Na cozinha do albergue, a senhora que parecia ser mãe de um dos rapazes que administravam o lugar nos servia um café da manhã de frutas frescas, pão, manteiga, (nes)café, e ovos mexidos, que em espanhol recebem a curiosa alcunha de huevos revueltos. Tomei café com a minha mãe, que me acompanhou nesta viagem, e um par de canadenses e australianos que me apresentaram a horrível vegemite, uma pasta salgada que lá na Austrália eles passam no pão. Fiquei com os meus ovos revoltos.
Verdade seja dita, a culinária chilena não me deixou lá grandes impressões. Há um certo foco em frutos do mar (compreensivelmente para um país rente à costa como o Chile), mas nada muito especial ou que lhe chame muito a atenção. Há peixe ao molho, como se acha em qualquer hotel mundo afora, sopa de ostras, essas coisas.
O que você não pode sair sem experimentar é o mote con huesillos, que você encontra facilmente em qualquer lugar da rua. Minha mãe sintetizou a mistura como: um copo de chá mate, milho de lata, e metades de pêssegos em calda, tudo misturado. Na real, são grãos de trigo, e não há chá mate, mas sim um caldo doce com canela — mas o gosto é mesmo de Chá Mate Leão, daquele que você compra já no copo pra beber.
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Gosto de chá mate com milho de lata e pêssegos em calda. É gostoso, mas se você tomar demais enjoa. |
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Vendedor de mote con huesillos na rua. São tão onipresentes nas ruas daqui quanto pipoqueiro no Brasil. |
Uma outra tradição chilena são as empanadas, mas você terá que saber onde comprá-las. Não caia na besteira de achar que todas são boas. É igual pastel no Brasil, só que as empanadas têm mais massa, e muitas vezes não são fritas, mas sim assadas. Comi uma que tinha gosto de nada, e textura de sola de sapato. Mas há outras boas. Os recheios são diversos.
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A minha primeira empanada no Chile. Não tinha gosto de nada, só massa, mas depois achei umas que não eram más. Não deixei propina (gorjeta em espanhol) para o tio. |
Mas eu falei que agora iríamos aos bairros boêmios. Estamos falando sobretudo de Lastarria e Bellavista. Santiago, em geral, tem ruas bastante agradáveis, como sugeri no post anterior. Mas se o centro for muito movimentado ou comercial para o seu gosto, ou se você preferir um clima mais jovem, bonito, de barzinhos e vida noturna, é cá pra esses bairros que deve vir. Só tive foi, como noutras partes do Chile, dificuldade em pagar com cartão de crédito estrangeiro, então é melhor se preparar para usar dinheiro em espécie.
Lastarria me pareceu um bairro mais posh, alta classe, elegante com luxo, aonde vão os que têm dinheiro. Bellavista é mais descolado e estudantil. No entanto, ambos são bonitos e agradáveis para passear. É também onde você pode encontrar bons restaurantes.
Tomamos em Lastarria um pisco sour, o característico coquetel do Chile e do Peru feito com pisco (um destilado transparente de uva, sem sabor da fruta), suco de limão e claras de ovo batidas. Não gostei muito da ideia de beber clara de ovo, mas no fim das contas o drink é saboroso. (Dizem que no Peru eles usam mais claras, mas sobre o Peru falaremos depois).
Já para chegar a Bellavista é necessário cruzar o Rio Mapocho, que se outrora fez Pedro de Valdivia considerar este um bom lugar para fundar Santiago em 1541, hoje não passa infelizmente de um córrego barrento e tristemente degradado.
Atravesse-o e do outro lado estará na fuzarca estudantil de Bellavista, com a Universidad Católica ali perto e bares e restaurantes por toda parte.
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O charmoso bairro Lastarria. |
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O pisco sour. Saboroso! |
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Para chegar a Bellavista é preciso cruzar o Rio Mapucho, hoje neste estado tão deplorável. Cabe até gente acampando no que costumava ser o leito do rio. |
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Bellavista. |
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Este é o agradável Pátio Bellavista, pra brasileiro que gosta de shopping. |
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Toparia? Eu acho engraçado é que inclui coca light. |
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Ruas em Bellavista. |
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Grande atmosfera jovem estudantil em muitas ruas. |
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Sopa de ostras. |
"Pablo Neruda" era o pseudônimo de Neftalí Reyes, e que ele depois adotou como o seu nome legal. A inspiração foi um escrito checo, Jan Neruda, de quem gostava. (Não sei de onde veio o "Pablo"). Gabriel García Márquez dizia que Pablo Neruda foi o maior poeta do século XX em qualquer idioma.
