quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Visitando La Paz: Centro histórico, o Mercado das Bruxas, as Cholitas e o Carnaval boliviano

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La Paz oferece uma genuína mistura de cultura indígena e colonização espanhola. Apesar dos pesares que observei no post anterior, a cidade tem uma série de pontos interessantes a ver  e comidas típicas a experimentar (a Bolívia é um dos poucos países do mundo onde não existe McDonald's!), e música a ouvir, contemplando assim todos os sentidos. Se você vai gostar ou não são outros quinhentos, mas valem a pena conhecer. Aqui neste post incluo ao final alguns vídeos de música e dança ao vivo que assisti. 

O centro histórico de La Paz, ainda que suas ruas estreitas e íngremes façam você se sentir emboscado quando passa um ônibus lançando fumaça preta no ar e eliminando o pouco oxigênio disponível aqui a 4.000m de altitude, tem um casario colonial bonito, e praças legais de ver. Prepare-se para os pombos. 

A Basílica de São Francisco, de 1758, em estilo colonial barroco.
A catedral metropolitana em estilo neoclássico, de 1835, na Plaza Murillo, o coração do centro.
O Palácio de Governo, na mesma praça. A coisa mais comum nas ex-colônias espanholas da América Latina é ter, como em algumas cidades do Brasil, uma praça central com a catedral de um lado e a prefeitura ou o palácio de governo do outro. Retrato da parceria da época entre a Coroa como poder temporal e a Igreja como poder espiritual.
À entrada do palácio, com os incas me olhando.
Duas observações. La Paz é onde fica o governo, mas não é exatamente a capital. Formalmente, a capital da Bolívia é a cidade de Sucre. É o mesmo que se passa na Holanda, onde a capital é Amsterdã mas o governo e todas as suas instituições ficam em Haia. 

Segundo, você talvez tenha notado que as igrejas aqui não são assim tão antigas assim, ainda que a cidade seja de 1548. Salvador e outras cidades coloniais têm hoje ainda igrejas dos idos de 1600. A razão é que La Paz tornou-se a cidade principal da Bolívia há relativamente pouco tempo, só no século XIX. Antes, era Potosí a maior cidade boliviana, e que chegou a se tornar a segunda cidade mais populosa do mundo no século XVII, atrás apenas de Paris. Lá havia a maior mina de prata da Terra, que os espanhóis exploraram sem dó 
 nem da terra e nem dos indígenas que escravizaram para esse trabalho. Dizem que era tanta prata que podia-se vê-la na superfície sem nem cavar. Foi o equivalente boliviano do que tivemos em Minas Gerais com Ouro Preto.  


Como dizia Eduardo Galeano, escritor uruguaio, Portugal e Espanha tinham a vaca mas não bebiam o leite. Exploraram toneladas de ouro e prata das Américas, mas quem se industrializou e enriqueceu foram França, Inglaterra e Holanda. Seja como for, vale a pena caminhar por estas ruas de casario colorido do centro histórico de La Paz.

O centro de La Paz é relativamente compacto, e se tiver fôlego você pode fazer tudo a pé, sobretudo essa parte antiga.

A Calle Jaén é das ruas mais populares entre os turistas estrangeiros. Arrumadinha, é cheia de lojinhas de produtos ecológicos, cafés tradicionais, souvenirs, essas coisas. É bonita, e está bem conservada.
Daí a frente você encontra as lojinhas e cafés para turista. Não é nem um pouco representativo do que é La Paz como um todo, mas é uma área bonitinha e gostosa de visitar.

Você certamente não deixará de notar, ruas afora, as personagens mais conspícuas de toda a Bolívia: as cholitas, mulheres com chapéus-coco ingleses do século XIX.  (O nome vem de chulo, que em espanhol pode ter o sentido de "bonitinho". Então las cholitas são tipo "as bonitinhas").


A história é curiosa. Como estudamos na escola, a Inglaterra aproveitou-se imensamente da independência das ex-colônias de Portugal e Espanha nas Américas. Passou a fazer comércio diretamente conosco e a empurrar-nos coisas de que muito necessitávamos neste calor dos trópicos, tais como casacos de caxemira e patins de gelo. Foi o mesmo com esses chapéus-coco, moda inglesa do século XIX e que eles venderam forçadamente à Bolívia. Os homens bolivianos não se interessaram nem um pouco. Mas quem adotou a moda acabou sendo a mulher andina, que os utiliza até hoje, sobretudo as mais velhas. Juntos com suas roupas coloridas largas e o par de tranças compridas no cabelo, fazem a indumentária típica das cholitas que você vê Bolívia afora.

