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Os colonizadores europeus feitos como carrancas num carro alegórico, no desfile campeão da Beija-Flor sobre a Guiné Equatorial. |
— "Já estamos há três semanas sem tirar folga", disse-me a moça do café no aeroporto, uma negra jovem, bonita, de sorriso limpo, com a bandana preta do uniforme e aquela cara de "fazer o quê?".
— "E pode isso?"
— "Acho que não..."
Outros três, da periferia como ela, circulavam pra lá e pra cá enquanto ela me atendia. Dentre eles uma senhora pesada que suava no uniforme, calor do Rio de Janeiro no verão.
— "Uai, o dono impede vocês de tiraram as folgas e isso fica assim? Vocês não têm sindicato não?"
— "Acho que tem", respondeu-me a moça com aquele ar aéreo de quem não sabe muito do que está falando.
Substituíveis. Não é à toa que as empresas tanto gostam da chamada "flexibilização" das regras trabalhistas e dos contratos temporários sem vínculo.
Nesse dia eu fiquei triste em ver que essa sociedade de patrões e empregados foi o melhor que a espécie humana conseguiu fazer para si até agora. Mas é Carnaval, e como bons brasileiros a gente esquece esses assuntos sérios que a gente vê mas sobre os quais não reflete, e entra na folia. E neste caso não seria uma folia qualquer, mas o maior show da Terra: o Carnaval do Rio de Janeiro. Me oferece algum outro candidato à altura?
Antes que alguém de outro estado reaja, deixem-me dizer que, como baiano, acho o carnaval de Salvador (ou de Recife) mais envolvente, mais participativo. Mas não é um show; é folia. Já o do Rio de Janeiro inclui um espetáculo a ser assistido, de preferência ao vivo, e para o qual não vi páreo em nenhum lugar do mundo.
Você pode não gostar de samba, ou de Carnaval, mas inegável a magnitude artística da coisa: compõe-se um samba, dança-se, elaboram-se coreografias específicas das várias alas, fazem-se fantasias e alegorias que combinem com o tema, e tudo isso contando uma história, o enredo. Quantas artes isso inclui? Se fosse francês ou norte-americano, eles estariam propagando isso de vento em popa mundo afora, e nós do "terceiro mundo" admirando. Mas santo de casa não faz milagre — ao menos pra parte da população. Não é vender o Brasil como sendo puramente a bunda da mulata, nem a mulher brasileira como objeto, mas valorizar a(s) arte(s) presente(s) ali no espetáculo, mesmo que essa não seja a sua praia.
De quebra, é provavelmente o único evento de grande porte a tratar (e valorizar) as culturas africanas e indígenas, que mundo afora — e no próprio Brasil — são muitas vezes tratadas como não-cultura, ou no máximo como algo menor. Onde mais você tem elaborações artísticas desse porte sobre a cultura dos indígenas Caruanas, do Pará (que você possivelmente nunca nem soube que existiam), ou sobre o povo de Luanda ou da Guiné Equatorial? É que vivemos num mundo onde saber detalhes da Toscana ou do sul da França são sinais de sofisticação e haute culture; saber das culturas do nosso próprio país ou dos africanos, não. Ó Deus!
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Releitura dos padrões de beleza com uma Branca de Neve negra e pesada, na comissão de frente da União da Ilha. |
Então eu fui. Há como comprar ingressos direto pelo site da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA). Na chegada nem houve muita fila, mas é preciso chegar cedo se quiser pegar lugar na frente das arquibancadas, mais perto das escolas. Acho que quase metade dos presentes eram estrangeiros. No início, a Globo não mostra, mas canta-se o hino nacional. Daí vêm as escolas e o tempo passa numa rapidez que você nem percebe. Virar a noite é fácil, com o samba tocando, a bateria passando ali a 10m de você, e o ritmo atingindo uma parte mais basal e profunda do seu ser do que alcançam as sinfonias de Beethoven.
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Na arquibancada. |
A ética da coisa é toda discutível, mas a estética é um primor. E ao vivo a coisa ganha outra dimensão. Se pela TV é bonito, ao vivo é um espetáculo! É pra se ver pelo menos uma vez antes de morrer. E se você tiver um outro show de tamanha estatura em qualquer outro lugar do mundo a sugerir, por favor me sugira e eu irei lá conferir!