Era um romântico ("Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras", dizia), e como outros românticos antes dele, passou depois a uma fase social, questionadora.
"Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando."
— Pablo Neruda
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"É Proibido
É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.
É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,
Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É proibido deixar os amigos
Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,
Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,
Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,
Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,
Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,
Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É proibido não buscar a felicidade,
Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual."
— Pablo Neruda
O Chile já havia recebido antes um outro Prêmio Nobel de Literatura, para Gabriela Mistral (1889-1957), a primeira pessoa a ser laureada com ele na América Latina (em 1945). Este era o pseudônimo de Lucila de Maria del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, uma professora primária que depois integrou-se ao ministério da educação e tornou-se diplomata chilena.
"Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu. Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu. Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu. Sê tu aquele que afasta as pedras do caminho." — Gabriela Mistral
Gabriela abraçou fortemente a causa indigenista e dos pobres da zona rural, apontando a exploração das elites governantes e dos países ricos sobre as massas da América Latina.
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Um simbólico mural à professora Gabriela Mistral na cidade de Santiago. Ao passar, transforma a realidade daqueles. |
Pablo Neruda viveu até 1973, ano do golpe militar. Neruda, por ser de esquerda, teve a sua casa invadida e seus livros, queimados. Ele faleceria naquele ano, apenas dois após receber seu prêmio Nobel de literatura, oficialmente por "complicações de saúde", mas suspeita-se que na verdade por envenenamento, já que os militares não queriam uma oposição intelectual daquele peso contra o regime que se instalava. Os chilenos foram proibidos de ir às ruas lamentar a morte de Pablo Neruda, mas o fizeram mesmo assim. (Em novembro de 2015, o governo chileno formalmente declarou que é "altamente provável" que Pablo Neruda tenha sido envenenado).
Houve queda no investimento privado, fuga de capitais — ou seja, gente de dinheiro tirando-o do país —, e surgiu uma crescente campanha midiática e de investidores estrangeiros contra o governo. Como em outras partes da América Latina, os Estados Unidos opuseram-se abertamente a essa repentina autonomia que contrariava os seus interesses nacionais. Documentos da CIA revelam que a meta era impedir Allende de governar. Segundo um desses documentos, o Presidente Richard Nixon — que veria-se envolvido mais tarde no caso Watergate — teria dito para "fazer a economia chilena gritar".
A mídia tratou de retratar Allende como um ditador soviético, e entre agosto e setembro de 1973 os militares tomaram o poder. O palácio presidencial La Moneda foi bombardeado pelas próprias forças armadas do país e com o próprio presidente dentro — algo inacreditável. Após um pronunciamento no rádio dizendo que não abandonaria o palácio, a versão oficial reza que Salvador Allende se suicidou, embora o tema seja controverso.
Seja como for, Pinochet governaria a mãos de ferro de 1973 a 1990, ano da reabertura democrática no Chile. As indústrias extrativas foram "devidamente" desnacionalizadas e voltaram a ser abertas ao capital estrangeiro. Mais de mil chilenos foram executados já no primeiro ano de governo. Mais de dois mil outros "desapareceram", como ocorrido nas ditaduras do Brasil e da Argentina. Como sempre, os EUA voltaram a demonstrar sobejo apoio ao novo Chile, como faz ainda hoje com regimes repressivos no Egito ou na Arábia Saudita. Pinochet viria a morrer em 2006.
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Estátua de Salvador Allende no centro de Santiago. "Tengo fe en Chile y su destino", é a frase ali marcada. Ele teria a dito no 11 de setembro de 1973, dia da sua morte. |
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O palácio presidencial La Moneda hoje. |
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O Museo de la Memoria y Derechos Humanos. |
Seguimos em busca de democracia de verdade na América Latina. Vindo a Santiago, não deixe de aprender mais sobre essa lição aqui vivida. Os anseios de Mistral, Neruda, Allende e outros milhões seguem vivos.
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