sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Era uma vez em Madagascar (Parte 3): Mercadão, natureza, e mais curiosidades da cultura malgaxe


"Por que é que o Brasil perdeu daquele jeito?", me perguntou Mina do banco de trás do táxi. Por que? Ensaiei alguns comentários sobre tática, inexperiência, pressão e apagão, mas ela não parecia muito interessada na minha resposta. "Aqui estava todo mundo torcendo pelo Brasil. Aqui em Madagascar o povo é Brasil ou Argentina, mas quase todo mundo é Brasil".  "E as seleções da Europa?", perguntei eu. "Blargh!", respondeu ela fazendo careta, que eu pude ver olhando pra trás. Passados alguns segundos de silêncio, ela continuou: "Meu tio morreu por causa daquele jogo". Perguntei se ela estava zoando. "Não, é verdade. Ele teve um AVC", disse ela, embora sem perder a descontração. Glup.

Entramos num táxi moderno, provavelmente dos anos 1950, eu e Mina, uma tia malgaxe muito simpática e que resolveu me mostrar um pouco de Antananarivo.
O nosso veículo. Um Renault, como vocês podem ver, certamente da época em que Madagascar ainda era colônia da França.

Não havia vidro na minha janela, e a minha porta só abria por fora. Ótimo para um passeio numa cidade como Antananarivo, cheia de pedintes e com a mesma ladinagem das cidades brasileiras . Eu, bobo, ainda fui puxar o cinto de segurança, como que por automatismo. Vi que ele estava todo torcido, dado um nó em si mesmo, e nem chegava ao lugar do clique. Foi o carro mais velho e malacabado em que já andei na minha vida. O motorista levava numa boa, e Mina ia no banco de trás.

Paramos no mercado. O mercado do centro de Antananarivo é como a feirinha de qualquer periferia no Brasil, só que mais precário. Uma curiosidade é que as ruas são mais limpas; fiquei impressionado. Quase não se veem estrangeiros não-africanos na rua, o que, a menos que você seja negro, faz chamar a atenção. Antananarivo não é mais perigosa que as cidades brasileiras, mas se destacar assim dá uma sensação de vulnerabilidade. Logo os pedintes marcam a mira em você, como fazem aqueles mísseis perseguidores, e não lhe dão muita trégua. É um nível de desespero que, se de um lado incomoda, do outro parte o coração. Nas calçadas, DVDs piratas, livros, e todo tipo de balangandãs se misturam às frutas, verduras e carnes, ali mesmo, às vezes em cestinhas, palhas ou plásticos no chão.

O que eu queria eram alguns artesanatos. Quando saltamos do carro, Mina me navegou, e eu ia seguindo atrás a passos rápidos, despistando pedintes e vendedores. Não é taaanta pressão assim, mas se você parar, eles vêm. A parte que me interessava era mais pra dentro por entre barracas cobertas de lona e separadas por bequinhos de chão de terra e tábuas velhas. Lugar mocado, como diriam meus amigos paranaenses, bem enfiado lá pra dentro. Um quadro original de artistas locais custava o equivalente a 10 reais. Achei-os mais bonitos do que muita coisa que já vi em museu na Europa e que certamente custava milhares ou milhões. Depois dizem que as pessoas são pobres por falta de talento ou de esforço próprios...
Ruas do centro de Antananarivo. Carros, carroças, barracas, gente, motos e a muvuca toda.
Tela com baobás, árvores símbolo da África. 
Mercado de artesanatos. Fui emboscado diversas vezes aí por vendedores. Tinham caras de quem estava desesperado precisando vender  e certamente estavam mesmo.  
Esta pintura tem a chamada Árvore do Viajante, esta palmeira símbolo de Madagascar. Gostei!

Em seguida, fomos ao jardim zoológico. Na falta de tempo para ir às reservas de verdade (embora nelas seja difícil ver os animais, que se escondem), o jeito foi vir aqui. Serviu. Vi de verdade as árvores das pinturas acima, os icônicos lêmures, que só existem em Madagascar, e de quebra ainda aprendi sobre as festas dos mortos feitas pelos malgaxes. Aí vem coisa.

Fazia o calor de duas para três da tarde como no Brasil. O zoológico de Antananarivo está sucateado, com infraestrutura sofrível, mas ele quebra o galho. As partes naturais continuam bonitas. Passeando você vê muitos grupos escolares de crianças, vendedores de balas, pipoca e algodão doce, como nas áreas mais simples do Brasil, só que aqui em Madagascar ainda mais humildes.
Com Mina num alagado com Orelhas de Elefante, essas plantas que recebem o nome pelo formato das folhas --- não são bananeiras.
Banquinhas bem simples de pipoca e algodão doce, com as crianças dos vendedores por ali.
Junto a uma Árvore do Viajante, endêmica de Madagascar. Eu não podia passar sem esta foto.
Com um baobá, símbolo da África. Esse, no entanto, ainda era pequeno  me disseram ter entre 30 e 40 anos. Eles podem viver mais de 1000 anos, adquirir um tronco de 7 a até 11m de diâmetro, e guardam água no seu interior. Alguns indivíduos chegam a guardar mais de 100 mil litros. Mandar plantar uns em São Paulo pra substituir o Sistema Cantareira...
Tartaruga gigante, pra você que nunca viu uma. (Eu mesmo nunca tinha visto e fiquei pasmo). Essas ficam só no ambiente terrestre. E, falando em longevidade, as quatro dessas que há aqui foram dadas pela inglesa Rainha Vitória no século XIX. E continuam aí, bastante ativas.  Esqueça essa ideia de que elas são devagar. Não se sabe com exatidão quanto tempo elas vivem. 
O lêmur, ícone da biodiversidade de Madagascar. Só ocorre aqui. São primatas. Parece um mico, mas não é.
Por fim, um pavão importado. Fotografei quando vi que ele abriu. Não são de Madagascar; são das Américas. Se você ainda não é fascinado pela natureza, imagine que um reles ovo vira isso, e contemple a simplicidade das invenções humanas quando comparadas à majestade e complexidade da natureza. Ainda estamos muito longe de nos compararmos.

