sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Visitando Túnis, a movimentada e literata capital da Tunísia

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Túnis é uma zona, e não é das pequenas. Cá em quase todo este mundo árabe do norte da África impera uma energia social fortíssima. Esqueça aquela ocasional tranquilidade idílica que você encontra em cidades do sul da Europa; aqui no norte da África a natureza é parecida, mas o mundo humano é outro. Eu acho sempre interessante notar como dois mundos tão distintos aqui se encontraram, como um encontro das águas, uma "pororoca" cultural, que aqui apenas o Mar Mediterrâneo separa.

Agrave-se aí que Túnis acabou de terminar de ser o epicentro da Primavera Árabe na Tunísia, que o governante de 26 anos de "reinado" foi derrubado, e que o país encontra-se ainda em convulsão, entre tentativas de estabilizar a sociedade e facções terroristas que visam exatamente ao contrário.

Se por um lado isso traz instabilidade, por outro traz também excitação. É interessante notar o ânimo com que as pessoas aqui se socializam nas ruas, com aquela energia de quem vive tempos de transformação. Uma boa ilustração disso, eu sempre acho, são as vitrines de livraria; se no Brasil temos auto-ajuda, podres da política e biografias de celebridades ocupando as primeiras prateleiras, aqui os livros em destaque são sobre o lugar do jovem na sociedade, sobre Deus no mundo moderno, ou sobre outras transformações. Saquem abaixo na foto que tirei da vitrine de uma livraria no centro de Túnis.
"Vivendo no fim dos tempos", de Slavoj Zizek, um cientista político; "O futuro de Deus"; "O cérebro do jovem"; "Holacracia, o sistema administrativo revolucionário que abole a hierarquia", e por aí vai. São livros de vitrine da principal livraria do centro de Túnis, ilustrando o momento de transformação que esta sociedade vive.

Vê-se claramente que o atual espírito do país é o de uma sociedade em plena transformação — e com gostinho de "quero mais”.

A Tunísia — que foi colônia da França entre 1881 e 1956  talvez tenha sido quem melhor abraçou aquele academicismo humanista francês, aquela coisa do intelectual de óculos tomando uma xícara de café e falando de filosofia. Isso você raramente vê em outros países árabes como o Egito ou o Marrocos, mas vê com frequência aqui. Quatro-quintos dos tunisianos são alfabetizados (mais que na maioria dos outros países árabes), e eles aqui orgulham-se muito disto. Além disso, há uma promissora produção teatral, de filmes etc., de valor à produção cultural. Vi em Túnis vários cinemas pequenos, daqueles "alternativos" onde as pessoas ficam naquela roda de conversa depois do filme.

Vamos às minhas andanças pela cidade. Para introduzir vocês no clima, um videozinho feito na Av. Habib Bourguiba, a principal da cidade. 



O salão de café da manhã no meu hotel é uma saleta pequena de paredes todas brancas e poucos enfeites, e recebe o nome apropriado de Le Bunker [casamata, abrigo anti-bombas], o que me deu uma grande sensação de aconchego e proteção. Apesar dessa tensão, as duas senhoras árabes sem véu que arrumavam o bufê eram bastante simpáticas, e sorriam sem dificuldade. O menu era daqueles habituais de hotel, com pão, fatias de queijo, café, etc. (O café daqui não é mau.)

As ruas de Túnis me esperavam.

O centro de Túnis tem duas grandes áreas que se encontram. De um lado, a Av. Habib Bourguiba e suas imediações. Como vocês viram no vídeo, a avenida é ampla e bem limpa, mas isso é porque ali estão todas as lojas de marca (com seus seguranças às portas), os hoteis mais chiques, etc. As ruas transversais já revelam um ambiente totalmente diverso, de prédios "brancos" encardidos e lixo na rua (é onde meu hotel ficava). A outra grande área é a medina, o tradicional centro antigo com seus becos labirínticos repletos de lojas e barracas.

Nas imediações do meu hotel parecia que havia acabado de terminar o carnaval ou a micareta, de tanta imundície. Vejo as pessoas atirarem lixo na rua sem a menor cerimônia; calçadas e ruas ficam repletas de uma bagulhada que vai de garrafas plásticas a osso de galinha, e sacos pretos de lixo amontoados dão o resto do tom. Ali, ao anoitecer, gatos de rua fazem a festa. (Como os muçulmanos, em geral, veem os cães como animais impuros porque eles não se limpam, o que mais há pelas ruas e nas casas são gatos. Eles é que viram latas aqui nesta parte do mundo.)

