sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Na Baía de Kotor, em Montenegro


A Baía de Kotor, também conhecida por "Boka", é um dos lugares mais lindos que já vi na Europa, e acho que o destino maior do pequeno país de Montenegro.

Calma, não se resume a esse cenário aí acima com ar de "Idade das Trevas". Montenegro é um país humilde, separado da Sérvia em 2006, pobre, sem luxos, sem nem moeda própria, onde as estruturas portanto estão assim mais "cruas" (o que tem seu lado positivo pela autenticidade...), mas ultra-barato e de lindas paisagens naturais. Abaixo a Baía propriamente dita, onde fica este antigo vilarejo de Kotor.

Aqui me meti para esta viagem relâmpago a Montenegro.
A Baía de Kotor.
Montenegro hoje é um país independente, mas fala a mesma língua serbo-croata dos vizinhos. Era o Principado da Montanha Negra (Crna Gora [Tsrnagóra] na língua local), chamado de Monte Negro pelos mercadores venezianos ao longo dos séculos. Compuseram a antiga Iugoslávia a partir de 1918, até se tornarem independentes mais uma vez, em 2006.

Os montenegrinos são cristãos ortodoxos como os sérvios, e estão ainda fora da União Europeia. Usam o euro informalmente  não tem moeda própria, mas tampouco participam formalmente do Eurogrupo ou das reuniões que definem política monetária europeia. Enfim, usam o euro "na xêpa", por praticidade.

As relações comerciais e diplomáticas com a vizinha Croácia continuam abaladas desde a Guerra dos Bálcãs dos anos 1990 (quando os montenegrinos atacaram Dubrovnik a canhão). Então embora Kotor fique apenas a 2h de distância daquela linda cidade croata, não há serviços de ferries, apenas ônibus. Você irá concordar comigo que é um desperdício. A viagem de barco de lá até aqui, por essas águas e vistas para as montanhas ao fundo, deve ser fascinante.
Esta é a vista que se tem do ônibus, no momento em que ele precisa atravessar o mar numa balsa, já em Montenegro.
Por um lado, a rodovia espremida entre as montanhas e o mar engarrafa fácil. Por outro, você viaja margeando o mar com lindas vistas. 

Quem não tem cão, caça com gato. Na ausência de um ferry, tomamos então o ônibus, eu e e minha amiga turca, e chegamos à ambiciosa rodoviária de Kotor, um deslumbre da arquitetura iugoslava.
Rodoviária de Kotor. Lembra as do interior do Brasil, onde compra-se a passagem por uma janelinha na parede do lado de fora.

Nossa primeira meta foi achar a casa onde havíamos feito uma reserva. "Casa" porque, como na Croácia, o mais comum aqui é alugarem quartos em casas de família  não há muitos hoteis ou albergues comerciais. Havíamos planejado chegar antes, mas subestimamos a quantidade de gente viajando de Dubrovnik pra cá e lotando os ônibus (no verão, compre com antecipação de um dia ou dois!). Chegamos então já no final da tarde, e dentro de algumas horas escureceria.

Kotor é pequena, mas você pode se perder. Perder-se dentro de seu centro histórico murado é uma coisa, é charmoso, é perder-se no tempo antigo. Já perder-se na parte "moderna" tem menos graça, é perder-se na época iugoslava de prédios quadrados de concreto velho.
Primeiras vistas de Kotor, após desembarcar. Aquela montanha lá ao fundo tem uma presença imponente-íssima quando você está Ao Vivo. 
Vista para a marina na baía.
Prédio velho com ar de fábrica abandonada. Deve ser.
Ruas por onde perdemo-nos depois, com a noite a cair.
Mas a alegria de estar perdido. Pelo menos havia vistas bonitas para a baía.
Homem quase sempre evita pedir informação, então foi a minha amiga turca quem insistiu que deveríamos começar a perguntar às pessoas. 

Não que houvesse muita gente nas ruas. Vimos alguns garotos jogando bola (que seguramente não saberiam uma única frase de inglês), e avistamos algumas pessoas em suas varandas. Encontramos um homem que disse-nos que estávamos na rua errada, que a rua procurada (elas não tinham placa com o nome escrito) era a rua de baixo. E "baixo" aqui inclui literalmente o eixo da altura, como você pode ver pelas fotos.