Agora deixem-me passar de pato a ganso. Ou melhor, de pavão aos mortos. No zoológico há também tumbas nos diferentes estilos das várias regiões de Madagascar. Não é tudo a mesma coisa. Igual em todas é só que os familiares são enterrados juntos, em tumbas de família, e sem caixão. Ninguém é enterrado com caixão, mas com roupas. Também não é embalsamento, pois não há ervas e nem qualquer forma de preservação. O morto é só enrolado nas roupas mesmo, como mortalhas.

A cada 7 anos, os familiares então desenterram o morto. Removem os ossos, e os trazem para uma festa em casa. Na visão malgaxe, como em muitas outras, as almas continuam vivas e velando pela família. Fazem, portanto, esse reencontro a cada sete anos. Se a família for rica, pode fazer com maior frequência.

Se você achou isso aí impressionante, agora escute essa: no sul de Madagascar, a tradição local é ninguém herdar nada. Quando você morre, seus pertences são todos jogados na tumba junto com você. Incendeiam a sua casa, e se você tinha gado (o que é comum lá), matam todos os animais e jogam as carcaças sobre o seu túmulo. Seus filhos precisar começar do zero. Um dos rituais de passagem do homem adolescente à idade adulta é, assim, roubar um boi zebu da manada de alguém, pra começar a constituir seu próprio patrimônio. Olha que beleza. Segundo me contaram, isso acaba gerando um problema sério de crianças abandonadas naquela região lá.
Estilo das tumbas do leste de Madagascar. Colocam um tronco de madeira por cima, pra evitar que animais comam o cadáver, e 7 anos depois vêm retirá-lo para a celebração.
Tumba de pedra ao estilo do sul do país, com (literalmente) as cabeças de gado zebu que pertenciam ao morto.

Era o meu último dia em Madagascar, e voltamos ao hotel. Eu pensei em comprar mais alguns souvenirs, e passei numa lojinha de cosméticos ali perto, onde fui atendido por uma francesa. Madagascar tem muito desses sabonetes artesanais com ervas medicinais, óleos essenciais, essas coisas. O ylang-ylang, pra quem conhece, é bem comum aqui, embora seja nativo das Filipinas. Só que, como visam os visitantes estrangeiros, tudo custa o olho da cara. A francesa, polida, ia me explicando as propriedades dos óleos até mais do que eu queria ouvir, quando começa a tocar no rádio: "Eu quero tchuuu, eu quero tcha, e quero tchu tcha tcha...". Eu ri; ela me olhou; e eu expliquei porque estava rindo. "C'est une belle chanson", me disse ela interrompendo-se, com o ar etéreo de um comercial da L'Oréal. Eu tive que me segurar para não rir mais.

Não peguei muito, devido ao preço, e não demorei a seguir para o aeroporto  o mais zoneado onde jamais estive. A fila para fazer o check-in saía do aeroporto, pra você ter uma ideia. Aconselho chegar com bastante antecedência, embora não haja quase nada para fazer lá. Meu voo era às 01:40 da manhã, mas às 10 da noite eu já estava em filas quilométricas. Me pareceu haver um business de pessoas vendendo lugar na fila, igual em repartições públicas pra renovar documentação no Brasil  mas não comprei. Duas horas depois e suado, cheguei ao portão de embarque. A Air France ainda checaria todo mundo quatro vezes entre o portão de embarque e a aeronave, se por medo de terrorismo, do ebola ou de quê, eu não sei. 
A muvuca do aeroporto de Antananarivo.
Entre bagunça, simplicidade, simpatia e belezas, saio com um olhar positivo sobre Madagascar. As pessoas são muito gentis, animadas, e com presença de espírito. As dificuldades práticas são as mesmas que você encontra em outros países em desenvolvimento. Se quer conhecer da cultura e da natureza daqui, é preciso enfrentá-las. "Não aguenta, bebe leite", dizia um amigo meu. Mas, verdade seja dita, não é nada tão impossível assim. É como o Brasil, só que numa língua e contexto social diferentes. Acho fundamental visitar esses países pra que se veja que o mundo não consiste em Brasil + lá fora, um "lá fora" que imagina só Estados Unidos e Europa. O aqui fora é enorme, e tem muitas cores. Madagascar tem algumas das mais curiosas delas.

Já fico de olho para a minha próxima vinda à África. 


Um comentário:

  1. Sinistro este post, migo!
    Sinistro pelas tumbas, sinistro pq foi muito legal! heheheh
    Adorei a postagem. Fico esperando a próxima!
    Sayonara!

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