Fui conhecer as ruas de mais comércio (o "meião" mesmo), e senti-me de repente na 25 de Março em São Paulo, não apenas com roupas, mas também sapatos esculhambadamente amontoados uns sobre os outros em pilhas sobre toalhas na calçada, com vendedores gritando isso e aquilo, e donas e homens pra lá e pra cá checando tudo.

Todos os prédios parecem velhos, do tempo da colonização francesa, brancos e encardidos, precisando de uma mão de cal.
O amplo (e limpo) boulevard da Av. Habib Bourguiba, artéria central de Túnis.
Calçadão no meio. Lá ao fundo a torre da Praça 14 de Janeiro de 2011, comentada no post da chegada à Tunísia.
Muitas cafeterias, bares de hotel, e lojas chiques na avenida (todos com seus devidos seguranças particulares). 
Conforme a avenida se aproxima do centrão, a muvuca aumenta. E uma estranha presença ali, a Catedral de São Vicente de Paula, levantada pelos franceses em 1897. Ela hoje vive fechada, com barras de ferro às portas. Nunca a vi aberta, mas soube que abre às sextas pela manhã.   
As ruas do centrão de Túnis.
Dois gatos de rua ali perto saboreiam uma deliciosa espinha de peixe.

Eu na verdade havia ido às imediações daquela torre da Praça 14 de Janeiro, onde teoricamente há um Centro de Informação Turística, mas a viagem foi perdida. Lá encontrei uma porta fechada, e do outro lado, à outra porta, um guardinha, daqueles preguiçosos, a quem você pergunta "Que horas abre?" e ele olha pra você com aquela cara de "Quem é esse aqui de repente". 

— "Bom dia, este é o Centro de Informação Turística, não?", perguntei ao guarda.
— "Bom dia. Tá fechado."
— "Que horas abre?"
— "Hoje não abre mais não."
— "E quando abre de novo?"
— "Não sei. Normalmente não tem aberto não.

*E me olha com aquela cara desinteressada, de quem esperava que eu me satisfizesse com as suas esclarecedoras respostas* 

Vi que aquilo não ia chegar a lugar algum e fui embora. Resolvi descobrir a cidade sem mapa, sem nada.

E, de fato, encontrei. Do outro lado da medina (onde me perdi diversas vezes), há a bela prefeitura de Túnis e a praça chamada de Kasbah, onde vi meninos jogando bola. 
A Praça da Vitória, que conecta a Av. Bourguiba à entrada da medina. Este arco pertencia às antigas muralhas da cidade. (Como no Brasil, você tem, é claro, o povo carregando coisa na rua, outros atravessando no meio dos carros, etc.)
A Praça da Vitória enfeitada com as bandeiras vermelhas da Tunísia, e muito movimento de gente na rua.
Os movimentados becos da medina. Perceba que aqui grande parte das mulheres, sobretudo as mais jovens, não usam véu.
O interior da medina é aquele labirinto comercial característico. Embora esta aqui não seja tão "medievalesca" quanto as de Marrakech ou Fez (no Marrocos), ela tem seus meandros onde você se perde. 
Medina de Túnis, com muito movimento de gente e tapetes à venda.
Loja de cerâmicas. 
Só que hoje em dia, naturalmente, aquelas artesanias se misturam aos produtos Made in China. 
O meu maior medo, confesso, era, andando juntinho como andamos nesses becos, pisar no vestido de uma daquelas senhoras e descobrí-la, criando um pandemônio tendo eu como epicentro na medina.
Quer muvuca, venha à medina.
...só que às vezes você entra por uns becos, perdido, e se mete numas áreas assim da medina.
Olha onde eu vim parar, perdido.
Como as ruas são estreitas e você não vê além dos prédios adjacentes, perder-se é quase garantido. Um dos poucos marcos que você ainda avista às vezes é o minarete da Mesquita Al-Zaytuna (não confundir com azeitona).

