpamos na van de Mustafá.

Se você acha que o Marrocos é só terra seca e deserto, vai se surpreender.
Arredores de Marrakech, com vista para a Cordilheira do Atlas ao longe. Essa cordilheira corta o Marrocos de ponta a ponta, separando o deserto (e a parte mais seca) das planícies mais férteis da costa. Seu pico mais alto é o Jbel Toubkal (4167m)
Vista da janela da van. Isso também é Marrocos.

Conforme vamos avançando na estrada e subindo na altitude, a temperatura cai. Chega ao ponto de ter gelo e neve na beira da pista. Pista, por sinal, cheia de curvas, sobes e desces. O vento, apesar de já ser primavera, é frio de você cruzar os braços. Paramos numa bodega pra tomar café ou chá, e tirar umas fotos.
Vista da bodega. Estrada ali ao fundo, com uma pequena aldeia de casas à beira da pista.
Campos e montanhas ao fundo.
Parecendo a Terra Média, d'O Senhor dos Anéis, mas é a vista para a Cordilheira do Atlas no Marrocos.

Mustafá era motorista e guia, mas não falava muito. Só abria a boca pra dizer "photo-stop!" ou "20 minutos!", na hora que parava. E ai de você que atrasasse. Os marroquinos não têm a menor cerimônia de lhe dar um esporro ou arranjar briga com você, ainda que não lhe conheça.

Paramos a seguir numa fábrica artesanal de óleo de argan, iguaria marroquina. (A gente sabe que há acordos entre as fábricas e a agência de turismo, mas a visita não é má).
Mulheres preparando o óleo de argan artesanalmente, esmagando as sementes. A planta é um arbusto nativo do semi-árido marroquino, e o óleo é valiosíssimo como cosmético. Há também uma versão comestível. Mas não seja tolo de achar que os óleos vendidos nas ruas de Marrakech têm essa qualidade. Aqueles são quase sempre misturados com óleo de cozinha, me disseram. Pra conseguir o óleo de argan verdadeiro, vá a Agadir, ou peça a algum(a) marroquino(a) confiável lhe indique onde comprar ou, melhor ainda, compre por você. Foi o que eu fiz. 
Na pista. Lá atrás, um vilarejo berbere, dos povos nativos daqui, de antes da invasão árabe séculos atrás. 
Vilarejo berbere. As montanhas seguem cheias deles. São pobres como você pode imaginar. A diferença em relação ao Brasil é ser bem menos violento que qualquer favela.
Depois de uma certa altitude, já não há mais árvores, só turfas no chão.
Parecendo a Suíça (só que a Suíça não tem esta parte mais seca).

Dentro de duas a três horas você atravessa a cordilheira e a paisagem muda radicalmente. Esqueça aquele verdejante das fotos anteriores. Agora é terra seca mesmo. Ainda não estamos no deserto: aqui são pedras, não areia, mas os oásis aqui e ali já dão o contraste, como ilhas verdes num mundo seco. Bem vindos à região de Ouarzazate.
Casas de adobe (barro batido) na vastidão seca.
Aqui já filmaram muita coisa: Gladiador, Lawrence da Arábia, Prince of Persia, Cleópatra e, mais recentemente, Game of Thones.
Caminhos e ali à frente uma Kasbah, construções com quatro torres interligadas. Tudo aqui é feito de barro, que é mais fresco. Casa de cimento aqui assaria todo mundo com eesse sol. 
... e quando você acha que não há nada além de terra seca, você avista um oásis. O essencial é haver uma fonte de água, e as plantas crescem. 

Lá dentro há todo um vilarejo hoje dependente do turismo. O local é tombado pela UNESCO e usado pra filmagens ao menos uma vez ao ano. Fizemos um passeio pelas ruelas no interior, e o guia nos mostrou orgulhosamente no celular a sua foto com Emilia Clarke, a atriz que faz Daenerys em Game of Thrones. "Minha foto com a Khaleesi", mostrava ele sorrindo, vários dentes faltando.
Lojas vendendo produtos artesanais aos turistas. O destaque são para os têxteis, sobretudo tapetes. Mas há também bugingangas várias.
Um homem passa no burrinho enquanto o outro prepara tijolos de barro, a serem secos ao sol.
Nosso guia, subindo os degraus numa ruela.
Lá em cima, num mirante. Ali atrás ao fundo, entre um lado e outro, passava um rio. Foi um entreposto comercial importante por séculos. Hoje quase não há água. Com a mudança climática, os problemas de falta d'água no Marrocos estão ainda mais sérios.

