sábado, 6 de agosto de 2016

Bordejos em Dublin: Da universidade, ao bar, ao cemitério

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Bordejos em Dublin: Da universidade, ao bar, ao cemitério

A biblioteca da universidade Trinity College em Dublin, uma das mais famosas do mundo. Esta biblioteca foi filmada como a biblioteca dos Jedi em Guerra nas Estrelas: Episódio II - O Ataque dos Clones (2002).
Da universidade, ao bar, ao cemitério. Parece algum estudante boêmio declarando sua rotina ou sua perspectiva de vida. 

Na verdade, é um resumo do meu roteiro por Dublin. A capital irlandesa pode não ter o charme de uma Londres ou Paris, mas tem seus pontos interessantes. E não dá pra visitá-la sem ver o campus do famoso Trinity College, os tradicionais bares escuros da cidade, e visitar o Glasnevin Cemetery para aprender um pouco mais sobre a história deste país. 

A tríade, no fim das contas, casa-se bem com as predileções favoritas dos irlandeses: beber, ler & conversar, e virar uma boa história até depois de morto. Os irlandeses amam um "causo", e deve ser por isso que conseguem fazer com que até um tour no cemitério seja interessante. (Nunca antes, como nunca em nenhum outro lugar, eu curti tanto uma visita a um cemitério como aqui.)

Permitam-me começar pelo meu ponto de partida, do meu inglamuroso albergue às margens do Rio Liffey, no centro da cidade.
Na noite anterior, alguém celebrava aniversário enquanto outros buscavam algo no computador. Eu observava. Apesar da simplicidade, estes albergues de Dublin marcam a vida de muita gente.
Four Courts, um dos prédios mais bonitos do centro de Dublin, que abriga a Suprema Corte irlandesa. Ele contrastava com o meu albergue simples do outro lado do rio. Era sempre a vista inicial no começo das minhas andanças na cidade.

Dublin é uma cidade melhor feita a pé. Embora seja uma capital, eu a acho até pouco movimentada. Fora do centro, você se mete por várias "ruas de trás" onde estará a sós com mendigos bêbados no chão.

Há um transporte público "maravilhoso" onde, como noutras partes do mundo anglófono, o motorista faz as vezes de cobrador e não te dá troco  é preciso pôr numa caixinha o valor exato da passagem, ou a diferença (a mais) que você pagar vai pro brejo. Certa vez dei a mais, e me disseram que eu fosse na central de transporte público do município colher os meus 50 centavos de euro de troco de volta (depois o Brasil é que é burocrático).

A cidade tem umas ruas bem bonitinhas, sobretudo no sul, como a ampla Av. O'Connell, a extensa Grafton Street, e as muitas ruas estreitas da área do famoso Temple Bar (voltaremos a ele).

O Rio Liffey divide a cidade não apenas geográfica, mas também socialmente. Os dublinenses do sul, área mais rica, são vistos como os mauricinhos e patricinhas, enquanto os dublinenses do norte são vistos como os malandros. É uma categoria própria de piada aqui, os irlandeses jocosos como são. Tudo na cidade vem com uma historieta ou um apelido.

No norte, por exemplo, há o maior monumento da cidade, uma agulha imensa apontada pro ar. Todos a conhecem como "o pinto" (the dick). Não sei qual a utilidade ou a beleza dele. (Que é grande, é, embora fino.)
"O pinto", maior monumento de Dublin. Poucos compreendem a sua serventia.
A extensa Grafton Street,  no centro de Dublin.
Num dos extremos da Grafton Street está o St. Stephen's Green Park, área verde no centro da cidade.

Famosa escultura de Molly Malone. Ela, segundo a lenda, era uma vendedora de peixe durante o dia e prostituta à noite, aqui em Dublin. (Os peitos da estátua já dourados de tanto serem acariciados.)

Eu já comentei no post anterior como os irlandeses adoram um conto. Então nada mais natural que um dos pontos mais marcantes da cidade seja uma universidade, com uma das bibliotecas mais famosas do mundo. Os irlandeses são orgulhosíssimos do seu Trinity College.