Cholitas. O chapéu-coco, que a mulher ali à direita usa, tornou-se tradicional entre mulheres andinas na Bolívia. Se você quiser ver uma coisa bem esculhambação, assista à luta-livre pastelão das cholitas em El Alto. É de mentira, tipo o tele-catch que passava na TV, e alguns dos lutadores são inclusive homens vestidos de cholita. Não cheguei a ir ver, mas fica a informação. Qualquer um saberá indicar onde é.

Uma coisa um tanto bizarra e que eu fui ver foi o Mercado das Bruxas, uma seção dos mercados de rua dedicada a remédios indígenas, ingredientes para rituais religiosos e coisas do tipo. Algo parecido com o que, sabendo onde procurar, você encontra na Bahia ou no Rio de Janeiro. Só que aqui é mais à vista. 


Os produtos vão desde ervas e sementes medicinais até pó de lagarto seco para cicatrizar feridas e fetos de lhama (não me pergunte pra quê).

Garrafas com cara de catuaba e ingredientes de todos os tipos no Mercado das Bruxas.
Pode ser um tanto bizarro à primeira vista ("coitadinha da lhama..."), também tenho pena, mas lembre que foram os espanhóis que começaram a levar às espécies aqui à beira da extinção. Os indígenas as utilizavam de forma sustentável.

Fica à beira da Rua Sagarnaga, famosa por seus brechós de têxteis e produtos andinos a preço de banana. Se você for também ao Peru, programe-se para comprar as coisas na Bolívia, pois são aproximadamente a metade do preço, e quase sempre os mesmos produtos. 

Não, não comprei nenhum remédio, e nem lhama seca. Satisfiz-me com os mates de coca para combater o mal da altitude (ver Chegando aos Andes: Entre a altitude e as folhas de coca em La Paz, Bolívia). 


E para comer? 
Certa vez eu estava passeando com uma amiga estrangeira no centro de Salvador, na Bahia, e ela  habituada à Europa  perguntou se poderíamos entrar em algum café para ela usar o banheiro. Eu tive que segurar a risada, e expliquei que ali havia restaurantes, bares, botequins, mas nada sequer semelhante aos aconchegantes cafés da Europa. La Paz é parecida, só que vi bem menos restaurantes, pois acho que o hábito brasileiro de almoçar em buffets na rua não chegou à Bolívia.


Você aqui se vira ou com comidas de rua (se não tiver resistência a essas comidas mais "povão", estilo mercadão e parada de ônibus), ou em restaurantes de hotel e outros para turista, se quiser algo mais refinado. Eu fiquei com uma mistura dos dois. Na rua, comi salada de frutas em copo de vidro e empanadas melhores do que as que havia encontrado em Santiago do Chile. No hotel, comi trilogia de quínoa e outras criações com maravilhosos produtos dos Andes.

Tia me vendendo suas empanadas trazidas de casa numa caixa de papelão. Ali ela ficava, na calçada, anunciando o que tinha trazido pra vender ao final da tarde.
Simples, apenas com queijo dentro, e às vezes massa de batata. Custou-me menos de 1 real, e bem saborosa. 

Gosto dessas coisas simples, despretensiosas, e com sabor. Quando eu digo que a Bolívia me chamou a atenção por certos hábitos que eu não havia visto em outros lugares, as pessoas às vezes ficam sem entender. Mas nunca, em nenhum outro lugar, nem nos países ditos "os mais civilizados" como na Europa ou Japão, alguém havia me vendido salada de fruta no copo de vidro e dito pra eu levar embora e reencontrá-la na praça depois. Me chamou a atenção, primeiro, por não gerar o lixo dos copos descartáveis que hoje estão por toda parte. E segundo pelo nível de confiança e agregação social 
 no Brasil, as pessoas levariam o copo embora, e mesmo na Europa ninguém confia que você vá embora e volte pra trazer. Só vi na Bolívia, e adorei. (E a propósito, a salada estava muito boa.)

Este é um que NÃO consegui encarar da comida de rua boliviana, mas eles adoram, uma espuma branca açucarada (se você soprar, ela voa) por cima de um doce artificial. Urgh.