Dali fomos almoçar, seguindo viagem rumo ao Saara. Num restaurante de beira de estrada, pedi uma moqueca d´ovos. Bem, ao menos é o que parecia :-)
Um belo banquete regional. Minha moqueca d'ovos, salada com laranja, cuzcuz com legumes refogados.

domingo, 18 de maio de 2014

Paraíso perdendo-se: No centro de Java, e o dia-dia em Yogyakarta (Indonésia)



Tigre na Sumatra, a cada dia menos comum. As florestas aqui estão sendo substituídas rapidamente por plantações de eucalipto para celulose (papel), e de dendê para a indústria de alimentos e tintas. A devastação é ainda mais rápida que na Amazônia. (A foto não é minha, é do Greenpeace).

Depois do Brasil, a Indonésia tem a maior cobertura florestal do mundo. Como o Brasil, a Indonésia sofre com a fome inesgotável dos mercados internacionais por recursos naturais: minérios, madeira e, cada vez mais, terras e água para a agricultura de exportação controlada por poucos. Vive como o Brasil numa eterna economia de produtos primários, como no tempo de colônia. A Indonésia conquistou independência da Holanda em 1949, experimentou uma longa ditadura militar (1967-1998) apoiada pelos Estados Unidos, e o resto você já conhece, é como o Brasil: governos pouco eficazes e mancomunados com as elites locais e estrangeiras que fazem a rapinagem e embolsam os lucros. A maioria pobre, compreensivelmente, está mais preocupada em satisfazer as suas necessidades imediatas do que em pensar na sustentabilidade do país  não veem o abismo que vem logo ali na frente. Dentro de 50 anos pode não restar mais nada.

Dos vários trabalhos que estou fazendo em desenvolvimento sustentável, um me trouxe aqui este mês. Vim a Yogyakarta, no centro da ilha de Java (a principal da Indonésia), para poucos dias de um encontro com a equipe da WWF (a ONG grande com o símbolo do panda) que lida com florestas.
Vista da janela do meu hotel, nos arredores de Yogyakarta.
Vulcões nos arredores. A última explosão foi em 2010. A sensação é de estar mesmo em algum paraíso tropical perdido.
A piscina do hotel. Parece que você está nadando nas ruínas de algum templo maia.

Claro que nem tudo é floresta. A Indonésia é o quarto país mais populoso do mundo (250 milhões), e tem uma cultura riquíssima. Cada uma das milhares de ilhas que a compõem tem suas particularidades. A maioria é muçulmana, mas há áreas cristãs, hindus, budistas, e aquelas que seguem religiões tribais locais. Boa parte das vezes há uma mistura.
Os indonésios são, em sua grande maioria, muçulmanos, mas há uma forte influência hindu e budista na estética.
Nosso salão de café da manhã, com uma das sorridentes serventes. Essa me serviu um suco quente de tamarindo com gengibre.

Pra quem não sabe, eu morei aqui na Indonésia um tempo em 2011. É dos meus países favoritos não só pela linda natureza, mas também pela culinária maravilhosa e pela gente das mais alegres que eu já encontrei. Os indonésios acertam a fazer um equilíbrio entre serem, por um lado, cerimoniosos, e por outro risonhos e palhaços. Aqui tudo é motivo pra aquela risada gostosa meio abestalhada.


Além do encontro propriamente dito, eu tinha dois objetivos: comprar uns belos tecidos e comer novamente o prato típico de Yogyakarta: gudeg, jaca verde no leite de côco (soa estranho mas é uma delícia!).

Não precisei procurar muito: o gudeg já estava servido já no café da manhã. Na Ásia, talvez você não saiba, mas a refeição do café da manhã tende a se parecer com o almoço e a janta  não há essa coisa de beber café com biscoito ou comer sanduíche. Como o dia é quente e começa cedo, às 7 em ponto eu estava lá pra ver o solzão raiando naquelas árvores, e batendo um prato de peão.
Gudeg, prato de jaca verde cozido no leite de côco com pimentas. Uma maravilha. Esta foto não é exatamente a do meu café da manhã, mas meu prato foi mais ou menos assim. (No café da manhã eu acho que estava voraz demais e nem me detive pra fotografar nada).

Muito legal, muito bonito, mas o calor é úmido de um jeito que eu acho que você só encontra igual na Amazônia ou na África Central. Sua roupa ensopa numa questão de instantes, e você estará permanentemente suado.

