quinta-feira, 28 de maio de 2015

Mais Irã: lados difíceis


Esse aí sou eu, sem opção, tomando a marvada mistura 3x1 (café solúvel, leite em pó e  muito  açúcar) em lugar de café de verdade. Foi a única coisa que achei na rua, no centro de Teerã. Debati-me inúmeras vezes por lojas, com o meu afiado persa, perguntando onde tinha Kafé, Koffee, Kefir, e todas as variantes pensáveis dessa palavra que, eu sei, tem origem árabe e, portanto, deve soar parecido em persa. No entanto parei quando a minha amiga turca me alertou que Kafir, parecido o suficiente, quer dizer "infiel", "pessoa que rejeita Deus", e é uma ofensa das mais perjuradas entre os muçulmanos. Resolvi parar antes que me metesse em alguma encrenca. 

Dei-me conta de que alguns elementos  e experiências  ficaram de fora do post anterior, então resolvi complementa-lo antes de ir-me embora de Teerã. 

Numa dessas idas e vindas pelas ruas e parques, desviando-me das motos na calçada que de mim não desviavam, encontrei Saddam Hussein. Não o original, é claro, afinal eu sobrevivi a todos os atentados de atropelamento. Mas um empalhado, no Museu da Paz de Teerã. 

O Museu da Paz de Teerã é um pequeno museu gratuito, no meio do Parque Shahr, no centro da cidade. Lá uma moça simpática, falando num razoável inglês  com o forte sotaque persa que eu sinto não poder imitar aqui por escrito  nos acolheu amigavelmente, dizendo que o museu era gratuito e nos dando aquelas brochuras coloridas que não servem de muita coisa. O museu, no entanto, é estranho. Ele trata particularmente da Guerra Irã-Iraque (1980-1988), quando Saddam Hussein, o finado ditador iraquiano, atacou o Irã com o apoio dos Estados Unidos  que queriam derrubar o recém-instalado regime islâmico no Irã. O museu é uma mistura de conteúdo didático colorido, como que para crianças, e imagens fortes de gente sofrendo a ação de bombas químicas (que civis iranianos sofreram durante a guerra), sequelas, gente doente, etc. É forte.
Saddam aqui, retratado como "brutal ditador", que ele realmente era. Minha avó, que jamais compreendeu o seu nome e o chamava de "Satanás", teria se entendido bem com os iranianos. Ao lado na sala havia um boneco desses de Hitler.

A quem não viu o filme Argo (ganhador do Oscar de melhor filme em 2013), eu recomendo ver. Ele dá uma pincelada no ocorrido aqui em 1979, que mudaria radicalmente a História do Irã. Eu gosto sempre de dar o pano de fundo e a síntese dos acontecimentos, pra vocês entenderem. Hoje se demoniza o Irã, mas o que não lhe faltaram foram safadezas estrangeiras. Permitam-me um breve mergulho na História. 

Da Idade Antiga até o século XX, a Pérsia/Irã sempre foi monarquia, às vezes mais unida, às vezes menos, e se sucedendo nas mãos de diversas dinastias que tomavam o poder, similar ao ocorrido na China. Aqui o rei era conhecido como Shah (ou , se você preferir a versão em português). De 1794 a 1925, reinou a dinastia dos Qajar, que mudaram a capital aqui pra Teerã e construíram o belo Palácio Golestan mostrado no post anterior

Mas essa foi a época do imperialismo europeu na Ásia, e embora o Irã não tenha sido uma colônia propriamente dita, ele foi assaltado pelos russos e pelos britânicos. Os russos tomaram-lhe território em duas guerras entre 1804 e 1828, e os ingleses gradualmente tomaram-lhe a independência econômica. Foi aqui no Irã em 1908 que se começou a "produzir" petróleo pela primeira vez no mundo. Não eram os iranianos, mas os sabidos ingleses que controlavam a produção através da antiga Anglo-Persian Oil Company, hoje chamada British Petroleum. Tinha tudo de anglo e nada de persa. O acordo era tão desigual que, afora os lucros da empresa, o governo britânico de Sua Majestade chegava a ganhar mais em impostos sobre as atividades da Anglo-Persian do que o próprio governo iraniano, dono do petróleo.

A coisa ficou feia nas várias oportunidades em que os iranianos tentaram mudar o acordo. Em 1919, a Grã-Bretanha tentou forçar o Irã a tornar-se um protetorado seu (uma espécie de submissão formal que incluiria pagar para a Grã-Bretanha protege-lo de outras potências estrangeiras), mas ela não conseguiu. Em 1925, um golpe militar derrubou o rei e levou ao poder os Pahlavi, a última dinastia. Eles foram responsáveis por muito da modernização forçada que o Irã experimentou. Shah Reza Pahlavi de repente impôs vestimentas e costumes ocidentais: incentivou as mulheres a abandonarem o véu, decretou por lei que os homens deveriam vestir-se obrigatoriamente em trajes ocidentais, mandou botar cadeiras nas mesquitas, que tradicionalmente têm só um tapete onde ajoelhar-se, etc. Ele quis imitar Mustafá Kemal Ataturk, que em 1922 constituiu a Turquia moderna após a queda do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, mas aqui no Irã a coisa não desceu muito bem. Tensões, revoltas.    