Vamos às partes mais sofisticada agora, que você só acha em hotel e outros lugares pra turista 
 mas que valem a pena. A comida boliviana mais famosa mundialmente no momento provavelmente é o quínoa, este cereal que o povo daqui cultiva há muitos séculos e que descobriu-se ser riquíssimo em nutrientes  na Europa é um dos queridinhos dos macrobióticos e vegetarianos, mas custa um tiro. Aqui na Bolívia fazem de tudo com ele, desde sopa a hambúrguer, e até sobremesa. 


As batatas, caso você não saiba, são nativas aqui dos Andes e foram domesticadas em dezenas de variedades. Então são comuns também. ("Batata, arroz, quínoa e macarrão  na Bolívia eles lhe servem quatro carboidratos no mesmo prato!", comentou certa vez um amigo meu biólogo, revoltado.)
Quínoa, pra quem não conhece.
Preparando-me para comer um hambúrguer de quínoa com salada. 
Agora sim, a minha trilogia de quínoa (invenção do chef, não é um prato tradicional). Da esquerda pra a direita: creme de quínoa com chantilly, pavê de quínoa, e sorvete de baunilha com quínoa. Haja quínoa, mas estava tudo bom.

Antes que vocês corram para a cozinha para buscar algo para comer, eu prometi mostrar a música boliviana e falar um pouco do seu Carnaval. Fechemos o post com isso.


Afora o Brasil, o Carnaval boliviano (particularmente na cidade de Oruro) é talvez o mais expressivo das Américas, quiçá do mundo. Os bolivianos se mobilizam aos milhões para essa festa que fala tanto da sua cultura e história. A gente no Brasil pouco ouve falar porque, desde o Golpe de 1964 e a chamada "Guerra Fria cultural", buscaram desfazer as nossas relações culturais com o resto da América Latina e voltar a atenção apenas para a cultura dos EUA (daí haver uma invasão de quadrinhos norte-americanos, música, etc.)


Eles aqui misturam as violas árabes aprendidas pelos espanhóis às flautas e aos tambores dos indígenas. Os dois vídeos abaixo de um ótimo show que assisti dão uma ideia. 


Apresentação de música tradicional boliviana em La Paz, num restaurante.


Neste eles tocam e cantam o clássico Carnavalito, talvez a mais famosa música do carnaval andino.

Num dos dias durante a minha estadia em La Paz, fizemos um tour guiado que incluiu visita a um bairro onde se fazem artesanalmente as fantasias de Carnaval, e eu descobri que o carnaval boliviano é muito mais rico do que parece 
 se não em dinheiro, em cultura.


Na Europa, terra de origem do Carnaval, pouco dessa cultura restou. Há os tradicionais personagens como o pierrot e a colombina, que mantêm-se em poucos bailes fechados para europeus saudosistas em lugares como Veneza, mas em geral o povo na Europa hoje (nos poucos lugares que ainda festejam o Carnaval) sai à rua para pular e beber, e pronto. A América Latina construiu uma cultura carnavalesca muito mais rica. Aqui na Bolívia eles têm dezenas de personagens que fazem referência à sua história, mesclando lendas indígenas, o passado colonial do país, e as festas católicas trazidas pelos espanhóis. 


Nesta dança abaixo, a mocinha indígena  vestida com o característico vestido de rendas colonial espanhol que se vê do Chile ao México, no fresco algodão indígena que os espanhóis não conheciam (eles usavam lã e linho antes de vir para as Américas) --- é cortejada pelo capataz, que historicamente eram mulatos ou negros usados como "capitães do mato" para controlar os escravos indígenas na Bolívia (daí seu açoite e cabelo encaracolado). Na ponta das tranças do cabelo, as três cores da Bolívia. E na mão, o chapéu-coco de cholita.



Se em outras partes do mundo o Carnaval é relacionado a certo tipo de música e dança (ex. samba no Rio de Janeiro), na Bolívia são muitos os ritmos e estilos. Algumas danças lembram danças gaúchas, já outras, as quadrilhas juninas do Nordeste.


São muitos os personagens no Carnaval boliviano, desde aquele capataz até Pachamama (a Mãe Terra) à Virgem Nossa Senhora da Candelária com suas 7 virtudes, o Arcanjo Miguel, e o capeta acompanhado dos 7 pecados capitais. Rola de tudo, no que parece ser uma linda mistura do nível que só a criatividade latino-americana é capaz de conceber. Fica pra quando eu for ver o Carnaval da cidade boliviana de Oruro, o mais famoso, e declarado pela UNESCO Obra Mestra do Patrimômio Oral e Intangível da Humanidade. Às vezes as agências internacionais dão maior valor às nossas tradições culturais que nós mesmos. 

Deixo-vos por ora com as cholitas.






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