Até que finalmente alguém na varanda do segundo andar numa rua conhecia a acomodação que estávamos procurando, os "Quartos de Nensi". (Eu sei, nome de brega se fosse no Brasil, mas respeito com a mulher, que era mãe de família).

Nensi  provavelmente originalmente "Nancy", mas com a grafia adaptada, como fazemos com Uólace e outros no Brasil  morava no final da rua. O morador que nos ajudou tratou então de usar o método mais clássico para chamá-la: deu um gritão da sua varanda. "Nensi! Neeensiiiiiii!", e acrescentou alguma coisa em serbo-croata que eu não compreendi.  

Nos indicou sorridente qual era a casa de Nensi. Simpático, o homem. Lá Nensi nos avistou da varanda do seu sobrado de dois ou três andares.

 "Cadê o carro de vocês?", gritou ela da varanda após se identificar, uma mulher de seus 45 anos com ar de quem resolve as coisas.
 "Aqui", e apontei pra as minhas pernas, sem conseguir segurar a risada diante da pergunta dela.

Nensi nos recepcionou num lugar agradável. Dava contar de regular duas crianças suas que brincavam por ali enquanto nos mostrava as instalações. Acertamos tudo a tempo do blecaute.
Vista maravilhosa que tínhamos da vizinhança durante o blecaute.
Fomos audaciosos e visitamos o centro histórico já no caminho até aqui, antes mesmo de achar a casa. Caso contrário, estaríamos fadados a vê-lo na escuridão. Na verdade, fizemos ambos, pois não resisti nem à fome e nem à tentação de caminhar pelo centro histórico no escuro. Loucura, loucura, loucura.

O caminho até lá foi à base de luz de celular, acrescida de uma ou outra luz de emergência de alguns prédios, impedindo o breu total. 

Na bela praça com árvores ainda fora do centro histórico havia algumas luzes acesas a gerador (pela preparação, me pareceu cotidiano este tipo de blecaute aqui), e lá algumas famílias se aglomeravam, em relativa tranquilidade. Já no interior das muralhas, o breu pelas ruelas antigas, lojas e restaurantes era completo a não ser pela luz de velas.

Não deixei de sentir certo dó. Percebe-se que Montenegro quer ser como a costa da Croácia, mas nota-se a falta de recur$os. Quer desenvolver o turismo, e falta de dotes naturais e históricos não há, mas há uma clara pobreza de infraestrutura. Lamentei pelas pessoas, algumas visivelmente esforçadas.
Famílias que haviam ido passear, aguardando na praça a luz voltar.
Vendedoras a luz de velas numa loja no centro histórico. Fiquei até com dó de tirar esta foto.
Estas são mesas de um restaurante numa praça do centro histórico. Jantar a luz de velas nas lamparinas. O mais impressionante eram os garçons, continuando a servir numa boa.

E, no meio da minha pizza, a luz voltou. Uma pizza barata e meio chinfrim, diga-se de passagem, mas tampouco quis esperar muito aqui. Encheu o estômago e não estava má.

Kotor tem um centro histórico muito bonito, com muralhas antigas, igrejas tanto católicas quanto cristãs ortodoxas, música ao vivo nas suas calçadas de pedra, e  havendo luz  recantos charmosos pra se ver. Tem um clima menos badalado que Dubrovnik, embora possua a mesma estética e arquitetura em casas de pedra vistas na costa da Croácia.  
Quando por aqui passamos antes do anoitecer.
Praças no interior das muralhas, no centro histórico.
É possível subir e caminhas naquelas outras muralhas lá nas montanhas também, onde há postos de observação e capelas. Pra quem tiver pernas. São vários quilômetros. Ficou pra uma outra vez.
Montanhas de Montenegro ao fundo.
Ruelas boas de se andar no centro histórico, com vista para as montanhas atrás.
Interior de uma igreja ortodoxa. Os cristãos ortodoxos, religião dominante no leste europeu, têm ritos distintos dos católicos romanos, e não seguem Roma. Eles preservam os ritos do jeito que eram no primeiro milênio, e celebram em grego. Não há bancos; em geral assiste-se à celebração de pé. 
Altar. Eles também tem uma preferência tradicional por imagens bi-dimensionais, em vez das estátuas e estatuetas comuns em igrejas católicas.

