"No se confían. Políticos, no se confían.", ouvi a latino-americana dizer ao seu filho ao meu lado, crente que eu não estava entendendo. Certamente tomou-me por árabe, já que há muitos aqui e graças à minha barba. O garotinho havia avistado a contra-capa do livro de Noam Chomsky que eu lia à luz do sol à janela do trem.
Íamos de Amsterdã a Gouda, cidadezinha no interior da Holanda. Lá nasceu o queijo de mesmo nome, um dos mais famosos do mundo, e que eu resolvi ir conferir no local de origem. Este é também o primeiro post que faço sobre a Holanda, apesar de já morar aqui há 7 anos (!).
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Entrada para a estação de trem na cidade de Gouda. |
Comecemos corrigindo a sua provável pronúncia, que todos os estrangeiros erram (compreensivelmente). Gouda pronuncia-se Ráuda em holandês. O G em holandês tem esse estranho som de R gutural, bem raspado na garganta. Se você falar "Gôuda" (ou "Gudá", como dizem os francófonos), é possível que eles entendam, mas não é garantido. Coisas do holandês. Não é exatamente o idioma mais charmoso da Europa.
As cidadezinhas holandesas, por outro lado, conseguem ser bem amáveis. Todas se parecem muito, como você notará após visitar um punhado delas — quase sempre com seus canais pela cidade, casas de tijolinhos, calçadões para pedestres, praça central onde ficam a prefeitura e a igreja (ambas em estilo moderno-antigo, dos idos de 1500-1800), e mercados onde se vendem guloseimas holandesas, hortifruti, e quinquilharias em geral.
Acresça-se a isso, é claro, o queijo. Ainda que o queijo holandês não seja tão mundialmente famoso quanto os italianos, franceses ou suíços, os holandeses comem queijo pra caramba, há muito tempo. O Gouda é o mais clássico daqui, normalmente vendido por idade: jong (jovem), jong belegen (jovem maduro), oud (envelhecido), entre algumas outras variações. O jovem é macio e suave; quanto mais velho, mais desidatrado, salgado, e de gosto mais forte.
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"Barraca" vendendo queijos na praça central do centro histórico de Gouda. |
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O queijo gouda normalmente é feito e vendido assim: em rodas. |
A cidadezinha fica a menos de 1h de trem de Amsterdã e pode ser facilmente visitada num dia só, como eu fiz. Vale a pena. Aqui, além de visitar o Museu do Queijo Gouda pra aprender como ele surgiu e era tradicionalmente feito, você pode também conhecer mais sobre a história da Holanda na chamada Idade de Ouro holandesa dos séculos XVII e XVIII, ver a mais comprida catedral da Holanda com lindos vitrais, e recantos muito bonitinhos. Além de, é claro, comer queijo.
Da estação de trem são 5-10 minutos a pé até o centro histórico, antigamente murado, hoje sem muro, mas ainda cercado de canais — como uma cidade holandesa que se preze. Aqui na Holanda há canais por toda parte.
As cidades holandesas, em geral, souberam muito bem "pular" a Era do Automóvel. Passaram, em grande medida, da época pré-industrial para a época de bem-estar hoje aqui em que há ruas exclusivas pra pedestres, muitas ciclovias, e transporte coletivo de qualidade. Muito melhor. O resultado são cidades bonitas, tranquilas, e boas de se circular.
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Rua típica com canal, no centro histórico de Gouda. |
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O outono chegando aqui e dando nova cor às folhas. |
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Cena típica do holandês, com três crianças na bicicleta. Estas bicicletas modificadas são comuns aqui. |
Mas passemos ao queijo. A primeira menção escrita ao queijo gouda é do ano 1184 (!). Queijo, de modo geral, é algo já feito há milênios pelas civilizações do Oriente Médio, da Índia, e da Europa. Basta adicionar um coagulante ao leite e, voilà. Aqui tradicionalmente usava-se ácido de estômago de novilho. Enrolava-se os grumos de leite na própria pele das vísceras animais, como ainda fazem muitos camponeses Europa adentro.
Entrei no Museu do Queijo pra aprender mais, no prédio onde costumava ser o centro oficial de pesagem dos produtos. Aqui as medidas eram padronizadas, e só podiam vender o que já tivesse recebido o selo de certificação. Os governantes, espertos já desde aquela época, aproveitavam então para coletar o imposto sobre as mercadorias. Se precisasse, o quartel de polícia ficava logo no andar de cima.
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Prefeitura de Gouda, no meio da praça principal de seu centro histórico. Gouda, que era um povoado medieval, ganho status de cidade em 1272. |
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O interior daquele prédio é hoje uma loja de lembranças e o Museu do Queijo Gouda. É claro que comprei um pra mim. |
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Feitura tradicional à época, quase sempre pela mulher. |
O sabor lembra um pouco o queijo prato brasileiro, porém melhor.
Mas nem só do pão vive o homem, e nem de queijo. Então fui ver as demais atrações da cidade, como a Igreja de São João (Sint Janskerk) com seus lindos vitrais e o Museu de Gouda, um misturão de tudo que é coisa histórica da cidade. Como sempre, museus na Europa são normalmente acompanhados de charmosos cafés, e Gouda não foge à regra.
Uma observação. O norte da Holanda é em geral protestante, e o sul, católico. Há divergências e picuinhas entre os dois lados, como em todo país, embora isso hoje seja bem menos pronunciado do que já foi um dia. No entanto, você notará que das catedrais e grandes igrejas no norte da Holanda (e Gouda se enquadra aí), só sobraram as "cascas", pois os interiores foram quase todos removidos durante a Reforma Protestante do século XVI.
A Sint Janskerk ainda tem missa, pelo que eu entendi, mas seu interior já tem pouco cara de igreja católica — só o edifício em si é que permanece, com os seus lindos vitrais. É a mais comprida igreja da Holanda, com mais de 150m.
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A igreja, espremida entre ruelas no centro histórico, é quase impossível de ser fotografada inteira por fora. |
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Interior, com a ilustre presença da avó de Chapeuzinho Vermelho, que ninguém sabia mas era holandesa. |
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Alguns vitrais. |
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Outros vitrais no interior. |
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Exterior, entre a igreja e o museu. |
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Entradas para jardins secretos. |
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Cafeteria do museu, no exterior. |
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Lugar bastante tranquilo e agradável. |
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Entrada do museu. |
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O museu tem algumas pinturas e vários objetos de época, como mobílias, vasos, etc. Não vou lhe dizer que achei lá muuuuito interessante no interior, mas se você já está aqui, vale a visita. |
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O exterior do museu, pra mim, ganha o prêmio de charme. |
Saindo dali, caminhei pela cidade. Havia tomado um belo café espresso, e o almoço foi asiático, pois holandês almoça sanduíche, e isso contraria os meus valores culturais.
O que comi e que foi holandês, já à tardinha, foi um delicioso stroopwafel feito na hora, um wafer (biscoito) típico com recheio de caramelo. Nham.
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Comendo um stroopwafel em Gouda. |
Ainda cheguei a tempo de jantar num japonês com uma amiga minha em Amsterdã. Falo mais sobre a Holanda noutras oportunidades.
A visita a Gouda está recomendada. E se quiser o máximo da experiência, venha numa quinta-feira de manhã entre junho e agosto, no verão, quando eles aqui fazem o Mercado do Queijo e enchem a praça de rodelas amarelas. Quem sabe você leva uma pra casa.
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A prefeitura de Gouda. |
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Pôr do sol que alcancei em Amsterdã, na estação. |
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