Esta universidade tem um papel imenso no senso de identidade dos irlandeses. Aqui está aquele que é tido como o maior tesouro nacional da Irlanda, o Livro de Kells (é claro que o maior tesouro irlandês seria um livro). Esse livro, produzido por volta do ano 800, é uma versão colorida, ilustrada, e escrita à mão dos quatro evangelhos do Novo Testamento. É a maior obra do monasticismo medieval irlandês.
No outro fim da rua, as proximidades do campus principal do Trinity College, a principal universidade irlandesa.
Entrada da biblioteca do Trinity College. Há um custo de entrada para visitar a exibição de manuscritos antigos, dentre eles o Livro de Kells.
Uma página do Livro de Kells, com os quatro evangelhos em Latim. (Livros de RPG copiam descaradamente deste estilo céltico e bretão medieval.)
Os irlandeses, você pode não saber, gostam de dizer que "salvaram a civilização", pois foram dos poucos lugares da Europa Ocidental a conseguir manter o cristianismo (e seus manuscritos em latim) nos primeiros séculos após a queda de Roma, com as invasões bárbaras germânicas e, depois, aquelas dos árabes no sul e dos vikings no norte  nenhum deles cristão. A Irlanda, ilha remota cá no noroeste da Europa, conseguiu salvaguardar muita coisa, dizem.
Eu na biblioteca do Trinity College em Dublin.
Charmoso estilo da biblioteca do Trinity College, uma das mais lindas do mundo.
Campus do Trinity College.
Aqui eu quase esbarrei em Jack Gleeson, o ator que fez Joffrey no seriado Game of Thrones. Apesar do personagem detestável, dizem que o ator é muito gente boa. Ele é irlandês e estuda aqui.

Posto o sol, era hora de ir pro bar. Os bares aqui estão sempre cheio  são o ponto de encontro e socialização dos irlandeses. O mais famoso deles é o Temple Bar, que dá nome a toda uma área de bares no centro. 
Temple Bar, uma das áreas mais badaladas do centro de Dublin.
Alguns outros fazem mais o estilo taverna medieval, com muros de pedra e barris de madeira.

Em qualquer lugar da Irlanda você verá um bafafá danado em torno da Guinness, uma cerveja preta, "bebida nacional" (talvez dividindo espaço com o uísque cremoso Bailey's), mas objeto de um conversê danado. Não sou referência pra gosto de cerveja, mas confesso que não vi nada de especial nela. Achei a cerveja aguada e com leve gosto de queimado. Deu-me a impressão de que só bebem aquilo por tradição mesmo  mas cada um com seu gosto.

O ambiente é sempre escuro, aquele lugar onde você se refugia enquanto a chuva fria cai lá fora.
Experimentando a Guinness, cerveja (preta) nacional irlandesa, num dos escuros pubs de Dublin. 

O dia seguinte foi um belo domingo de sol, dia perfeito para ir ao cemitério. 

O tour de História oferecido no Cemitério Glasnevin, em Dublin, é dos mais interessantes em que já fui. Certamente o mais interessante que já fiz num cemitério, em qualquer lugar do mundo. 

Um guia do próprio cemitério acompanha os visitantes pelas covas, mostrando  e contando histórias de  personagens importantes da história da Irlanda enterrados ali. Quando me recomendaram, eu achei esquisito, mas depois adorei. Os irlandeses são excelentes contadores de histórias. 
Nosso tour pelo Cemitério Glasnevin.
Não tenho como replicar aqui todas as histórias que o guia contou, é uma lista enorme de fulanos e beltranos que aprontaram em vida e vieram a se reencontrar ali. Mas tenho de falar ao menos de Daniel O'Connell, o personagem mais ilustre a "descansar" nesse cemitério. 

Pra você ter ideia, Daniel O'Connell (1775-1847), conhecido como "o grande libertador", serviu de inspiração até para Gandhi, em seus métodos de não-violência e desobediência civil como forma de protesto. O'Connell foi dos maiores nomes na luta secular dos irlandeses por independência do Império Britânico  esta só obtida em 1922, após os espasmos da Primeira Guerra Mundial.

A Irlanda comeu o pão que o diabo amassou sob o jugo inglês. Os irlandeses, em sua maioria católicos (em contraste aos ingleses protestantes), eram desprovidos dos direitos mais básicos no império. Penavam como cidadãos de segunda classe. Em meados do século XIX, na chamada Grande Fome (1845-1852)  quando uma peste afetou as plantações de batata, principal fonte de energia dos irlandeses  os lords ingleses basicamente deixaram os camponeses irlandeses morrerem às pilhas, e a Irlanda chegou a perder 1/4 da sua população, entre mortos e emigrantes.

Quando chegou a Primeira Guerra em 1914, os ingleses esperaram que os irlandeses lutassem pelo seu império. Os irlandeses disseram que não serviriam nem o rei inglês nem o seu inimigo, o kaiser alemão, mas a Irlanda.
"Nós não servimos rei nem kaiser, mas a Irlanda."
Momento "centro espírita" no túmulo de Daniel O'Connell. (Mas não houve tentativa de fazer comunicação, não.)

Quando vier a Dublin, embeba-se o quanto puder em cultura irlandesa. E, agora você já sabe, jamais diga que eles e os ingleses são a mesma coisa. 



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