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Desfile da Portela. |
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A águia redentora da Portela, e a ala das baianas vestidas de bolo, celebrando os 450 anos do Rio de Janeiro. |
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Abre-alas da Beija-Flor, com um preto velho e um Baobá, celebrando a Guiné Equatorial. |
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Desfile da Imperatriz. |
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Nelson Mandela. |
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Patinadores, no desfile da Unidos da Tijuca sobre a Suíça. |
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Avenida cheia! |
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E aquele arco no final, que tantas noites vi pela TV, agora visto ao vivo. |
E aqui um breve trecho que filmei do desfile da campeã Beija-Flor, com direito a Neguinho fazendo seu tradicional gingado.
Ao ir embora, numa outra cafeteria do mesmo aeroporto do Rio de Janeiro, caí na besteira de pedir um strudel de banana. Violei a minha própria indicação de evitar comer coisas que não são tradicionais da região — tipo bolo na Índia, café no Japão, e strudel austríaco no Brasil. O negócio estava um verdadeiro abacaxi, gelado e duro, com aquele gosto de massa fria e banana que pernoitou na geladeira.
Fui ao balcão pedir que por favor esquentassem.
— "Ah, isso se come é frio mesmo", me disse a moça em tom informativo.
— "Nããão, minha filha. Eu moro na Europa, eu sei que do que tô falando, isso vem é quentinho", respondi eu dando uma inusitada carteirada com o meu cartão de residente da Holanda.
— "Eu acho isso horrível", se meteu uma outra funcionária de repente, fazendo cara de nojo pro strudel.
— "Porque gelado é horrível mesmo. Se você esquentar eu lhe dou até um pedaço pra você ver como fica melhor", pedi.
Levemente hesitante, a moça pegou o pratinho e levou pra dentro, dizendo que ia perguntar ao gerente e pedir pra esquentar. Daí a dois minutos ela volta dizendo que não tinha microondas, com ar apologético.
— "Deixa pra lá então", respondi sossegado. "Não tem problema não. Mas diga ao gerente que isso se serve quente. Se ele teve a ideia de vender strudel aqui, ele devia saber disso".
— "O gerente é aquele ali", apontou ela um rapaz que verificava algo no caixa, um homem branco que supervisionava mulheres negras. "Mas esse é o folguista, só está aqui hoje. Esse é legal. O bom seria você falar com o outro".
— "Ele devia ter vindo aqui ontem", enfiou de novo a outra moça mais despachada, falando sobre mim à colega e fazendo aquela cara de quem havia engolido muito sapo do gerente e queria ver ele tomar.
Tive que sorrir.
— "Avise a ele. Eu vou levar o meu pra esquentar em casa. Uma hora coma quentinho também, pra você ver como é melhor", e me despedi.
As moças sorriram aquele sorriso carioca gostoso. Eu levei o meu espresso, o strudel de banana, e a simpatia.
Amigo, arranjou para cabeça: te desafio a ir ao Carnaval de Nova Orleans!! Não é como o nosso, mas representa a cultura dos negros de Nova Orleans, o jazz e o charlestron, os pratos do pântano, os desfiles em frente aos bares distribuindo colares...Junte os $$ e vá, porque vale a pena. Eu pretendo ir na primeira oportunidade!
ResponderExcluirBoa pedida, amiga! Irei ver, e --- é claro --- contarei. :)
ExcluirUaaauu deve ser mesmo bem interessante esse carnaval de New Orleans como tudo que diz respeito a ela.Bom saber, para ver. Gosto muito da cultura negra.
ResponderExcluirQuanto ao desfile no Rio de Janeiro é um verdadeiro Espetáculo, com letras maiúsculas. É mesmo dificil de descrever o impacto, a emoção o envolvimento que provoca o maravilhoso mundo mágico do desfile. Queira ou não voce é levado a participar daquele ritmo estupendo do samba, das baterias, da beleza deslumbrante das fantasias, das coreografias, da musicalidade, da arte , do enredo e dos sambistas. Um primor. Imperdível, como muito bem colocou, Mairon Polo dos 7 mares.