No dia seguinte, Nensi nos deu uma carona à rodoviária, de onde tomaríamos o ônibus de volta a Dubrovnik. Desta vez estávamos preparados, e chegamos com antecipação. O ônibus não é desconfortável, e vão muitos jovens turistas. 

Na passagem há assentos marcados, mas no ônibus eles não estão numerados, então de nada adianta. Isto é, a menos que você seja dos números 1 e 2 ou 3 e 4, logo na frente. Por prudência, eu e minha amiga fomos pra uma das fileiras seguintes. Um inocente casal jovem norte-americano sentou-se lá tranquilamente, não antevendo a chegada de uma senhora russa encrenqueira, com ar daquelas coroas  que gostam de confusão. 

Ela chegou, olhou o casal sentado ali, olhou de novo pro bilhete, caminhou um pouco pelo corredor, voltou, e finalmente interpelou o casal: 
 "Esse lugar é meu", disse ela categórica num inglês carregado de sotaque mas fluente. 
 "A gente procurou mas não viu números nos assentos", replicou o casal, com aquele ar casual que os jovens norte-americanos geralmente têm. 
 "Eu pedi claramente quando comprei a passagem que queria este lugar".     
 "Ok, a gente pode passar pra um dos assentos mais atrás", responderam os norte-americanos em tom conciliador.
 "Eu fiquei chocada quando vi que havia gente aqui", continuou a senhora russa (vi pelo passaporte que ela segurava) enquanto os jovens pegavam suas coisas. "Eu caí pra trás!", continuou ela dramática, "sem entender como alguém poderia fazer uma coisa tão deseducada."  

Eu, logo atrás, e a minha amiga turca nos olhamos sem dizer nada. Os jovens, já sem paciência com a inticação (procure a palavra no dicionário), saíram o mais rápido que puderam antes que ouvissem mais. "Divirta-se com o seu assento", disse o rapaz ao sair, já sem paciência. A coroa russa ainda prosseguiu resmungando um pouco até se aquietar.

E assim concluíamos a nossa brevíssima passagem por Montenegro. Voltamos a Dubrovnik para ainda mais um dia antes de deixarmos este (re)canto da Europa.
Uma das várias praças com restaurantes à noite no centro histórico de Kotor. A bandeira de Montenegro é essa em vermelho e amarelo.

EPÍLOGO

Havíamos deixado as nossas bagagens em Dubrovnik com o Seu Ljubo, dono da casa onde havíamos ficado. Como indiquei no post anterior (Dubrovnik, uma das mais belas cidades da Europa), ele era uma figura sui generis, notável pelo seu ar de cansaço e lentidão, como se estivesse sempre sonolento demais.

Quando perguntamos se poderíamos deixar as nossas bagagens na casa dele, a resposta levou cinco segundos de expectativa até vir, um sim breve feito com o balançar da cabeça. Ao voltar lá, temíamos que ele não estivesse em casa, ou que estivesse dormindo, ainda que fosse dia. Dito e feito, mas o acordamos. Ele chegou descalço, ainda mais dormindo que acordado (embora esse parecesse, realmente, ser o seu normal). Pegamos as nossas coisas e nos despedimos.

Dali tínhamos uma noite ainda de reserva num outro lugar, até pegar um voo na madrugada do dia seguinte. Só assim pra você ver as ruas de Dubrovnik quietas: às quatro da manhã. E, mesmo assim, ainda ouvirá batidas de música eletrônicas e zoações de galera na rua ao longe.

O lugar onde nos hospedamos para esse dia final na Croácia foi ótimo, no interior das muralhas. Teve seu custo (como qualquer lugar no interior das muralhas), mas teve seu lado bom. Ficamos no alto de uma escadaria estreita, com o charme da cidade. No interior, não vimos viv'alma. Um rádio velho que ligamos na recepção tocava Fly me to the Moon, de Frank Sinatra, e ali olhávamos o burburinho lá no alto, ao sabor de limoncello que eu havia trazido de Nápoli na bagagem.   
Alto onde nos hospedamos para esse finzinho em Dubrovnik.
As escadarias quietas, à noite.
Ruas quietas de Dubrovnik na madrugada. Assim nos despedimos, eu e ela.
E aqui dissemos o "Até mais ver".


Nenhum comentário:

Postar um comentário