Pra quem quer visitar ou comprar, a Rua Malioboro é o coração do centro. Uma longa avenida repleta de barracas e lojas (tudo baratérrimo). Mas o movimento é intenso. O povaréu passa por você como no centrão de qualquer grande cidade brasileira. As pessoas são baixinhas, e você vê bem lá adiante enquanto fica engarrafado nas calçadas, entre vendedores e transeuntes que ficam parados apreciando alguma coisa sem a menor cerimônia do congestionamento que estão causando. Seu nariz é disputado por muitos odores, dentre eles milho assado, frango na grelha, e cigarro. Seus ouvidos ficarão entre as caixas de som das lojas, as dos pedintes, e os músicos que passam o dia no centro buscando algum trocado em troca de uma cantoria ou de uma moda de viola pra você.

Pra quem ficou se perguntando acerca das caixas de som dos pedintes, veja abaixo os ceguinhos que eu filmei.


Ceguinhos pedintes no centro de Yogyakarta. A música sai na caixa de som dele, e diz a lenda que é a ceguinha ali atrás dele quem canta. Sintam só o solo de guitarra.


Pra quem achou que eu estava zoando que falei que tinha uma ceguinha ali atrás, eis a foto.
A Rua Malioboro, no centro de Yogyakarta. A muvuca é como no Brasil, mas mais seguro.
Vendedora de churrasquinho na rua.
Vendedores de rua.
Ciclista-taxista tirando um cochilo. Como ele eram vários.

Pelas ruas, muitas lojas de batik, os motivos floridos e decorados das coloridas roupas típicas de Java. Não que os indonésios as vistam o tempo todo, mas são bem comuns. Uma loja de roupas em Yogyakarta tem muito mais cores do que no ocidente, onde nosso padrão de charme são cores pasteis, terno preto e essas coisas.
Numa loja, uma senhora colore à mão os padrões de batik num tecido. (Curiosamente, essa mesma senhora eu encontrei quando vim aqui pela primeira vez em 2011).
Loja de camisas batik em Yogyakarta.

Numa das lojas perguntei por um lugar para almoçar. Aqui McDonald's, Kentucky Fried Chicken (KFC) e essas junk-food americanas são consideradas sinal de status (como no Brasil, cof cof...), então a moça gentilmente me recomendou que fosse num deles ali perto. Não era o que eu estava procurando  eu queria algo autêntico. Então ela me recomendou uma bodega simples, virando a esquina, onde almocei pelo equivalente a 2 reais, um tempero melhor que o do hotel.
Minha bodega.
Puro deleite.
Meu almoço na cestinha com papel: arroz, tofu e gudeg com muito molho de côco e pimenta. Repeti.

Ainda circulei um pouco. Os ciclistas-taxistas me ofereciam serviço, mas a pé estava bom. Tomei um belo suco de graviola, e comprei mais algumas lembrancinhas. O Dia das Mães vinha aí, afinal. Não tinha assim tanto tempo, e logo precisava voltar ao hotel, onde o encontro acontecia.

Quem vem a Java deve vir a Yogyakarta, que é sua capital cultural (mais que Jakarta), e não deve deixar de ir aos templos antigos de Borobudur (budista) e Prambanan (hindu) nos arredores da cidade. Foram lugares que eu visitei na minha vinda anterior aqui, que foi um tanto mais aventuresca.

Se quiserem ver a floresta venham logo, pois está acabando rápido. A menos que se faça alguma coisa.
Monumento à luta de independência do país. Quando as pessoas querem e se mexem, as coisas acontecem.

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 "E um bônus, hein mister!"
 "Bônus? Eu quero! Desconto é sempre bom!"
 "Nooo, mister". *Risos*. "Bônus pra a gente! Mister rico!"
 "Inshallah!"
 "Mister muçulmano? Amiga. Boa. Casar. Baby." *Aponta pra a barriga da outra moça, sentada*
(Nunca havia eu tomado uma cantada tão assim direto ao ponto).
- "Não, peralá, não sou muçulmano não. Brasileiro".
- "Ah! Brasil! Brasil bom também!" *Risada marota, e seguia para passar o meu cartão*.

No aeroporto, comprando duas camisas batik com um par de vendedoras animadas, com seus véus e risonhas até não poderem mais

domingo, 11 de maio de 2014

Perdido no Catar: Um dia em Doha

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Já é o terceiro banho que tomo para vestir a mesma roupa. Estamos na Península Arábica  não na Arábia Saudita, mas no seu pequeno vizinho, o Catar. Estamos à beira do mar do Golfo Pérsico, e o abafo é úmido como se eu estivesse no verão da Bahia. Eram 31 graus quando eu cheguei à meia-noite, e durante o dia subiu para 37. No verão chega a 50. Há vento, mas ele traz toda a poeira do deserto e das muitas obras pela cidade. Doha, a capital, está em constante construção.