Agora a coisa começa a ficar interessante. Em 1941, em meio à Segunda Guerra Mundial, tropas soviéticas e britânicas ocupam o Irã e forçam a saída do tal Shah, pois ele era nacionalista demais. Seu filho Mohammed Reza Pahlavi, que seria o último Shah, assumiu. Ele seguiu com as tendências modernizantes do seu pai, mas era um tanto excêntrico. Diz a lenda que a sua esposa se banhava em piscinas de leite para amaciar a pele. 

O Shah era grande amigo dos EUA, e nesta época as petroleiras estrangeiras estupravam os recursos naturais do Irã. Só que desde o início do século já havia um Parlamento, que começou a tornar-se mais e mais crítico do Shah. Primeiro-ministro Mossadeq é um nome a lembrar aqui. Ele de vendido não tinha nada. Foi eleito e, em 1951, conseguiu aprovação no parlamento para nacionalizar o petróleo do Irã. Fedeu; em 1953, o exército com apoio da CIA e do serviço secreto britânico derrubaram Mossadeq, o mandaram preso por traição (vejam que ironia), e garantiram ao amigo Shah um governo autocrata, de rei, que duraria até 1979, quando não deu mais pra segurar a população insatisfeita.   

O Shah, em toda a sua mania de grandeza, ainda deu em 1971 uma mega-celebração de 2500 anos do Império Persa, da fundação lá atrás com Ciro, o Grande, no século VI antes de Cristo. Ele chamou líderes de todo o mundo e gastou uma dinheirama enquanto as pessoas permaneciam pobres e analfabetas  e o petróleo sendo levado. A classe clerical, em particular, era das mais insatisfeitas, já que, além disso, o Shah vinha destruindo uma série de tradições. Foi dali que emergiu o clérigo aiatolá Ruhollah Khomeini, crítico feroz do governo.   

Em 1963 Khomeini foi preso pelo regime e exilado na França. Ele só voltou ao Irã em 1979, quando protestos populares, greves e guerrilhas solaparam o governo do Shah. O Shah foi acolhido em exílio pelos EUA e nunca mais voltou. Milhões saíram às ruas para aclamar a chegada do clérigo. Um referendo aprovou a transformação da então monarquia numa República Islâmica, com Khomeini como o seu Líder Supremo. 
Khomeini em 1979, desembarcando do voo da Air France que lhe trouxe de 14 anos de exílio de volta a Teerã.
As relações com os EUA foram cortadas; o petróleo, nacionalizado; e a vida mudou completamente. Por um lado, as liberdades ocidentalizadas do regime do Shah foram suprimidas, e entrou a obrigatoriedade de as mulheres usarem o véu em público, etc. Por outro, houve mais assistência à população pobre, com melhoria na educação e saúde públicas e gratuitas. Foram facas de dois gumes: por exemplo, o novo governo tratou logo de separar meninos de meninas e inserir conteúdos islâmicos na escola primária, mas elevou a taxa de alfabetização de 45% à época da revolução a 98% em 2008. Enfim. E teve início esse estranho sistema político iraniano onde há um presidente eleito, que toma conta da governança do dia-dia, mas onde a última palavra é sempre a do Líder Supremo, um clérigo.

Khomeini governou de 1979 a 1989, quando veio a falecer já velho. Ele governou durante os oito anos (1980-1988) da Guerra Irã-Iraque, quando Saddam Hussein atacou o recém-reformado Irã para ganhar território, querendo aproveitar-se das turbulências. Os EUA e seus aliados europeus apoiaram Saddam com armas e empréstimos. O mais vergonhoso, contudo, foi o silêncio geral quando Saddam, pela primeira vez na História conhecida, atacou civis iranianos e curdos com armas químicas, matando milhares.

O Irã ainda assim venceu a guerra  feito do qual eles são orgulhosíssimos. Em 1991 Saddam Hussein então tentaria atirar para outro lado, invadindo o Kuwait e ocasionando a Guerra do Golfo, mas aí já é outra história. No Irã Ali Khamenei, outro clérigo, sucedeu Khomeini após a sua morte, e ele segue sendo o Supremo Líder até hoje. Os retratos de Khomeini e Khamenei você encontra por todas as partes no Irã, de lojas a prédios públicos a saguões de aeroporto.   
Prédio público por onde passei em Teerã. Na frente os retratos de Khomeini, à direita, e Khamenei, à esquerda.
Saí o Museu da Paz com as imagens nada pacíficas de iranianos queimados por arma química de Saddam. Na saída, a mesma gentil moça que nos havia acolhido nos ofereceu um caramelo, como que para aplacar o impacto.    