Ela data do ano 698 d.C., de logo quando os árabes chegaram a esta região do norte da África. A entrada é normalmente restrita a muçulmanos, mas por fora é possível ver o seu minarete medieval.
Minarete da Mesquita de Al-Zaytouna. A mesquita foi fundada no ano 698, mas houve várias reformas conformes estes domínios árabes foram subjugados pelos turcos e, depois, pelos franceses. Esse minarete atual, que você vê, é do século XIX, remontando o estilo Almôada da Idade Média.

Finalmente, após muito me perder, cheguei ao outro lado da medina, onde fica a prefeitura e a praça Kasbah. Era hora do almoço, e eu estava sob aquele sol de meio-dia, crianças saídas da escola pelas ruas.
Prédio do governo com bandeiras da Tunísia.
A impressionante prefeitura ao fundo, e meninos jogando bola na praça.
Jardins debaixo do sol. Praça chamada de Kasbah, provavelmente a mais bonita da cidade.
Selfie com a prefeitura. Com a minha cara de árabe, todos achavam que eu era daqui. 
Eu acho engraçado que os brasileiros gostam de se sentir da mesma família da Europa e da América do Norte, como "ocidentais" (iludidos sem saber que a recíproca não é verdadeira, e que os europeus e norte-americanos consideram a América Latina uma terra tropical subdesenvolvida mais próxima da África do que da sua branca e culta "civilização ocidental"), e na real o Brasil se parece muito mais com isso aqui do que com a Europa. É tipo o empregado que acha que é parte da família dos patrões e ainda despreza os outros que são como ele.
  
A Tunísia pode não parecer, mas é a cara daquelas partes mais "populares" do Brasil.

Fui almoçar, saindo dessa solina e tentando não me perder fazendo o trajeto de volta pela medina, e acabei almoçando numa lanchonete que parecia aquelas de centro de cidade brasileira, com mesa plástica e uma moça que vem às vezes limpar com o pano.
O meu almoço com talheres plásticos no centro de Túnis, um tajine tunisiano, que nada tem a ver com o tajine marroquino. Este daqui é um gratinado de batata com azeite de oliva, azeitonas e especiarias. (Essa cobertura é de queijo com ovo.)
Embora não fizesse calor a esta época do ano, às vezes era bom se refugiar na tranquilidade do meu quarto de hotel — até sair de novo para bater perna no fim do dia.

Túnis praticamente "fecha" às primeiras horas do escurecer, como os centros de cidade no Brasil. Naquele finzinho de expediente os bares e lanchonetes já se enchem; embora as pessoas em geral não bebam álcool, proibido pelo islã, isso não impede os bares de estarem cheios, com as pessoas bebendo chá ou café.

Essas lanchonetes e bares são animados, mas não são como os espaços de classes média e alta do Brasil. São como os espaços de bairro, aquele ambiente carregado de testosterona, de rapazes que falam alto, andam gingando, com ar de quem toparia uma briga — tipo em qualquer bar de periferia no Brasil. Há mulheres, mas raramente. São ambientes essencialmente masculinos, e barulhentos, muitas vezes com a TV ligada passando jogo de algum campeonato europeu, que eles aqui assistem como se fosse deles. 

Na birosca perto do hotel onde eu fui "jantar", o cara abria pães  daqueles chatos, comuns em todo o mundo árabe, mas que a gente chama de pão sírio  e punha tudo dentro com a mão. Volta e meia, a limpava em "toalhas de papel" (com aspas porque, na prática, eram quadrados recortados daquele papel ao metro branco, que só arrasta a sujeira e não limpa nada). Ele parecia um DJ com uma velocidade quase automática de movimentos entre os ovos cozidos triturados, as azeitonas, e os pedaços de atum.  

Claro que pegava o dinheiro também. O meu eu pedia sempre com pimenta.
Minha janta na rua no centro de Túnis, ali perto do hotel. Ali dentro é queijo.
No post seguinte eu relato a minha visita às antiguidades romanas em Túnis, e ao fatídico Museu Bardo, onde assassinaram dezenas de turistas em 2015. 

Por ora, deixo vocês com algumas fotos do centro de Túnis à noite (a parte moderna, é claro, que eu não ia me enfiar na medina de noite e acabar perdido por lá e tendo que dormir na rua com os gatos).
A Av. Habib Bourguiba e a torre da Praça 14 de Janeiro à noite. 
As ruas laterais à noite...
Doutor Ali Baba, ao seu dispor.
O portão da Praça da Vitória iluminado.

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