Vim parar aqui para fazer uma conexão de voo (que perdi) entre a África do Sul e a Indonésia. Como a culpa foi de atraso da companhia aérea, colocaram-me num belo hotel com tudo pago. Nada mau; o problema foi a bagagem ter ficado no aeroporto, e eu ter que me virar só com a roupa do corpo. A roupa já estava até meio mole de ter absorvido tanto suor.

Eram 5:00 da manhã quando finalmente saí do aeroporto, meu o voo remarcado para a noite seguinte. Eu teria então um dia inteiro em Doha.
Nascer do sol em Doha lá pelas 5:30 da manhã. Diga se não já dá um medo do calor que vai fazer durante o dia?

Já estava no aeroporto desde a meia-noite, então capotei na cama, tentando não pensar que já estava amanhecendo. O quarto era escuro, com cortinas pretas e ar condicionado, e dava para eu me insular do quente mundo árabe lá fora.

Acordei ao final da manhã. Nesta parte do mundo é costume se fazer a siesta — provavelmente foi dos árabes que os espanhóis e portugueses aprenderam. O calor é demais, então as lojas fecham para almoço e só reabrem umas 4 da tarde, para então ficarem abertas até altas horas, lá pelas 10 da noite ou mais. Almocei 0800 no hotel, patrocinado pela cia aérea (comida genérica de buffet, nada muito árabe), e às 3h da tarde eu saí pra ver qual era, e começar o meu bordejo.

As ruas ainda exalavam aquele calor de tarde de verão no Brasil, aquelas tardes luminosas e abafadas em que a luz do sol no asfalto lhe dói na vista e você quase vê miragem. Às vezes passavam carros, mas parecia que eu era o único maluco saindo a pé àquela hora. Perguntei no hotel qual a direção do centro, para confirmar, e como de costume nestes países tradicionais da Ásia e África, me responderam o que eu deveria fazer em vez de me responderem o que eu havia perguntado. (Aqui é comum que, sobretudo os homens, julguem saber o que é melhor pra você e lhe digam o que fazer). O cara me explicou que o centro era longe, que estava calor, que eu devia pegar um táxi... tudo menos o raio da direção que eu perguntei. Insisti, fiz que ia embora, e perguntei novamente se era pra aquele lado, e ele confirmou.

Você deve imaginar o Catar como as imagens que vê daqui e de Dubai com aqueles arranha-céu reluzentes, que aparecem em filmes e novelas. Saiba que aquilo está longe de ser representativo. Aqueles prédios existem, mas são só o centro financeiro e empresarial. O grosso da cidade é muito menos glamuroso, e repleto de lojas da e para a classe trabalhadora imigrante (aqui sobretudo árabe e indiana). Eis a realidade:
Ruas comuns não longe do centro em Doha, capital do Catar. Muito mais mundano do que você imaginava, não?
Trabalhadores imigrantes papeando na rua.
Ruas vazias à tarde. Um calorão da miséra, e só eu maluco caminhando.
As ruas vão ficando mais arrumadas conforme nos aproximamos da orla. Percebam que aquele arco são como duas mãos empunhando cimitarras cujas pontas se encontram no ar. Lá ao fundão os prédios altos do centro empresarial.

Em meio ao concreto quente, você vê algumas palmeiras e muitos bancos. Haja banco. Afinal, aqui é um centro de circulação de dinheiro.

O Catar é um país estranho. A população catarense (ou qatari) não é mais que 15% — todo o restante são trabalhadores imigrantes. Parece uma nação fantasma, pois a coisa mais difícil é encontrar um qatari. Eles são a classe rica, dominante, dona dos empreendimentos mas raramente vista. Na Qatar Airways, por exemplo, os tripulantes são romenos, chineses, indianos, egípcios... "Ninguém é do Catar", me disse sorrindo um funcionário do Sri Lanka, quando perguntei.

O país tem o segundo maior PIB per capita do mundo, atrás apenas dos Emirados Árabes Unidos. O dinheiro, é claro, fica todo concentrado na classe rica. São bilhões em reservas de petróleo e gás natural, e mais em investimentos ao redor do mundo, como no Banco Santander no Brasil. Aqui é uma monarquia absolutista à moda antiga, com a família do emir (Tamim bin Hamad Al-Thani) mandando em tudo. São eles os donos da Al Jazeera, o maior canal de notícias do mundo árabe, e agora sua menina dos olhos é a Copa de 2022, a ser realizada no Catar. Tudo aqui faz referência a essa conquista de sediar a copa (certamente comprada da FIFA com muitos petrodólares).
No meu hotel, retratos do emir (à esquerda) e do seu pai, que em 2013 abdicou em seu favor.
Entradas charmosas para os bancos, na rua.
Praça com palmeiras. À sombra ficam os trabalhadores fazendo a siesta.