Uma das imagens mais icônicas de Teerã é o mural "Morte à América", com caveiras e bombas na bandeira dos EUA. Toma todo o lado de um prédio. Eu, embora não faça apologia de morte a ninguém, não quis passar por Teerã sem ver o dito-cujo, e é claro que vi. 
Em inglês está Down with the U.S.A. ("Abaixo os EUA"), mas o original em persa é "Morte à América", pelo que todo mundo diz. 
Esse, no entanto, é um mural antigo, que não me pareceu refletir muito sentimentos atuais. Eu perguntava onde ficava o lugar e a maior parte das pessoas nem sabia do que eu estava falando. Quando posei pra tirar foto, quem passava olhava curioso pra saber o que é que eu estava fotografando, como que se nem soubesse o que é que estava ali.

Enfim, eu queria dar essa contextualizada, até porque o Irã é rotineiramente apresentado como um país maligno (do tal "Eixo do Mal" de George Bush), enquanto outros que têm muita culpa no cartório se apresentam sempre como santinhos.

Agora, passando de pato a ganso, eu preciso dizer que essa foto acima é da internet, e não das que eu tirei. Não sei se deu azar, mas o telefone da minha amiga onde elas foram tiradas teve o infortúnio de, dias mais tarde, cair num banheiro iraniano e findar-se para todo o sempre. Os banheiros iranianos são dos locais mais tenebrosos de todo o mundo. Eles só perdem para os banheiros da Índia, na minha experiência. O vaso é sem vaso, daqueles no chão onde você deve obrar em pé. E, por alguma razão, os banheiros estão sempre encharcados, e não há papel e nem toalha de mão. É nessas horas que eu dou graças a Deus por ser homem. 

Posso sacanear com vocês e mostrar uma foto do que eu tive que encarar?
O naipe geral dos banheiros públicos no Irã. Nível Jogos Mortais. Mesmo em restaurantes, ou até nos aeroportos, não era muito diferente disso.
A única coisa boa  para ser justo  é que nunca faltava sabão líquido, graças a essa peça de criatividade aí que a gente bem que poderia imitar.
Não me pergunte qual é o nível de higiene nessas lanchonetes de rua de Teerã. Tomei várias vezes deliciosos sucos de melão (aquele ali verde), e não tive dor de barriga. A minha amiga uma vez teve. Enfim, use o seu discernimento (ou A Força) para saber quando consumir e quando não.
Mas Teerã é só o começo. Muito das belezas e História deste país estão em outras cidades, então é hora de partir. 

A maneira mais fácil de cobrir distância aqui no Irã é voando. Voos domésticos no Irã são muito baratos. Por coisa de 100 reais você toma voos de cabo a rabo no país. É claro, não é um país do tamanho do Brasil, mas tampouco é pequeno: o Irã é algo maior que a Região Nordeste, e maior que o Sul e o Sudeste juntos. Vá apreçar quanto sai um voo de Porto Alegre a Belo Horizonte, ou de Salvador a Fortaleza. E aqui no Irã tem serviço de bordo, ao contrário do lanchinho pindaíba (ou pago) das companhias aéreas brasileiras. 

Os voos domésticos de Teerã saem do Aeroporto Merhabad, não do Imam Khomeini, por onde cheguei. Para lá tomamos um taxista enrolão, chamado pelo hotel. Aqui eles quase nunca usam taxímetro, e como ele não falava inglês eu cometi o infame erro de não acertar o preço de antemão. Jamais façam isso. Eu fui pelo que o hotel me disse que custaria, e não confirmei com o taxista. 

Chegando lá ele queria o triplo, ameaçou escandalizar, e tudo o que consegui foi o dobro. A sorte foi que a moeda iraniana, o rial, é desvalorizada devido a uma inflação cavalar. Um real são quase 10.000 riais. A corrida não nos custou mais que 25 reais. Nem uma ida ao aeroporto de Feira de Santana sai tão barata. 

Merhabad foi o único aeroporto na minha vida onde vi a fila do check-in de repente mudar de guichê, e entrar em cena o proverbial "os últimos serão os primeiros". Eu, infelizmente, tinha sido dos primeiros a chegar, e acabei no fim da fila. 

Foi também a única vez em que vi os monitores do aeroporto passarem comercial de televisão. Mas apesar dessas esquisitices  e das não menos esquisitas funcionárias de guichê com suas sobrancelhas refeitas e narizes obviamente remodelados  tudo correu bem e sem problemas. Rumo: Shiraz, no sul do país, nas vizinhanças das lendárias Pasárgada e Persépolis, e terra de belezas que você ainda não conhece.  
Chegando ao aeroporto de Shiraz. Ali a foto do Líder Supremo, o Aiatolá Ali Khamenei.



Nenhum comentário:

Postar um comentário