Depois de caminhar uns 40 minutos debaixo do sol de lascar, cheguei à beira-mar, a charmosa orla de Doha chamada de corniche, do francês. Lá há souqs, mercados tradicionais árabes (como as medinas) no centro antigo e também o Museu de Arte Islâmica, patrocinado pelo emir. A entrada é franca, e foi lá que passei boa parte da tarde enquanto sol abaixava. O museu é lindo, e eu recomendo a visita. (Além das exibições, o legal foi ver os funcionários falando comigo em árabe, achando que eu era da região).
Corniche, calçadão na orla de Doha, no Catar.
Vista para o Museu de Arte Islâmica, e o mar do Golfo Pérsico.
Vista da entrada para o museu.
Eu lá à entrada.
Jóias.
Tapetes antigos. As exibições vão do Norte da África ao Irã (antiga Pérsia), mostrando artes do mundo islâmico.
Esta é a cafeteria do museu, com vista para o mar e para o centro financeiro lá ao longe. Sentei-me a uma daquelas belas almofadas brancas lá embaixo para saborear um café.

O centro financeiro, como você deve imaginar, são prédios e mais prédios com escritórios de empresas. Não há muito o que fazer, muito menos a pé. Preferi ir o centro antigo, bem conservado.

Caído o sol, fui circular nos souqs, o mercado. Quando cai a tarde as ruas ganham vida, e de repente elas se enchem de árabes em suas túnicas brancas, de imigrantes indianos com suas calças compridas empoeiradas, e de alguns poucos turistas. O mais difícil de ver são mulheres. Os imigrantes aqui são sobretudo homens que vêm sem suas famílias. (De acordo com o censo de 2013, 73% da população do Catar é masculina). As poucas mulheres que você vê estão em geral de preto e bem cobertas.
Bugingangas mil no mercado. Vendedor, com cara de indiano, animado ao telefone.
Duas mulheres conversando nas ruas do centro antigo.
Vai uma refeição? Menu do dia em árabe.
Cavaleiros (acredito que estes sejam qataris) no centro ao entardecer.

Nas ruas do centro antigo também chamam a atenção as aves. Há lojas de falcoaria por toda parte, e até mesmo um hospital de falcões que, ao menos na fachada, faz inveja a muitos hospitais brasileiros de gente. Há dezenas de aves coloridas à venda nas ruas, como papagaios e araras trazidos das Américas Central e do Sul (de onde são nativos). É uma sensação estranha de ilegalidade, essa venda assim descarada às vistas de todos. Claro que aqui é legal, pois o emir permite o que quer, mas dá aquela sensação de que a qualquer hora vai haver uma batida do IBAMA. Só que não.
Mercado de aves exóticas, impressionando os turistas e sobretudo as crianças.
Hospital de falcões. Vi alguns que pareciam saudáveis pelas lojas, mas tensos e nada alegres. Afinal, qual é o animal que gosta de viver amarrado? Ainda mais falcão.

Com o anoitecer, as pessoas vão deixando seus trabalhos e você começa a ver muitos fazendo cooper na orla. O calçadão, antes quieto, fica bem movimentado. Também presenciei a chamada para a quarta oração do dia, das cinco que os muçulmanos devem fazer. Veja o movimento na rua e o chamado do muezim no vídeo. 1 minuto da vida em Doha. (O chamado não é gravado, é sempre feito na hora).



Quanto a mim, era quase hora de voltar ao hotel para jantar. À meia-noite a van me levaria novamente ao aeroporto, para desta vez voar — inshallah! Fiz o caminho de volta, a noite ainda quente. Portanto, 24h depois da conexão perdida estava lá eu para pegar o mesmo voo no dia seguinte. Acabou sendo um daqueles males que vêm pra bem, pois me permitiu ver mais um país. Agora, vamos ao destino: Indonésia, aí vou eu.

Deixo vocês com a bela vista do mar e do centro financeiro de Doha à noite.
Ao fundo à esquerda, o Centro Cultural Islâmico (que oferece cursos de árabe, mostras de arte, etc.). À direita, o monumento da ostra. Antes de se descobrir petróleo e gás natural, a economia do Catar girava em torno da venda de pérolas.
Calçadão na orla, jardins, e o centro financeiro iluminado ao fundo.
Vista do centro financeiro à noite. Aquele prédio em formato de camisinha fica mudando de cor. Se o arquiteto não se tocou na semelhança ou se fez a propósito, não sei.